Tecnologias e Artes Visuais

          A estética pós-moderna recusa o consolo das boas formas, rejeita o consenso do gosto e a pseudo-reconciliação com os cânones do passado. Jean-François Lyotard (1924-1998) transpõe sua concepção de disputa e heterogeneidade dos jogos de linguagem para o campo da estética. A arte pós-moderna integra as conquistas da ciência e tecnologia modernas; ela [a arte] os apropria livremente, sem se conformar a regras ou convenções. A arte de hoje é da ordem do inapresentável, prenúncio de um mundo em que reina a inovação. O artista pós-moderno, o inventor, busca visualidades imprevisíveis, “fora dos limites/do local”, aqueles espaços permanentemente transgressores em relação ao sistema dominante. Não é impossível que parte da arte tecnológica contemporânea, aquela que joga com a multimídia, a interatividade, a virtualidade, já seja uma estratégia nômade. As novas tecnologias nas artes se apropria livremente do passado e o ressignifica, sem se conformar a regras ou convenções.

      As inovações tecnológicas, cuja finalidade artística ainda não percebemos, deixariam então de ser consideradas interpretações aberrantes da realidade, para se tornarem o que são, ou seja, simples manifestações das transformações da realidade atual. A arte tecnológica é a arte da mutação constante.

            A relação que liga o homem à ciência e à tecnologia é uma relação de exterioridade, uma relação instrumental. Através da Internet, da interação, das sínteses virtuais ou sonoras, dos elementos audiovisuais, da passagem da ilusão para o imediatismo, a nossa relação com o tempo, com o espaço, com a memória, portanto, com a história se transforma em uma experiência sensível da imaginação, da criação.

          Entre apocalípticos e integrados, entre um futuro idílico ou o apocalipse, fica uma certa dificuldade em percebermos a intensidade e a dureza da luta pela emancipação das formas tradicionais em meio as formas virtuais, pois vivemos imersos na inovação, na mudança e expansão de códigos e convenções. Os caminhos das produções audiovisuais nas artes continuam como caminhos recém-mapeados, mas sempre abertos. A virtualidade é o caminho para desenvolvermos imagens “verdadeiras” de objetos que não existem, criar “ficções reais” (ou realidades fictícias), mudando o próprio estatuto da realidade e modificar a posição do artista dentro da realidade. O artista digital em uma posição descentralizada. O artista audiovisual cria uma desestabilização quando atinge um ponto crítico, ao revelar uma hiperestesia produzida pelo “virtual” tecnológico em contradição, ou mesmo em conflito, com a inércia de nossas faculdades perceptivas e de nossos comportamentos estéticos e cognitivos. O artista audiovisual torna-se um simulacro da arte virtu-visual. O computador é a ferramenta do artista visual.

         O licenciado em arte, ao perceber e entender o uso da tecnologia nas artes visuais, poderá analisar as formas de expressão artística de várias culturas e sociedades, antigas e contemporâneas, interpretá-las em contextos apropriados e fazer conexões com suas próprias formas de expressão e experiências de vida. Também será capaz de exercer habilidades analíticas e de raciocínio crítico para responder às obras de arte e encontrar significados com base em diversos contextos das artes visuais e questões globais. E, por fim, o licenciado poderá elaborar e desenvolver ideias de criação artística, traduzir essas ideias em formas de expressão usando vários meios tecnológicos e refletir sobre o processo criativo e os produtos finalizados.

As tecnologias das artes visuais nos permitem compreender como a tecnologia causa impactos estéticos culturais nas artes e na sociedade, como se dá a influência das artes plásticas nas artes gráficas e como ocorre a atuação das tecnologias (eletrônicas e virtuais) em relação às instalações, os meios de comunicação, as artes performativas, o desenho, entre outros elementos artísticos.

           Como docente em Produção Audiovisual, pesquiso sobre o impacto do progresso tecnológico na comunicação social e, agora, nas artes visuais. É preciso compreender a influência de questões e fatores históricos, sociais e ambientais nas artes visuais e nos artistas que atuam nas artes eletrônicas, digitais e virtuais. É preciso entender, explorar e compreender a influência da tecnologia nas artes visuais, pois o artista não deve apenas possuir habilidades técnicas, mas, também, o conhecimento, atitude e imaginação necessários ao processo criativo para modificar as técnicas aprendidas anteriormente para encontrar novas ideias.

 

 

 

DA PASSIVIDADE CRIATIVA AO MOVIMENTO

 

Antes mesmo de tomar uma atitude, uma ação, um movimento, as imagens exigem uma visão contemplativa do mundo ao redor. Olhar o dia passar através de imagens fotográficas, exercitar a paciência ao pontilhar e liberar o traço ao criar em linha contínua são atos que exigem quietude, ou seja, admiração, êxtase e prazer estético. Escolher cores, papeis, melhores imagens, unir elementos, fazer/refazer… Tudo isso é um comportamento visceral internalizado, uma “passividade” criativa.

Através de obras sobre a linguagem da Arte, “conheci” um fantástico escritor da criatividade. Estou lendo “The Act of Creation” (1964, 1989), de Arthur Koestler, e, fascinada, percebo que leio o que sinto e não sabia explicar. Para Koestler, os “estados emocionais tão diferentes quanto o luto e o encantamento estético compartilham a lógica do olho úmido: são passivos, catárticos, dominados por reações parassimpáticas” (1989, p. 2). O autor também afirma que a palavra “emoção” (emotion) é derivada de “movimento” (motion). As experiências religiosas e estéticas, chamadas de movimentos, nos induzem à contemplação passiva, ao gozo silencioso. O pontilhismo é o movimento da paciência, da repetição. Olhar, um movimento da visão, as cores de um dia comum é o movimento de admiração profunda para captar as nuances e gradações de cores e sensações.

 

Nosso movimento criativo é observar ao meu redor, em nosso ambiente de estudo e contemplação, e usar imagens que nos tocam. Nunca imaginei que pontos e linhas fossem tão cansativos quando feitos pela primeira vez. A atividade artística é uma grande atividade mental que, em virtude de uma participação íntima entre o criador e a criatura, possui a obra, dá-lhe vida e vive através dela. E é nessa posse que encontramos inteira satisfação sensorial e silenciosa. O processo criativo não é fácil, mas a satisfação que nos dá, após criar o que se deseja, é visceral. 

CULTURA VISUAL NA ERA DE CONFLUÊNCIAS

 

 A cultura visual é uma forma de estudar imagens usadas nas artes, na história da arte, nas ciências (sociais, aplicadas), nas humanidades, entre outras. A cultura visual está entrelaçada com tudo o que vemos cotidianamente, ou seja, nos objetos, nos assuntos, na mídia, nos ambientes, na publicidade, na paisagem, nos edifícios, fotografias, filmes, pinturas, roupas e em qualquer coisa dentro de nossa cultura que se comunique por meios visuais. Ao olharmos para a cultura visual, devemos focar na produção, recepção e intenção, bem como nos aspectos econômicos, sociais e ideológicos.

Uma interessante prática didática é refletir, com os discentes, sobre a cultura de uma obra e analisar como o aspecto visual os afetou. O ato de se concentrar nas questões do objeto visível e do observador (a visão, o conhecimento e o poder) estão interrelacionados. Para Irit Rogoff (2002, p.26), a cultura visual é um “campo de investigação transdisciplinar e intermetodológico” em espaços de pensamentos complexos.

Para onde você olha, existem “textos” visuais. O mundo está repleto de cultura visual, de exemplos visuais do cotidiano, e precisamos mostrar aos alunos ângulos diferentes de leituras e diferentes narrativas da mesma imagem. As formas como “lemos” os objetos cotidianos e os textos visuais são formas de decifrar quem somos em diferentes espíritos de épocas.

Com o advento das tecnologias midiáticas, as imagens passaram a assumir nossas comunicações mais simbólicas. O digital é o encontro do texto com a imagem (ou imagens). Lemos e olhamos ao mesmo tempo, mas fazemos a mesma leitura com os produtos audiovisuais (ler imagem e som). Vivemos na era da confluência entre textos (mensagens) e imagens (estáticas ou em movimento).

Outra forma didática de entender nossas visualidades cotidianas são levar os estudantes em três vínculos sensórios: o ver/ler, o ouvir e o tocar. A cultura visual é fluida, e vive em adaptação contínua e nós, leitores visuais, encontramos constantemente novas maneiras de nos envolver, contemplar e questionar o mundo através de imagens visuais, das perceptivelmente visíveis até as que demoramos a perceber a presença, por exemplo, imagens em realidade aumentada, imagens em terceira dimensão. Visualidades e multissensorialidades estão espalhadas por todos os espaços, do analógico ao digital, do humano ao transumano.

Os estudantes são torpedeados com imagens através da história da arte contemporânea, da mídia, dos videogames, das produções audiovisuais, do cinema, da publicidade, da fotografia, do design e das histórias em quadrinhos. Porém, esses estudantes não sabem compreender o que veem, são leitores rasos das imagens que os cercam, pois, não sabem nada sobre semiótica básica, compreensão estética e códigos visuais para poderem desenvolver um espírito crítico.

 

REFERENCIAL TEÓRICO:

 

DIAS, Belidson. Pedagogias culturais, visualidades e cotidiano. III COMA: Entrelinhas - Coletivo do Programa de Pós-Graduação em Arte da Universidade de Brasília. Pedagogias culturais, visualidades e cotidiano. 2012.

ROGOFF, Irit. Studying Visual Culture. MIRZOEFF, Nicholas (ed.). The Visual Culture Reader. Londres: Routledge, 2002.  

