Acabamos, mas não perecemos

A palavra Morte carrega consigo toda uma carga pecaminosa [1], negativa e conclusiva. Alguém que estava se concluindo, era alguém que morria. Mors, mortem, mortis (latim): passamento, óbito, falecimento, fim, finado. O verbo latino é morior, mortuus sum, mori (ANDRÉ, 2009, p.185). Morrer naturalmente (Morte sua mori, Sêneca). Morrer, falecer, finar-se (Morte fungi, Ovídio). Honras fúnebres (Mortis honos, Virgílio). Mortes dos meus familiares (Mortes meorum, Plínio). Para os gregos, Morte (Tânatos) era abstração gerada, via partenogênese, pela Noite (Nix) e tem como raiz o indo-europeu dhuen, “dissipar-se, extinguir-se”. Para o escritor Junito Brandão (1924-1995), na obra “Mitologia Grega” (1987, v. 1, p. 225-226), o sentido de “morrer”, ao que parece, é uma inovação do grego.  O morrer, no caso, significa ocultar-se, ser como sombra, uma vez que na Grécia o morto torna-se eídolon (retrato em sombras, “corpo insubstancial”). Tânatos é irmão gêmeo de Hipno[2] (Sono). Quem morre parece estar dormindo. E somos nós, os vivos, que velamos (ofício da agonia) quem parece dormir. Familiares, amigos, visitantes velam o morto que dorme sono profundo e, talvez, justo. Velar, ao mesmo tempo em que é um verbo usado para “vigiar”, “proteger” (velar o sono), é “permanecer junto de” (um ente morto). Defunto é aquele que não pode mais exercer uma atividade, função. O morto já não se pertence. Cabe a outros cuidarem do momento final do “corpo morto” (funus), ainda não enterrado.

Encontramos prazer em comprar imagens de mortos: quadros, fotos, medalinhas, bustos, entre outros artigos que dão vida a imagens de morte, somente para aplacar nossa solidão, rememorar nosso passado, alimentar nossa imaginação. “Agora nós já discutimos a imaginação no tratado sobre a Alma e nós concluímos lá que o pensamento é impossível sem uma imagem”, mesmo imagens de mortes/mortos. (ARISTÓTELES apud GARDNER 2003, 341).

Ritual dramático para alguns, momento de despedida para outros. A morte é uma fiel companheira com a qual já nascemos. A morte é a porta da vida (mors janua vitae) (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 623). Morte é invisibilidade na presença. Guardamos fotos de nossos mortos apenas para fazê-los vivos em nossa memória. Os olhos veem e o coração sente. Não deixamos de existir totalmente. Afinal, só morremos de fato quando a última pessoa que conhecemos já estiver morta, segundo o escritor norte-americano Neil Gaiman, em “Sinal e Ruído” (2011).

Viver é passar o tempo, e o tempo consumido significa aproximação da morte. Os velhos se queixam da velhice, da longa duração da vida, das dores físicas e invocam a morte. Porém, basta sentir a presença da morte para ninguém querer morrer ou, ao menos, morrer lutando, aproveitando a vida, divertindo-se um pouco, segundo o personagem Edward Cole (Jack Nicholson) no filme “Antes de Partir” (The Bucket List, Rob Reiner, 2007, EUA). Algumas pessoas não querem saber o dia em que vão morrer e nem querem morrer sozinhas. Morrer é romper laços, é deixar de existir, é partir. Chegar e partir são apenas dois lados da mesma viagem, ser e não-ser presença. Morremos, pois somos mortais. “Só o homem morre. O animal perece” [3]. Acabamos, mas não perecemos. “Diferente de perecer é acabar. Cada acabar fica guardado no começar” [4].

“Quem sabe se morrer não é viver” (Eurípides) [5].E se isso que nós, mortais, chamamos de vida não é apenas a morte e nosso corpo é uma sepultura no qual vamos enterrando sentimentos, sensações, pessoas, ritos[6]? Seria feliz quem de nada precisa? Então, defuntos seriam felizes? Não, não seriam... Ao menos para nós, os que ainda estão vivos. Os defuntos precisam de ritos e cuidados fúnebres para ser felizes em algum possível paraíso, em alguma morada de almas. Assim queremos acreditar, pois gastamos, e somos os únicos animais que o faz, tempo com os mortos. Cilena Canastra, ao abordar interdisciplinarmente a morte, afirma que o homem é “animal sepeliens” [7] (animal sepultante), animal que enterra o corpo de algum defunto.

A morte não é o começo, nem o fim, é a travessia. “A morte é sempre ultrapassagem” (MORIN, 1997, p. 266). Então, é melhor ir rindo da própria desgraça e da morte.  Talvez até morrer “de olhos fechados, mas de coração aberto”, como Edward Cole (Jack Nicholson).

O escritor português Fernando Pessoa, poeticamente, declarou que “a morte é a curva na estrada, morrer é só não ser visto” (1995, p. 142). Morrer, velar, enterrar um ente, sentir a ausência ainda fresca na memória, não mais ser visto, atos que fazem parte do derradeiro rito de passagem no qual todos chegaremos um dia. Para o escritor brasileiro Ariano Suassuna (1927), na obra “Auto da Compadecida”, viver é cumprir uma sentença e a morte é ̶ “o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre” ̶  é um fato derradeiro (2005, p.42). A morte não é negação da vida, mas um acontecimento natural da própria existência.

 

 

“Antes de partir” (The Bucket List, Rob Reiner, 2007, EUA). 


[1] Junto com o pecado, a morte entrou no mundo, segundo a Bíblia Sagrada, Novo Testamento. (Romanos 5:12).

[2] Hipno, em grego Hýpnos, da raiz indo-européia suep, “aquietar-se, dormir”, donde o latim somnus.

[3] “Os mortais são os homens. Nós os chamamos de mortais porque eles podem morrer. Morrer significa: ser capaz da morte como morte. Só o homem morre. O animal perece (...)”. (HEIDEGGER, 1958 apud MICHELAZZO, 1999, p. 146).

[4] Heidegger, em visita ao filósofo Georg Pitch na noite de dezembro de 1944, escreveu tal frase no livro de visitas dos Pitch. (SAFRANSKY, 2005, p. 392).

[5] Diálogo entre Sócrates a Cálicles, no qual Eurípides é citado (492 e-493). (PLATÃO, 1970, p. 131).

[6] O dramaturgo norte-americano Arthur Miller escreveu “A morte do caixeiro viajante” (1949), no qual relatou um indivíduo que se sentiu morto em vida ao ser desvalorizado e tratado como inútil e imprestável.

[7] Sepeliens, palavra do latim para “sepultar”, “enterrar”. Palavra usada também para o ato de esconder ou encobrir algo de modo que não se veja, não se conheça ou não se ouça. Sepeliré.

 

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