 

LYGIA E MARINA: entre corpos e objetos

 

 

Fig. 1: Lygia Clark, Série Bichos, Brasil,1960-1964, metal com dobradiças. Fonte: Google Imagens.

Fig. 2: Marina Abramović, Rhythm 0 (“Ritmo 0”), 1974, 72 objetos e a Artista. Fonte: https://www.ufrgs.br/arteversa/?p=134


Duas mulheres, duas artistas mundiais, uma brasileira e outra servo-croata, duas artistas que usam o corpo e objetos para indagar a presença e a necessidade da arte na vida humana. Lygia Pimentel Lins, ou Lygia Clark (1920–1988) e Marina Abramović (1946) trazem o sensorial para o centro da arte contemporânea. Duas mulheres notáveis que, através da participação do espectador, com o intuito de possibilitar um “experimentar a criação”, dão um novo significado a obra.

Lygia foi uma neoconcretista (movimento em que a subjetividade, a expressividade e a participação do público é importante, década de 1950 em diante), uma artista conceitual (movimento que se concentra mais em ideias e conceitos entre os anos 1960 e 1970) e contemporânea que levava o público a refletir sobre a virtualidade e a subjetividade da obra, uma criadora que mudava de suporte e conseguia um novo sentido estrutural para a obra. Clark rompeu com a temática concretista (racional, valorização da forma, do bidimensional), pois acreditava que o quadro era um todo orgânico e até a moldura tinha uma significação, um apelo sensorial. Para Lygia, o quadro não deveria ser um apoio para a representação, mas um objeto-símbolo. Segundo Ferreira Gullar (1930–2016), Clark estendeu a cor até a moldura, mudando-lhe a natureza e o sentido.

 

[…], o trabalho do pintor não estava mais desligado da preparação do suporte onde deveria depositar a expressão: o trabalho incluía — e não artesanalmente apenas — a própria criação do quadro como realidade material existente: quadro e expressão se confundiam, ambos, nasciam de um mesmo movimento formulador. Lygia Clark eliminou a contradição entre o fundo representativo e a forma-signo: o quadro inteiro tornou-se a forma-signo, cujo fundo é o espaço real mesmo — o mundo. (GULLAR, 2006, p. 63).

 

 As obras de Clark são repletas de percepção visual e conotações táteis. A necessidade de descobrir novas estruturas e novas formas do artista se expressar era o que movimentava o desejo criador da artista. Pedras, pano de guarda-chuva, plásticos, “sacos vazios de batatas, cebolas, plásticos que envolvem roupas que vêm do tintureiro, e ainda luvas de plástico” (CLARK, 1998, p.36) eram os materiais usados por Lygia. Uma das mais conhecidas obras da artista é conhecida como “Bichos”, uns não-objetos móveis feitos de metal, de chapas com dobradiças que se desdobram progressivamente. Essa obra convida o público ao contato, pois cada movimento da estrutura é uma nova obra, quase nossa (público participante). Os não-objetos de Clark “abrangem toda a escala sensorial, e mergulham de maneira inesperada num subjetivo renovado, come que buscando as raízes de um comportamento coletivo ou simplesmente individual, existencial” (OITICICA, 2006, p. 143.).

Os “Bichos” de Clark é um convite ao movimento, a metamorfose. O público apreciador da obra transforma-a e é transformado. “Bichos” é em simultâneo, manusear algo da realidade e da miragem (objeto e não-objeto). O corpo, tanto da artista quanto do espectador, é um fator importante na existência da obra. Clark fez criou objetos que mantinham relação com o toque, o tato, o deslizar pelo corpo, os conhecidos “objetos relacionais”. Cada objeto relacional só tem relação com o sujeito que o manuseia.

Na série “Memória do Corpo” (1985), Clark nos apresenta o objeto relacional leve; o objeto relacional leve (isopor) e pesado (areia); o objeto relacional pesado; o saco com água, uma bucha vegetal; um saco com sementinhas; um cano ondulado (“respire comigo”); uma meia de nylon, conchas, e outros objetos criados pela artista. Cada criação relacional de Lygia dá em uma pessoa, certa sensação e em outra pessoa uma sensação oposta, são objetos que dão uma sensação estranha, uma vibração diferente na derme humana, relações interpessoais, vários significados, barulhos sugestivos, sensação de um lado pesado/leve/quente/ frio na obra. Não há lugar exato para o objeto relacional na memória do corpo, não há uma definição pronta, cada um (espectador participante) define e significa o objeto manuseado.

Outra importante artista contemporânea que lida com o corpo e com objetos é Marina Abramović (1946), uma performere artista visual sérvia. A partir da década de 1970, quando a chamada body art emergiu como gênero visual, oferecendo o corpo do artista como um lugar nu de inscrição, até o presente, quando a performance se tornou uma transmissão mais lúdica e direta de energia entre quem faz e quem Para o espectador, a obra de Abramović representa um exemplo eficaz e poderoso do corpo como texto e como tela, em que a subjetividade pode ser re-expressa e reinventada por meio das transformações da relação entre o tempo e o espaço.

Com um trabalho de tendência ritualística, Marina Abramović é uma das mais prolificas em arte performática dos anos 1960. A artista se colocou em perigo ao realizar rotinas prolongadas e prejudiciais que resultam em cortes ou queimaduras quando realizou uma performance, “Ritmo 0” (1974, Fig. 2), em que ficou durante seis horas à mercê dos espectadores. Cortes, escovadas brutas no cabelo, gritos ou sofrendo alguma privação, assim foram/são as obras de Marina. A artista vê a própria arte quase como um rito sacrificial e religioso entre ela e o público. As provações físicas que Abramović suporta formam a base para explorar temas como confiança, resistência, limpeza, exaustão e partida.

Em “Ritmo 0”, ao afirmar “Eu sou o objeto” e “Durante este período eu assumo total responsabilidade”, Abramović convidou os espectadores a usar qualquer um dos 72 objetos (incluindo uma pena, caneta, livro, serra, mel, band-aid, sal, rosa, arma, bala, tinta, chicote, casaco e tesoura) em seu corpo da maneira que desejassem, abrindo mão completamente do controle. Esse trabalho também refletiu seu interesse pela arte performática para transformar tanto o performer quanto o público. Abramović queria que os espectadores se tornassem colaboradores, em vez de observadores passivos.

Assim como os trabalhos de Lygia Clark, as criações de Marina se deslocam das artes tradicionais, como pintura e escultura, e o corpo é a tela, a moldura, a parte objetiva do subjetivo. Em Abramović, o corpo é como o ponto de partida para qualquer desenvolvimento espiritual. Na forte relação criada entre as intérpretes (Lygia e Marina) e o público, o que se encena uma estranheza, ao devir de outros significados materiais e cognitivos que resultam na redefinição de experiências subjetivas e, simultaneamente, coletivas de identidade.

 

 

Referências:

  

ABRAMOVIĆ, Marina; KAPLAN, James. Walk Through Walls: A Memoir. New York: Crown Archetype, 2016.

CLARK, Lygia. Lygia Clark-Hélio Oiticica: Cartas, 1964–74. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.

GULLAR, Ferreira. “Arte neoconcreta uma contribuição brasileira”, 1962. In: FERREIRA, Gloria (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.

 OITICICA, Hélio. Arte ambiental, arte pós-moderna, 1966. In: FERREIRA, Gloria (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006.

 

 

 

 

CARAVAGGIO E O TERCEIRO OLHO

Figura 1− CARAVAGGIO. A incredulidade de São Tomé. Óleo sobre tela. 107 × 146.1 c. 1601-1603. Sanssouci Picture Gallery.Fonte: https://www.spsg.de/en/research-collections/collections/paintings/ (2018)

Figura 2− CARAVAGGIO. Davi com a cabeça de Golias (detalhe). Óleo sobre tela. 1605-6 (Galleria Borghese, Roma). Fonte: http://www.artbouillon.com/2016/04/making-cut-has-lost-caravaggio-been.html (2018). LEONI, Ottavio. Caravaggio. Carvão sobre papel. 1621 (Biblioteca Marucelliana, Florença). Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ottavio_Leoni#/media/File:Bild-Ottavio_Leoni,_Caravaggio.jpg (2018

           Entre 1601 e 1603, o pintor italiano Michelangelo Amerighi, da Caravaggio[1], Patrizio di Siena, mais conhecido apenas como Caravaggio (1571-1610), pintou a obra barroca “A Incredulidade de São Tomé” (do italiano, Incredulità di San Tommaso), localizada atualmente em Potsdam (Alemanha), na Sanssouci Picture Gallery. A pintura está presente nas coleções reais da Prússia. Protegida em Potsdam, a obra permaneceu intacta após a Segunda Guerra Mundial (1939-1944). Esta é a pintura mais copiada de Caravaggio, são conhecidas vinte e duas cópias a partir do século XVII.

Com um tema religioso, a obra de Caravaggio foi pintada em óleo sobre tela e nos mostra os discípulos de Jesus como o pintor possivelmente imaginou, figuras sacras com grande carga de humanidade – santos com jeito de pescadores, carpinteiros, gente comum.

A cena que iremos analisar é a representação da “dúvida de Tomé” que figurou na arte cristã desde, pelo menos, o século V. Tomé (ou Taoma, “gêmeo” em hebraico) também era conhecido como Dídimo (“gêmeo”, em grego). No Novo Testamento da Bíblia Sagrada, no Evangelho de João, capítulo 20, versículos 24-27, podemos ler sobre o episódio que inspirou Caravaggio:

 

Tomé, chamado Dídimo, um dos Doze, não estava com os discípulos quando Jesus apareceu. Os outros discípulos lhe disseram: “Vimos o Senhor!” Mas ele lhes disse: “Se eu não vir as marcas dos pregos em suas mãos, não colocar o meu dedo onde estavam os pregos e não puser a minha mão no seu lado, não crerei”. Uma semana mais tarde, os seus discípulos estavam outra vez ali, e Tomé com eles. Apesar de estarem trancadas as portas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: “Paz seja com vocês!” E Jesus disse a Tomé: “Coloque o seu dedo aqui; veja as minhas mãos. Estenda a mão e coloque-a no meu lado. Pare de duvidar e creia”. (JOÃO 20: 24-27).

 

 Na pintura, o rosto de Tomé mostra surpresa quando Jesus lhe segura a mão e a guia até a ferida. Podemos observar a surpresa pelo franzir da testa o discípulo. A ausência de um halo enfatiza a corporeidade do Cristo ressuscitado. Caravaggio fez uma obra em claro-escuro (chiaroscuro). Em suas pinturas dramáticas, Caravaggio realçava as imagens com uma luz intensa e teatral.

Temos três pessoas vestidas de diferentes tonalidades de vermelho, vistas parcialmente inclinadas sobre Cristo. Em primeiro plano temos São Tomás/Tomé, apoiando fortemente o braço esquerdo no quadril. Outro um apóstolo está atrás de Tomé, e um terceiro aparece apenas o topo do rosto, o crânio iluminado pela luz que vem da esquerda da pintura. Cristo, à esquerda, é visto em um busto de três quartos revelando a ferida no lado direito. Os outros estigmas também são visíveis no centro das mãos o Cristo.

 Podemos ver como Jesus e os apóstolos, na pintura aqui analisada, estão bem dispostos na pintura, com Jesus e Tomé na vanguarda da imagem. Caravaggio tinha uma atenção minuciosa aos detalhes, como na costura rasgada da manga esquerda de São Tomé ou nas unhas sujas do discípulo.

Segundo o historiador da arte Simon Michael Schama (1945), Caravaggio era um homem que tinha vários problemas com a lei e pintava para fugir dos problemas. Caravaggio fez seu autorretrato como a cabeça cortada do gigante filisteu Golias. Temos o “retrato do artista como um ogro, seu rosto uma grotesca máscara de pecado. É uma imagem de implacável autoacusação”, afirma Schama (2010, p. 20).

A visão do artista italiano era incomum. Caravaggio evitou o método padrão de fazer cópias as antigas esculturas e, em lugar disso, passou a pintar diretamente sobre a tela sem um esboço inicial. O pintor usava uma luz intensa para iluminar as figuras e as rodeava de uma escuridão completa, algo que invadia a “zona de conforto da contemplação: moldura, parede, altar, galeria. A grande façanha da pintura renascentista foi a perspectiva, a profundidade empurrada até o último plano do quadro” (SCHAMA, 2010, p. 23).

Sobre o estilo barroco, do qual Caravaggio foi grande representante, Arnold Hausser (1892-1978), na obra “História Social da Arte e da Literatura”, no século XVII, nos informa que o barroco (verúcia/barroque/barrueco; algo áspero, rude, tosco, mal polido) ganhou força com as missões jesuíticas para emocionar e estimular a piedade e devoção do povo. Com uma estética extravagante, confusa, bizarra, irregular e inconstante, o barroco abriu uma nova visão do mundo pautada na cinemática dos corpos que atuavam do óbvio para o escondido e o velado, pois exigia um desejo de concentração e subordinação do observador. A arte barroca revelou as afinidades de todos os seres, de modo a criar uma “arte popular” para a propagação da fé católica, mas permitiu um rumo mais liberal, mais sensual, com amor à antítese, ao contraste, à expressão obscura, ao misticismo, a angústia, pessimismo, humanização do sobrenatural; a bivalência do homem: santo versus libertino, blasfemo versus contrito; aos dilemas éticos e estéticos da vida: bem/mal, céu/inferno, arrependimento/pecado. Com o barroco, além do cristianismo, a corte (francesa, italiana, espanhola, portuguesa) ditou as questões de gosto (HAUSSER, 1998, pp. 442-477).

Caravaggio pintou “O incrédulo São Tomé” para o marquês Vincenzo Giustiniani. O artista transformava a experiência física do toque na expressão de uma teologia impecável. Se o mistério da encarnação é se fazer carne, por qual motivo não tocá-la? Quem duvida quer tocar? Tomé quer tocar a carne para acreditar verdadeiramente. Tocar fundo na ferida que o homem causou ao Cristo. Temos a representação da descoberta do divino vivo e quase uma verificação de um procedimento médico. As testas dos apóstolos estão franzidas em surpresa e agonia.

O uso da luz nos revela fluxos de luz na imagem do lado esquerdo. Jesus está banhado pela luz e sua pele branca e as vestes fazem com que ele se destaque. A posição de Tomé na tela é reforçada por sua roupa quase alaranjada e a luz que brilha sobre ela.

A pintura nos causa certa agonia, pois parece que nenhuma das figuras está olhando a ferida do Cristo. Na obra de Caravaggio vemos o impensável, o poderoso desejo de tocar Deus através o Cristo, penetrar em seu corpo e ser incorporado nele. Caravaggio, assim, permite uma espécie de experimentação antes da hora do retorno de Cristo no fim dos tempos (a perspectiva escatológica), prefigurando nossa união definitiva com o divino. O toque que se torna o terceiro olho (o toque visual).

 

 

REFERÊNCIAS:

HARGREAVES, Lisa Minari; VULCÃO, Maria Goretti Vieira. História da Arte I: da Pré-história ao Barroco. Licenciatura em Artes Visuais. E-Book. CIAR. UFG. 2018. In:. Org. por Leda Maria de Barros Guimarães. Coleção TRAMA & URDUMES. Volume 02 (EAD) Licenciatura em Artes Visuais, Faculdade de Artes Visuais (FAV), Universidade Federal de Goiás. FUNAPE. 2010.

HAUSSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

GUIMARÃES, Leda Maria de Barros; COSTA, Luís Edegar de Oliveira.  História da Arte II: do Renascimento ao Neoclassicismo. Licenciatura em Artes Visuais. E-Book. CIAR. UFG. 2018. In:. Org. por Leda Maria de Barros Guimarães.  Coleção TRAMA & URDUMES. Volume 02 (EAD) Licenciatura em Artes Visuais, Faculdade de Artes Visuais (FAV), Universidade Federal de Goiás. FUNAPE. 2010.

SCHAMA, Simon. O poder da arte. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

SILVA, Verônica G. B. da. A Cultura Brasileira do Feio: Por uma noção de beleza ampliada. 2017. 233 f. Tese (Doutorado em Comunicação Social na Linha de Imagem, Som e Escrita). Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017. 


 

[1] Caravaggio é uma comuna italiana da região da Lombardia, província de Bérgamo, na Itália. “Caravaggio” era o nome da aldeia natal da família de Michelangelo Merisi e foi escolhido como seu nome artístico.

Cristo, o anjo, o leão, o boi e a águia

Figura 1− Catedral de Chartres: Cristo em majestade com símbolos dos quatro evangelistas; tímpano da porta da frente ocidental, 1145-1170.

Figura 2− Imagem dos quatro evangelistas, Livro de Kells. Fonte: Goole Imagens (2018)

Figura 3- RUBENS, Peter Paul. Os quatro Evangelistas. Óleo sobre tela (224 x 270 cm). 1614. Fonte: Google Imagens (2018)

Figura 4− BLOEMAERT, Abraham. Os quatro evangelistas. Óleo sobre tela (178 × 222 cm). 1612. Museum Princeton University Art Museum, Princeton, NJ. Fonte: Google Imagens.

A cidade de Chartres fica a aproximadamente 92 km de Paris. Notre Dame de Chartres (catedral gótica) foi originalmente construída por Fulbertde Chartres (em latim: Fulbertus Carnotensis), bispo de Chartres entre 1006 e 1028. A Catedral de Chartres teve sua construção iniciada em 1145 e foi reconstruída após um incêndio em 1194. A obra aqui analisada será uma peça da Catedral de Chartres, conhecida como “Cristo em majestade com símbolos dos quatro evangelistas” (1145–1155), localizada no tímpano e lintel da porta central da frente ocidental, fachada oeste do Pórtico Real. Uma peça de pedra esculpida que faz parte de uma catedral conhecida como “a Bíblia feita de pedra”. A arquitetura gótica do século XII releva uma modificação no pensamento cristão ao criar grandes centros de peregrinação. A época da construção, a catedral era chamada de “Palácio da Virgem” (OTTO apud TREVISAN, p. 138). Em Chartres, venerava-se o véu que Maria (Sancta Camisia) teria usado quando deu à luz ao Cristo, em Belém. Relíquia verdadeira para boa parte dos europeus e dos latinos que visitavam a região. Foi o imperador Carlos II (823–877), também chamado de Carlos, o Calvo, quem ofereceu a relíquia à cidade em 876. Chartres, então, torna-se o centro do culto mariano na França.

A cena analisada é a representação da imagem de Cristo, sentado frente a frente no centro de uma mandorla[1], ladeado pelos símbolos de quatro evangelistas[2]. É a cena do Juízo Final.

Nos séculos XII e XIII as peregrinações a Chartres rendiam ao bispo da cidade grande lucros, fazendo da cidade, nesse período, possivelmente a mais rica. Toda a fortuna ganha pelo bispo ia para a construção da catedral. Chartres além de local de fé era centro da cosmologia platônica, algo importante na arte gótica. A Catedral de Chartres tem uma ênfase vertical, com altíssima elevação (Deus é o foco), um espaço unificado com arco pontudo, de suporte de contrafortes externos, de abóbodas com arestas e traves para deixar todo o ambiente claro e leve. Toda a arquitetura gótica da catedral é adornada com esculturas cristãs e vitrais de um colorido exuberante.

A cena escolhida nos mostra Cristo em majestade rodeado por símbolos evangelísticos (halo cruzado, com os pés descalços) e quatro apóstolos. Cristo segura o Livro da Vida na mão esquerda e levanta mão direita em um gesto de bênção. Acima de sua cabeça, uma pomba desce. Ele está cercado por um anjo, um leão alado, um boi alado e uma águia. Essas criaturas são mencionadas no Antigo Testamento (Ezequiel 1: 1–14) e no Apocalipse (4: 6–8). Essas criaturas geralmente são identificadas como símbolos dos quatro evangelistas (Anjo, Mateus; Leão, Marcos; Boi, Lucas; Águia, João). A arquivolta[3] interior contém figuras de anjos, as arquivoltas externas contêm os vinte e quatro Anciãos do Apocalipse.

No Novo Testamento, Apocalipse (4: 4), lemos “ao redor do qual estavam outros vinte e quatro tronos, e assentados neles havia vinte e quatro anciãos. Eles estavam vestidos de branco e na cabeça tinham coroas de ouro”. Sobre os anciãos, a referência gótica segue o período românico. Já o Cristo segurar um livro e fazer o gesto de bênção, pode ser uma influência bizantina, pois em ambos, a cabeça de Cristo é cercada por um halo cruzado.

O Cristo como os evangelistas e os vinte e quatro anciãos é uma representação de um possível “tribunal celestial” segundo a Bíblia cristã. Um “Cristo em Majestade” tornou-se padrão esculpido no tímpano dos portais das igrejas góticas. Um Cristo cercado por um grande número de figuras muito menores ao redor, nas arquivoltas.

Sobre os quatro evangelistas, na tradição cristã, são: Mateus, um ex-coletor de impostos que foi chamado por Jesus para ser um dos Doze Apóstolos; Marcos, um seguidor de Pedro; Lucas, um médico conhecido por escrever o livro de Atos (ou Atos dos Apóstolos) e ter sido amigo íntimo de Paulo de Tarso; e, finalmente, João, um discípulo de Jesus e, possivelmente, o mais novo de seus Doze Apóstolos.

Na iconografia, os evangelistas são representados pelos símbolos que se originam das quatro “criaturas vivas” que desenham uma visão no Livro de Ezequiel (Capítulo 1, Antigo Testamento), embora nenhuma fonte ligue as criaturas aos evangelistas. Os significados gerados pelos símbolos cresceram ao longo dos séculos. Os símbolos dos quatro evangelistas estão representados no “Livro de Kells” [4] (Figura 2).

Sobre os evangelistas do Novo Testamento:

  •  Mateus é o autor da primeira narrativa do evangelho, homem simbolizado por um anjo. O evangelho de Mateus começa com a genealogia de José de Abraão; representa a encarnação de Jesus, portanto, a natureza humana de Cristo (os cristãos devem usar sua razão para a salvação).
  •  Marcos é o autor do segundo livro do evangelho, é simbolizado por um leão alado (figura de coragem e monarquia). O leão também representa a ressurreição de Jesus e Cristo como rei (coragem para ser salvo).
  • Lucas é o autor do terceiro livro do evangelho (e os Atos dos Apóstolos), é simbolizado por um boi ou touro alado (figura de sacrifício, serviço e força). O relato de Lucas começa com os deveres de Zacarias no templo; representa o sacrifício de Jesus na via crucis e crucificação. O boi significa sacrifício, oferenda, doação.
  • João é o autor do quarto livro do evangelho, é simbolizado por uma águia (figura do céu). João começa com uma visão eterna de Jesus e do conhecimento (“No princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus e era Deus”); representa a ascensão de Jesus e a natureza divina de Cristo. A águia é como um olhar a eternidade com fé.

Cada um dos símbolos é retratado com asas, seguindo as fontes bíblicas aqui citadas. Ao cercar Cristo, a figura do homem/anjo geralmente aparece no canto superior direito (acima da mão direita de Cristo, a mão que abençoa), o leão está abaixo do braço direito de Cristo (sendo abençoado), o boi está no lado esquerdo, abaixo do Livro da Vida (seguindo as palavras sagradas), e a águia está acima do Livro (aguardando o renascer). Isso reflete a ideia medieval da ordem da “nobreza” da natureza dos animais (homem, leão, boi, águia) e o texto de Ezequiel (1.10). A partir do século XIII, seu uso começou a declinar, como uma nova concepção de “Cristo em Majestade” e sofrimento. Entraram em uso as imagens das chagas, das feridas da Paixão.

Outras pinturas nos mostram as representações dos evangelistas e seus respectivos símbolos (Figura 3 e 4).

A imagem de “Cristo em Majestade” ou “Cristo em Glória” (do latin, Maiestas Domini) se desenvolve a partir da arte cristã primitiva, que nos deu as fórmulas de representações do imperador romano entronizado (Cristo como legislador). No mundo bizantino (Oriente), a imagem se desenvolveu de forma ligeiramente diferente com o Cristo Pantocrator (Cristo Triunfante) apenas de busto e segurando o Livro da Vida.  No Ocidente, a composição evolutiva permanece muito consistente dentro de cada período até o Renascimento[5], em que Cristo é representado nos braços da Pietà e, então, permanece importante até o fim do barroco, em que a imagem é normalmente transportada para o céu.

Sobre imagem de Cristo sentando em um trono, presente na Catedral de Chartres, são várias as leituras, mas a ideia de que Cristo surge como governante do mundo, sempre observado frontalmente no centro da composição, e cercado por outras figuras sagradas é a que nos domina nesse momento.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução Antônio Pereira de Figueiredo. São Paulo: Ed. Das Américas, 2000.

 

HAUSSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

 

HIRST, John. Breve História da Europa. Portugal: D. Quixote, 2013.

 

HISTÓRIA da Arte (Volume III). Panorama das artes da Arte Medieval ao Barroco. Goiânia: UFG, 2018.

 

SCHWANITZ, Dietrich. Cultura Geral: tudo o que se deve saber. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

 

SILVA, Verônica G. Brandão da. Estética da monstruosidade: o imaginário e a teratogonia contemporânea. 2013. 270 f., il. Dissertação (Mestrado em Comunicação)—Universidade de Brasília, Brasília, 2013.

 

TREVISAN, Armindo. O rosto de Cristo: a imaginação do imaginário e da arte cristã. Porto Alegre: AGE, 2003.

 

 



[1] A mandorla é uma auréola oval, em forma de amêndoa (“mandorla” em italiano), que envolve normalmente uma representação de Jesus Cristo.

[2] Evangelistas, uma palavra que significa “pessoas que proclamam boas novas”, porque seus livros têm como objetivo contar as “boas novas” (“evangelho”) de Jesus. Evangelho é a tradução portuguesa da palavra grega Euangelion. Para os gregos mais antigos a palavra  indicava a “gorjeta” que era dada a quem trazia uma boa notícia. Mais tarde passou a significar uma “boa-nova”, segundo a exata etimologia do termo. (p. 273)

[3] Conjunto de arcos sucessivos, de raios decrescentes, que faz parte dos portais de diversas construções românicas e góticas.

[4] Peça principal do cristianismo irlandês (em irlandês Leabhar Cheanannais), também conhecido como Grande Evangeliário de São Columba. É um manuscrito ilustrado com motivos ornamentais, feito por monges celtas por volta do ano 800 a. C. no estilo conhecido por arte insular.

[5] Renaissance foi um termo criado por Giorgio Vasari, em 1550. Era a redescoberta da cultura pagã da Antiguidade depois do “longo sono da Idade Média”. Delimitamos o período renascentista em cerca de 130 anos (1400-1530) (SCHWANITZ, 2007, p. 61).

Nebamun e a escuridão do casulo

Figura 1− Cena da caça a aves selvagens, fragmento de uma cena presente na capela-túmulo de Nebamun. Tebas, Egito. Final da Dinastia XVIII, em torno de 1350 a.C. Fonte: Goolge imagens.

Figura 2 −Detalhe da cena da caça a aves selvagens, fragmento de uma cena presente na capela-túmulo de Nebamun. Tebas, Egito. Final da Dinastia XVIII, em torno de 1350 a.C. Fonte: Goolge imagens

           A pintura (Figura 1) faz parte da cena da caça a aves selvagens, fragmento de uma cena presente na capela-túmulo de Nebamun, localizada em Tebas (atual Luxor), no Egito. A peça é do final da Dinastia XVIII, datada em torno de 1350 a.C.   Obra de artista(s) desconhecido(s), a pintura mural do túmulo de Nebamun teve como técnica o falso afresco (do italiano fresco secco) no qual o artista deixa o gesso secar antes pintá-lo.

        A pintura de parede da capela-túmulo de um nobre chamado Nebamun, escriba e contador de cereais. Segundo Margaret Bunson, na obra Encyclopedia of Ancient Egypt, Nebamun serviu ao faraó da XVIII dinastia egípcia, Amenófis III/Amenhotep III. O nome Nebamun (Meu Senhor é Amun) rende homenagem ao deus adorado na região tebana − “Ámon/Amon/ Amun” (O Oculto/O Escondido, personificação dos ventos). A pintura da cena da caça de aves nos pântanos, presente no túmulo de Nebamun representa um Egito que existiu na antiguidade, entre 1300-1400 a.C., perto da cidade de Tebas (atual Luxor).

        No outono de 1820, o túmulo de Nebamun foi descoberto pelo jovem grego, Giovanni d'Athanasi (1798–1854), que atuava como agente de Henry Salt (1780–1827), o cônsul geral britânico. Giovanni d'Athanasi encontrou o que seria o túmulo de Nebamun na necrópole dos nobres na margem ocidental da atual cidade de Luxor. As pinturas surpreendentemente coloridas e bem conservadas foram rapidamente removidas e enviadas para o Museu Britânico (Londres), um total de 11 fragmentos de pintura.

         A obra desenvolve um tema especial em que Nebamun é o senhor dos seus arredores, uma cena de caça nos pântanos férteis do rio Nilo, um lugar de renascimento na cosmologia egípcia antiga. Notamos que as inscrições hieroglíficas revelam que Nebamun era um contador no templo do deus tebano Amun em Karnak.

         Na Figura 1 Nebamun está de pé em um barco leve e, em perfeito equilíbrio, como a pessoa mais importante na cena, pois é a maior figura (maior proporção) e ocupa o centro da ação sobre um barco feito de papiro. Em uma das mãos ele segura três pássaros e joga algo que parece um bumerangue na outra. O pequeno barco prosseguia em sua entrada no mato de papiro, onde alguns pássaros haviam notado a intenção do intruso, enquanto outros permaneceram nos ninhos em cima das flores. Nebamun não está sozinho. Entre as pernas separadas (indicativo de atividade) do escriba, observamos a pequena figura da filha[1], sentada e com um braço agarrando a forte perna do pai (indicativo de proteção e poder), enquanto pegava flores de lótus. A esposa do escriba, desenhada em uma escala menor que o marido e maior que a filha (escala hierática de importância social), está atrás dele na cena, permanecendo com o braço levantado, parada na popa, parece passiva.

        Na figura de Nebamun temos os grandes olhos amendoados que deram uma ligeira inclinação, os lábios cheios e a carnuda parte inferior do rosto são típicos do reinado de Amenófis III. Vemos uma imagem familiar e íntima. As silhuetas com cabeças e perna sempre de perfil, ombros e peitos de frente indicam que, apesar da rigidez da ação (arte bidimensional egípcia, Lei da Frontalidade), as silhuetas podem representar um movimento, viver em vibrante acontecimento, devido ao uso das cores, dos ornamentos, das aves quem voam, do barco em cima do rio Nilo. Os pássaros selvagens, o ganso na proa do barco (animal que representa Amon), o gato rajado e as borboletas foram cuidadosamente observados e desenhados com seus corantes e singularidades naturais, de modo que cada animal pode ser reconhecido. Enquanto os peixes nadam tranquilamente, o gato, os pássaros e as borboletas parecem voar descontroladamente pelo lugar. Uma estranheza da cena reside no fato de o gato parecer voar sobre dois pássaros ao abocanhar uma terceira ave ou se equilibrar sobre duas hastes de papiro (Figura 2).

         O gato na pintura também poderia representar o Deus Sol que caçava os inimigos da luz e da ordem. O pântano está repleto de flores de lótus e borboletas-tigre. Flores de lótus representam a pureza espiritual, símbolos delicados de rejuvenescimento que se repetem em várias obras de arte e arquitetura egípcia. Sobre a presença das borboletas na pintura, uma leitura possível é trazida por Carminha Levy (1999, p. 165), na obra “A sabedoria dos animais: viagens xamânicas e mitologias”, no qual “a borboleta é uma espécie de larva, a lagarta, e deve passar um período, encerrada na escuridão do casulo para então libertar sua nova forma”. Para Levy, a analogia da lagarta com a morte veio do Egito Antigo, pois as múmias egípcias representavam o corpo humano enrolado em bandagens e adormecido na sepultura, como lagartas no casulo esperando nova vida.

        Pela observação dos aspectos analisados, a pintura analisada revela que, em seu túmulo, a enorme figura de Nebamun dominou, para sempre feliz e para sempre jovem, cercada pela natureza e sua família. Morte no Antigo Egito era uma continuação da vida. Os egípcios cultuavam a natureza, seus animais e a vida antes e depois da morte. Sabemos, através da literatura que nos cerca, que a religião egípcia possuía um caráter místico de busca pela vida eterna e perpetuação da alma. A cena da caça familiar pode ser literal ou apenas uma alegoria sobre a vida no Antigo Egito. Cenas de caça representam o triunfo sobre a morte e a desordem. O sucesso de uma caça é uma homenagem ao deus egípcio Osíris (terra fértil, vale do Nilo, luz e ordem) sobre o deus Seth/Set (terra estéril, deserto, trevas e caos).

 

 

 REFERÊNCIAS:

 

FAURE, Élie. Arte Egípcia. Tradução de Gil Reyes. Coleção Folha: Mundo da Arte. São Paulo: Folha de São Paulo, 2017.

KLEINER, Fred S. Gardner's Art through the Ages: Backpack Edition, Book A: Antiquity. Boston (USA): Cengage Learning, 2015.

LEVY, Carminha. A sabedoria dos animais: viagens xamânicas e mitologias. São Paulo: Editora Ground, 1999.

HARGREAVES, Lisa Minari; VULCÃO, Maria Goretti Vieira. História da Arte I: da Pré-história a Idade Média. Goiânia: UFG, 2017.

SILVA, Verônica G. Brandão da. Estética da monstruosidade: o imaginário e a teratogonia contemporânea. 2013. 270 f., il. Dissertação (Mestrado em Comunicação)—Universidade de Brasília, Brasília, 2013.

 

Site do Museu Britânico: http://www.britishmuseum.org/



[1] Segundo o texto Ancient Egypt: Nebamun, do Museu Britânico, Nebamun era casado com Hatshepsut e tinha uma filha. Disponível em: <https://www.britishmuseum.org/PDF/Visit_Egypt_Nebamun_KS2.pdf>. Acesso em 09  jan 2018.

 

Iracema e Olympia: o nu exótico e o nu que encara


MEDEIROS, José Maria de. Iracema. Óleo sobre tela. 168.3 × 255 cm. 1884. Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro-Brasil). Fonte: http://www.mnba.gov.br/portal/

MANET, Édouard. Olympia. Óleo sobre tela. 130 × 190 cm. 1863. Musée d'Orsay (Paris-França). Fonte: http://www.musee-orsay.fr/fr/accueil.html


                               

O século XIX foi um período de escândalos e triunfos; de independências, manifestos e revoluções que contribuíram para a evolução das práticas e visualizações corporais. Ao longo do século XIX, o corpo nu foi objeto de censura. As mulheres deviam seguir certos códigos de boas maneiras burguesas, código que exigia que as mulheres fossem respeitáveis, com os corpos completamente vestidos, em oposição às prostitutas que praticavam a nudez despojada ou nudez completa nos bordéis, indicativo de certa animalidade e venalidade. A função moral exigia a implantação de estratégias para esvaziar a carga erótica do corpo nas artes, de modo a criar uma distância com o espectador e para legitimar a representação da nudez: exotismo (distância espacial), pretensão histórica (distância temporal), alegoria (distância moral) e referência antiga (o nu acadêmico).

 Dentro de tais estratégias, vamos analisar as imagens de duas representações de nudez feminina na segunda metade do século XIX. Primeiro, temos uma mulher nua cuja cabeça está levantada em uma atitude de desafio que beira a provocação. A outra mulher nua possui um tom mais exótico, que abaixa a cabeça, em sinal de resignação e obediência, perante o recado do homem que ama. Uma é Olympia (1863) de Édouard Manet (1832–1883) e a outra é Iracema de José Maria de Medeiros (1849–1925). Uma parece representar a mulher europeia moderna. Já a outra, uma mulher submissa do terceiro mundo (Iracema/ América), a nudez exótica que dá o tom da distância espacial. Iracema é a mulher-terra fecundada pelo português (colonizador), é mulher de um homem apenas, uma figura passiva que olha para baixo, para o recado imagético do amado. Olympia é mulher dos homens que pagam por prazer carnal, uma mulher que não foi apenas uma mulher nua (sem algo para lhe cobrir o corpo), mas uma mulher pelada (não quer nada para cobrir o corpo). Pelada e encarando os passantes, nos encarando.

Iracema tem a pele bronzeada, comum aos indígenas, e um ar melancólico e resignado; a indígena está numa praia bucólica, em uma postura de ninfa. É a beleza exótica de uma quase deusa virginal. Já a musa de Manet, que parece ser uma prostituta de classe alta, é imperfeita como qualquer mulher terrena, uma parisiense, uma europeia. Olympia não demonstra timidez ao revelar sua nudez, é uma mulher senciente que confronta quem a olha ao mesmo tempo, em que recebe flores, talvez de um cliente. A meretriz olha para o espectador com um olhar direto, quase de confronto, como se colocasse o espectador no papel de cliente. O quadro de Manet foi tido como vulgar, mas o que o pintor fez foi despir as deusas e, em simultâneo, a nudez mitológica que existia nos quadros da Paris do século XIX. Manet corrompe as deusas.

 Há uma longa tradição greco-romana do nu feminino representado da maneira menos erótica e sensual. Vestida pela mitologia ou vestida por pura beleza, às deusas eram mulheres idealizadas e inexistentes no meio social. Manet, ao pintar Olympia, não recorre às tradições, mas faz algo moderno. Manet retira o véu da mitologia das Vênus renascentistas e nos dá uma mulher comum em seu espaço íntimo, desafiando as ideias clássicas de beleza. Olympia não é uma Vênus, não é deusa clássica ou ninfa mitológica, na verdade, é uma prostituta parisiense do século XIX que se parece muito com uma mulher comum em um apartamento banal. Olympia não tem um rosto simétrico como as Vênus.

A mulher pintada por Medeiros é submissa e espera carícias afetivas do ser amado. A mulher pintada por Manet agarra o que deseja (homens e dinheiro). Iracema não inspira o mesmo voyeurismo sexual que Olympia. Iracema está abaixo hierarquicamente do homem que ama. Olympia é seu próprio homem. Iracema é uma mulher bucólica de José de Alencar[1], é a pureza e intensidade emocional. Olympia é uma mulher intimidante, impura e daimônica lembrando Charles Baudelaire (1821–1867). Uma é de um país em colonização, a outra é uma “deusa urbana de terreno poluído” (PAGLIA, 1992, p. 389).

Pintar uma mulher nua era um escândalo imenso em 1863. Não apenas pintar a nudez, mas retirar o véu mitológico era o que chocava. Olympia não era a representação de uma deusa greco-romana, mas de uma mulher comum que ansiava quebrar costumes sociais franceses do século XIX. Manet estava interessado em incomodar a classe media/alta parisiense. A pintura Olympia tornou-se tão infame que teve de ser pendurada em um lugar mais alto para não sofrer ataques físicos. Olympia não é uma mulher diferente da Vênus de Urbino (1538) pintada por Ticiano (1473/1490–1576). Então, porque tanta comoção? Uma é uma prostituta e a outra é uma deusa que foi baseada em outra deusa − a Vênus Adormecida (1507–1510) de Giorgione (1477–1510). Enquanto a deusa de Ticiano tem por perto um cão (símbolo de fidelidade), a Olympia, nome comum para prostitutas em Paris, tem um gato preto sobre a cama (símbolo de promiscuidade).

 Uma prostituta podia ser bem popular. Muitos homens ricos podiam querê-la, mas ninguém queria a foto de uma meretriz pendurada em um salão de arte − não onde as esposas pudessem ver. Iracema não choca, pois, é uma ninfa exótica submissa.

Vemos como pinturas que retratam mulheres em ambientes diferentes (natureza versus quarto), de pintores em momentos distintos e em nações completamente opostas revelam o olhar sobre a representação feminina, do corpo feminino, de diferentes maneiras. Através das pinturas supracitadas, percebemos que no Brasil, a mulher do século XIX ainda era uma figura exótica e subserviente. Já na Paris moderna, a mulher deixa de ser idealizada como uma deusa e passa a atuar carnalmente entre os homens (e dentro e ao redor deles).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ALENCAR, José de. Iracema. São Paulo: Ática, 1991.

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BAUDELAIRE, Charles. Petits Poèmes en prose: O Spleen de Paris: Pequenos poemas em prosa. Tradução de Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995.

______. As flores do mal. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007.

______. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996

ECO, Umberto. História da Beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

 

____________. História da Feiura. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GUIMARÃES, Leda Maria de Barros; COSTA, Luís Edegar de Oliveira. História da Arte II: do Renascimento ao Neoclacissismo. Licenciatura em Artes visuais Percurso 2. Universidade Federal de Goiás. Goiânia: UFG, 2018.

PAGLIA, Camille. Personas Sexuais: Arte e Decadência de Nefertite a Emily Dickinson. Camille. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 


[1] José Martiniano de Alencar (1829-1877) escreveu Iracema em 1865.

NEOCLASSICISMO- 1750 ATÉ MEADOS DO SÉCULO XIX

O contexto histórico e social:

 

Movimento artístico que se desenvolveu na pintura, escultura, arquitetura e literatura entre 1750 e 1830. O neo (novo) classicismo define fundamentalmente a busca pela excelência na obra de arte que é denominada em termos de pesquisa da estética do cânone (conjunto de modelos). Na pintura, Jacques Louis David é um precursor nessa nova abordagem.

O campo artístico do neoclassicismo está presente na arquitetura, pintura, escultura, literatura, artes decorativas, prateleira e joalheria.

 As características do movimento:

 

O neoclassicismo é caracterizado pela representação dos cânones “clássicos”. Na verdade, o neoclássico é a busca de um ideal. Um artista, experiente na realização artística dos “cânones”, não apenas reproduz modelos, mas sintetiza o trabalho de seus antecessores enquanto traz seu toque pessoal para alcançar a excelência na realização de cada uma de suas obras. Este não é um trabalho fácil, pois exige conhecimento sobre as técnicas de pintura, arquitetura, etc. Claramente, se um artista cria trabalhos insensatos, sem sentido, ou mesmo medíocres em suas realizações, não pode reivindicar o movimento dos neoclássicos.

Novidade, improvisação, auto-expressão ou inspiração livre não são virtudes do neoclassicismo. O neoclassicismo não procura criar uma obra de arte a partir do zero, ao contrário, prefere o perfeito domínio dos cânones.

O movimento não deixa muito espaço para o artista como um indivíduo, porque é segue muito a imitação da arte greco-romana.

 

Os Artistas:

Artistas estão interessados:

ü  Inspirações na Antiguidade;

ü   Reinterpretam de acordo com os cânones;

ü  Usar valores como heroísmo e razão que são celebrados através de assuntos morais;

ü  Imitar imagens gregas e romanas que atingiram a perfeição;

ü  Rejeição de cenas galantes e fúteis.

Características plásticas:

 

ü  A arte pictórica é sóbria, eloquente e ilustrativa;

ü  A paleta de cores é deliberadamente limitada para afirmar o desejo de precisão e a grandeza das figuras representadas;

ü  Perpendicularidade geral da pintura;

ü  Tema moralizante, muitas vezes propagandista (especialmente sob Napoleão);

ü  Promovendo valores cívicos;

ü  Temas inspirados na antiguidade grega e romana;

ü  Composições frequentemente dicotômicas.

Representantes do Neoclassicismo: Jacques-Louis David (1748-1825), Jean-Auguste Dominique Ingres (1780-1867), John William Waterhouse (1849-1917), entre outros.

 

ROMANTISMO- SÉCULO XIX

O contexto histórico e social:

 

Mudanças nas formas de pensar e de expressar resultantes da Revolução Francesa repercutem na arte. Três movimentos reagem contra o academicismo, aparecem na primeira metade do século XIX: o neoclassicismo, o romantismo e o realismo. Movimentos que serão seguidos pelo impressionismo e pós-impressionismo.

 As características do movimento:

 

O romantismo é caracterizado pelo domínio da sensibilidade, emoção e imaginação sobre a razão e a moralidade. Artistas pintam afirmando suas ideias e apaixonadamente deixando suas impressões e sentimentos pessoais através de suas obras. Eles reivindicam a individualidade e se opõem às exigências da Academia. O romantismo, em seguida, aparece como uma ruptura com a estética dominante da época − o neoclassicismo.

No romantismo a arte não é mais tão dependente dos mecenas, agora a arte é mais autônoma.

Os Artistas:

Artistas estão interessados:

ü  Nos eventos e nas tragédias de seu tempo, que eles representam enquanto expressam suas opiniões.

ü  Paisagens, não mais tentando reproduzir a realidade, mas sugerindo, por vezes, atmosferas estranhas, melancólicas ou misteriosas (o Sublime);

ü  Viagens pitorescas... O Oriente em particular;

ü  Obras literárias: as peças de Shakespeare, a Divina Comédia de Dante, os poemas de Ossian (lendário bardo escocês) transcritos e reinventados em 1760 por James Macpherson (professor escocês);

ü   Os temas fantásticos e macabros das lendas nórdicas.

Características plásticas:

 

ü  As linhas do desenho, as curvas e contracurvas, sublinham o movimento;

ü  As cores refletem a paixão de sentimentos e ideias;

ü  Os contrastes de sombra e luz (chiaroscuro) acentuam as atmosferas, às vezes, dramáticas;

ü  A liberdade do toque revela os gestos do pintor e as pinceladas vigorosas;

ü  Uma pasta triturada e grossa dá um caráter tátil ao trabalho.

As duas grandes figuras do romantismo na França são Jean-Louis André Théodore Géricault (1791-1824) e Ferdinand Victor Eugène Delacroix (1798-1863).

Quais mudanças ocorreram na representação da pintura histórica do neoclássico ao romantismo?

 

Precisamos, inicialmente, definir o que é “pintura histórica”. A pintura histórica é um tipo de pintura definida pelo tema que apresenta, e não pelo estilo artístico. Pinturas históricas geralmente descrevem um momento em uma história narrativa, em vez de um assunto específico e estático, como em um retrato. O termo deriva do sentido mais amplo da palavra “historia” em latim, que significa “história” ou “narrativa”, e significa essencialmente “pintura sobre o fato histórico”. A maioria das pinturas históricas não é composta de cenas retiradas da história, mas de representações do que as narrações nos dão. Pinturas históricas quase sempre contêm um número de figuras, muitas vezes um grande número, e normalmente mostram alguma categoria de ação que é um momento em uma narrativa. Cenas da história antiga foram populares no início do Renascimento, e mais uma vez se tornaram comuns no barroco e no rococó, e ainda mais com a transição para o neoclassicismo. Em alguns contextos dos séculos XIX e XX, o termo pode referir-se especificamente a pinturas de cenas da história secular, e não àquelas de histórias religiosas, literatura ou mitologia.

Nas pinturas históricas, a cena, os atos corporais, os gestos eram importantes. Vamos falar um pouco do corpo para entender as mudanças que ocorreram com as pinturas entre o neoclássico ao romantismo.

O neoclassicismo veio como uma consequência lógica nas artes do pensamento iluminista. No segundo século XVIII foram afirmadas orientações estéticas, nas quais metas como a promoção de uma humanidade nova, mais simples e mais livre, próxima da natureza e, ao mesmo tempo, capaz de seguir a razão são importantes. O novo intelectual, como foi teve que atribuir, entre outras coisas, um valor prático e útil ao conhecimento e ser socialmente engajado. A reflexão sobre o que é bonito do ponto de vista da arte está enraizada no pensamento filosófico grego, mas somente com o século XVIII assistimos ao nascimento de uma disciplina filosófica específica, a Estética, voltada para a compreensão do belo e da arte.

O neoclassicismo e o romantismo são duas fases importantes do mesmo processo histórico e, mesmo que pareçam, à primeira vista, absolutamente contrárias, estão, de fato, profundamente ligadas entre si no plano artístico e cultural.

Segundo Giulio Carlo Argan (1992), o neoclassicismo nada mais era do que uma fase da concepção romântica da arte, pois em ambas as correntes havia a prevalência de um fator ideológico, às vezes, explicitamente político no lugar do princípio metafísico da natureza como revelação.

Enquanto o Neoclassicismo promovia o retorno à ordem, regularidade e disciplina, inspirado nos modelos clássicos, o Romantismo exaltava a imaginação, a sensibilidade pessoal e a melancolia, o sentimento exasperante e a rejeição de tudo que podia ser reconectado de alguma forma com o racionalismo iluminista.

Artistas românticos e intelectuais, embora contrastando de maneira viva com os neoclássicos, tinham, de fato, uma formação muito semelhante e eram nutridos pelos mesmos estudos. Os neoclássicos apelavam diretamente ao mundo do classicismo greco-romano, enquanto os românticos, no que lhe concerne, tendiam a se reconhecer na espiritualidade da Idade Média, vista como o período de origem dos sentimentos e orgulho nacionais.

A maneira de ver e sentir a natureza, por exemplo, incorporavam perfeitamente a ideia da justaposição ideológica radical dos dois movimentos. O homem romântico sentia-se parte integrante da natureza e mergulhava profundamente, personalizando-a e modificando-a de acordo com o seu humor e necessidades expressivas. Ao contrário, o homem neoclássico se esforçava para permanecer alienado e investigar racionalmente suas características [da natureza] para dominá-la, negando deliberadamente qualquer valor poético e expressivo.

Durante o século XIX foi afirmada uma nova subjetividade da experiência artística, a partir da qual superou a subdivisão tradicional dos gêneros artísticos e do sistema de regras convencionais, fato de enorme importância que deu origem à grande pintura inglesa, alemã e francesa. Despontaram nomes como: William Turner (1175–1851), John Constable (1776-1837), Philipp Otto Runge (1777–1810), Caspar David Friedrich Friedrich (1774-1840), Eugène Delacroix (1798–1863) Honoré Daumier (1808–1879). Os temas da mitologia clássica foram substituídos por outros ligados às lendas ossianas[1], à fabulosa tradição local e à representação de uma natureza fortemente personificada. As atmosferas claras e definidas do repertório neoclássico eram, portanto, sobrepostas a cenários deliberadamente sombrios, muitas vezes cheios de referências simbólicas, mágicas e misteriosas. Desta forma, os artistas tentavam tocar a chave da emoção e da sensibilidade, em vez da razão e do conteúdo, promovendo o envolvimento emocional e a adesão apaixonada.

Segundo Edmund Burke (1729–1797), o sublime consistia em conjunto misterioso e fascinante de sensações que só podiam ser experimentadas em face de certos espetáculos naturais grandiosos. Na sensibilidade romântica, o sublime é, portanto, colocado no extremo superior da percepção da beleza.

O termo latino sublimis significa “aquilo que vai se elevando, que se mantém no ar”; deriva do adjetivo limus ou limis, “oblíquo, que olha de lado ou atravessado, que sobe em linha oblíqua ou ladeira”; sublimare significa “elevar, exaltar, glorificar”, ao passo que “sublime” designa aquilo que está “suspenso no ar, que estava no ar; alto, elevado”, segundo Marco Antônio Coutinho Jorge (2008, p. 150). Em 1757, Burke publicou a obra Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo na qual falou sobre o sublime como manifestação do ilimitado. O afeto do sublime se localiza para além da nossa capacidade de saber (lógos), o modo como os sentidos são afetados e as percepções são adquiridas varia conforme a cultura e a experiência de cada um. Burke distingue o prazer (pleasure) como prazer simples ou positivo, e deleite (delight) como prazer relativo (diminuição de dor física, perigo ou sofrimento). Para Burke as ideias de dor são muito mais poderosas do que aquelas que provêm do prazer.

Mesmo um pintor neoclássico como Jacques-Louis David (1748–1825) interpretou valores emergentes, colaborando ativamente, com o trabalho pintado e a organização dos partidos republicanos, para a afirmação dos ideais revolucionários. Nos anos que se seguiram à Restauração, em relação aos movimentos políticos do início do século XIX, relacionados com o tema da independência, pintores e escultores acompanharam o debate teórico com um compromisso constante e sincero (por exemplo, Delacroix na França e Francesco Hayez na Itália).

Esta participação nos eventos, mesmo dramática e excitante, reuniu em algumas figuras a busca de uma dimensão mais íntima e coletiva, como o alemão Caspar David Friedrich, interessado em investigar para além dos limites visíveis e terrestres, com uma tensão em direção ao infinito que é outra dobradiça do romantismo.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

GUIMARÃES, Leda Maria de Barros; COSTA, Luís Edegar de Oliveira. História da Arte II: do Renascimento ao Neoclassicismo. Licenciatura em Artes visuais. Percurso 2. Universidade Federal de Goiás. Goiânia: UFG, 2018.

 

 

 

 



[1]. Ossian é baseado em Oisín, filho de Finn ou Fionn mac Cumhaill, anglicisado para Finn McCool, um bardo lendário que é um personagem da mitologia irlandesa. Os primeiros sinais de Ossian podem ser encontrados nos escritos de Giraldo Cambrense , datados do século XII. Porém,  a verdadeira história literária explodiu quando James MacPherson ( 1736 - 1796 ) escreveu I Canti di Ossian . MacPherson fingiu ter traduzido fielmente os poemas originais de Ossian, mas na realidade inventou muitos fragmentos e. O sucesso de suas supostas traduções, no entanto, foi extraordinário. A poderosa prosa, a referência a uma natureza selvagem, faz dela uma obra fundamental do pré-romantismo. Os “Cantos de Ossian” foram importantes para a formação da sensibilidade do movimento Sturm und Drang  (tempestade e ímpeto).

De homens, símbolos e batalhas

E. DELACROIX. A Liberdade guiando o povo. 1830. Óleo sobre tela.  2,6 m x 3,25 m. Paris, Museu do Louvre.

PEDRO AMÉRICO. Batalha do Avaí. 600 centímetros x 1.100 centímetros. Pintura a óleo. 1872 até 1879. Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro).

A experiência estética não é mais exclusivamente uma experiência de arte. A arte está entrelaçada com imagens políticas. Temos a arte militante que é naturalmente contestadora. Segundo Immanuel Kant (1724-1804), a arte e a política devem existir em esferas separadas, pois a arte não é destinada a defender uma causa externa a ela e precisa estar livre de qualquer consideração de uso ou interesse. Para Kant, a função da arte é proporcionar prazer desinteressado e subordinar a arte à sua utilidade política e moral teria o efeito de reduzir a arte ao status de um instrumento, distorcendo-o, tirando suas características fundamentais - liberdade e autonomia. Porém, para os pintores que se engajaram em defender os ideais do povo, a autonomia da arte precisa ser testada.

A questão da relação entre arte e política agitou séculos de história da arte. Qual é o papel da arte e do artista na urbe? Para Platão (427 a.C.-347 a.C), a arte pode apoiar uma ordem social estabelecida ou desconstruí-la. Arte é algo histórico-social, que, por si só, envolve a dimensão política. Até o século XVII o artista era essencialmente subordinado ao poder eclesiástico e político, e tinha como tarefa realizar obras religiosas que celebravam o poder de Deus e ao mesmo tempo o poder do cliente. Os protagonistas da história política europeia competiam pelos artistas mais “refinados”, para aumentar sua credibilidade e sua autoridade política. É a partir da segunda metade do século XVIII que se desencadeou um processo de emancipação gradual do artista. Tal processo começou a afirmar a ideia da autonomia do artista. Autonomia, em primeiro lugar, de poder político. Independência conquistada, o artista pode desfrutar de uma quase liberdade ilimitada de ação e liberdade de crítica sem precedentes. Começava, então, o confronto com os poderes políticos e as estruturas sociais.

Podemos pensar numa “arte militante”? Sim, a arte militante ocorre quando os intelectuais produzem obras contra regimes totalitários, capaz de intervir na esfera pública e tomar posição contra os assuntos citadinos. O artista renuncia a uma posição de mero espectador e coloca sua arte a serviço de uma causa.

A arte militante é uma arte de protesto, uma arte que questiona os fundamentos de uma ordem política considerada injusta, uma arte que produz um esforço crítico de subversão. A arte militante perturba e cria obras de ruptura que produzem choques emocionais, quebrando moldes sociais pré-existentes. A arte militante é, portanto, revolucionária, mas também utópica e participativa. Utópica, pois não procura apenas condenar ou glorificar, mas abrir o futuro, despertando aspirações que são silenciosas ou insuspeitadas.

Temos pintores que fizeram da própria arte um ato patriótico. Um desses pintores foi Eugéne Delacroix (1798-1863). Quando pintou uma mulher com os seios nus, uma provável peixeira das margens do Sena ou uma deusa grega que conduz o povo, Delacroix pintou a representação de um acontecimento que mudou o curso da história e inverteu o equilíbrio artístico do poder. Ao pintar uma das mais conhecidas representações da Liberdade, Delacorix exaltou a imaginação para dar visualidade a Revolução de Julho de 1830. Pensar na palavra “liberdade” é pensar na obra “A Liberdade Guiando o Povo” (fr. La Liberté guidant le peuple). Todos desejam uma liberdade que nos guie, nos indique o caminho para a vitória, para as conquistas, para a independência (afetiva, financeira, espiritual, mental, etc.).

Delacroix era o pintor mais em voga na sociedade parisiense do início do século XIX e era conhecido como o pai da “escola romântica”. Foi o artista que pintou o possível primeiro quadro político da história moderna. Hoje a tela, exposta no Museu do Louvre (Paris), é uma obra-prima apreciada em todo o mundo, mas quando foi criada em 1830, era considerada pela monarquia francesa um trabalho politicamente hostil, porque conseguia abalar a consciência das massas por sua mensagem de revolta.

No centro da pintura aparece uma mulher, a personificação da Liberdade, que com forte determinação incita o povo a lutar: de um lado ela segura a bandeira tricolor da Revolução Francesa, no outro, um mosquete de baioneta. A cena se refere à batalha dos parisienses contra a política do último rei Bourbon, Charles X (1757-1836). A insurreição, em julho de 1830, levou à deposição da monarquia Bourbon, favorecendo a ascensão do governo monárquico constitucional de Louis Philippe d'Orleans (1773-1850). Em 26 de julho de 1830, Carlos X (1757-1836) tinha tirado os direitos políticos e sociais das pessoas. O monarca havia suspendido a liberdade de imprensa, dissolvido a câmara, e modificado as eleições. Tal ousadia do monarca provocou três dias de rebelião.

Delacroix apoiou a insurreição, não no meio dos combatentes ativos, mas criando o primeiro quadro político da história moderna. “Eu escolhi”, escreve o pintor em uma carta para seu irmão Charles Henri Delacroix (1779 - 1845), “um assunto moderno, uma barricada, e embora ele não pudesse lutar pelo meu país, pelo menos eu poderia pintar para isso. E isso me deu bom humor”.

 

Sobre o obra La Liberté guidant le peuple:

 

Em 27 de julho e 1830, temos as primeiras manifestações, os comitês se organizam. No dia 28 de julho, surgem às barricadas em plena capital francesa e ao redor da Catedral de Notre-Dame tremula a bandeira tricolor. O exército ataca sem sucesso os manifestantes. Em 29 de julho, os insurgentes triunfam em toda Paris. O povo de Paris e as sociedades secretas republicanas, liderados pela burguesia liberal, fizeram uma série de levantes contra Carlos X que é deposto. O duque de Orleans é trazido para Paris e assume o posto que era de Carlos X. Em 31 de julho, primeiro Ministro Jacques Laffitte recebe o duque, sob a bandeira tricolor, na sacada da prefeitura o intitula e Louis Philippe I.  

Os dias 27, 28 e 29 de julho de 1830, são conhecidos como Três Gloriosos. Nesses três dias de insurgênciaforam levantadas barricadas na capital francesa, generalizando a luta civil. As revoltas populares sucediam-se a tal ponto que a própria Guarda Nacional acabou por apoiá-las, aderindo ao motim.

Barricadas em Paris! Cada barricada era como um poderoso feudo, com seus chefes, soldados, viandeiras (cozinheiras da tropa) e seus meninos sujos. As barricadas eram feitas com as pedras das ruas de Paris.  

Uma mulher pula uma barricada seguida por cinco personagens armados. No primeiro plano, temos três cadáveres. Vemos um atirador do regimento suíço da guarda nacional (direita): capote cinza-azulado, ornamento escarlate no colarinho, polainas brancas e sapatos baixos, a barretina caída ao lado do corpo. Ao lado, vemos um couraçeiro da guarda real usando uma couraça, ombreiras brancas, luvas de couro claro. À esquerda da Liberdade, um combatente morto que teve as calças roubadas.

A única mulher do quadro usa uma saia bege e larga, presa na cintura por um cinto vermelho de duas voltas e uma blusa branca rasgada ou dobrada. Em sua mão esquerda, um fuzil da infantaria com baioneta no cano (modelo 1816), na mão direita uma bandeira de três cores. Sobre a bandeira de três cores, na história vimos nascer a Revolução Francesa (1789). Temos as duas cores de Paris, azul e vermelho, com a cor branca, da antiga monarquia, no meio. A bandeira de três cores é a mais pura representação da liberdade graças a Delacroix.

A liberdade, de perfil, olha para trás e em sua cabeça vemos um barrete frígio, um chapéu da Pérsia antiga adotado pelos escravos da Roma antiga. Tais escravos, ao ganharem a liberdade, usavam um gorro vermelho (piléu/pileus/pilleum). Os republicanos na Revolução Francesa (1789) usavam barrete vermelho (cônico e mais frouxo na ponta).  O barrete frígio virou emblema de liberdade e cidadania, atributos da liberdade na Revolução Francesa e da Republica.

Delacroix pintou dois meninos ao lado da Liberdade. O menino da esquerda usa um boné de atirador da guarda nacional, milícia que acaba de ser dissolvida por Carlos X. As armas do garoto são um simples florete de esgrima e uma pedra. Já o menino da direita ergue, aos gritos, pistolas de cavalaria (modelo 1816), usa uma cartucheira da infantaria da guarda real e uma boina de veludo preto dos estudantes do Quartier Latin (quinto e sexto distritos de Paris).

Como se seguissem a Liberdade, Delacroix pintou três homens o primeiro usa uma boina grande, um avental de proteção para manufatura e uma bandeirola porta sabre possivelmente tomada de um infante, nas mãos traz um sabre da companhia de elite da infantaria (modelo 1816), na cintura uma pistola envolta num grande lenço que é sinal dos insurgentes da Guerra da Vendéia (1793-1796, guerra civil e contrarrevolução ocorrida na Vendéia, região costeira localizada no sul do vale do Loire, oeste da França) e na boina tem as insígnias dos partidários de Louis Philippe I. Temos a presença de um segundo homem que segura um fuzil de cano duplo (arma de caça) e usa uma cartola, mas não é um burguês, pois a calca larga e o cinto vermelho indicam ser um artesão ou um chefe de oficina. Já o terceiro homem está ferido e vemos o sangue escorrer pelo chão, o ferido se apoia sobre as mãos e ergue a cabeça em direção a Liberdade, sua roupa é de um camponês que veio trabalhar em Paris como um pedreiro.

Em um segundo plano do quadro, temos uma multidão com armas diversas. Vemos um politécnico de bicorne (chapéu de dois bicos). Ao fundo temos a Notre-Dame de Paris e no topo, uma bandeira tricolor asteada. Delacroix usou a Catredral como o símbolo do povo. Foi no mesmo período em que Victor Hugo escrevia a obra “Notre-Dame de Paris”. Tanto para o pintor quanto para o romancista a catedral é símbolo de revolta e espontaneidade. Entre 1861-1892, Victor Hugo escreveu o romance “Os Miseráveis” em que aparece o menino Gavroche. O personagem Gavroche pode ter sido inspirado pelo menino que aparece em “A Liberdade guiando o povo”de Delacroix. A pintura tem dois anos antes dos eventos narrados em “Os Miseráveis”. Gavroche, no romance, morreu por ter zombado dos soldados. 

Delacroix não pode lutar pela Revolução, mas pintou pela Pátria. No inverno de 1830 Delacroix termina a obra e no verão seguinte a apresenta no Salão de Arte. Os críticos acharam a obra um tema de horror e repulsa, os homens do povo são exagerados, falsos e feios. Homens do povo como se tivessem perfis gregos. A liberdade com o peito nu é muito indecente e está com os seios sujos. Aqui temos um pungente realismo dos personagens pintados por Delacroix. Na pintura neoclássica, a nudez devia obedecer normas severas. Mas Delacroix pintou os seios da liberdade escurecidos pela pólvora e com uma discreta pilosidade nas axilas, sinal de mau gosto para os críticos de arte da época.

Foram três panos para compor uma obra repleta do jogo de claro e escuro (chiaroscuro). A gama vermelho claro, branco e azul escuro que está presente na mão da liberdade, no topo da catedral e em vários elementos na pintura de Delacroix, é um símbolo da pintura patriótica francesa. No quadro percebemos vários elementos alegóricos da insurreição popular e a alegoria da Liberdade como uma mulher armada, guerreira, protetora. O erotismo (mulher nua) está ligado à morte.

 

 

 Sobre Batalha do Avahy, (1872-1879):

 

 

Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905) ansiava por mudanças na arte brasileira, uma maior liberdade de criação. Pedro Américo havia criado com o irmão Aurélio Figueiredo (1856-1916), um jornal satírico conhecido como “A Comédia Social” (1868). Mas o que Américo desejava era pintar as vitórias dos heróis do Exército brasileiro. Com apenas 29 anos de idade, Américo estava habilitado a ser escolhido oficialmente pelo governo brasileiro a realizar quadros históricos.

A Batalha do Avahy (1868) marcou a etapa decisiva da campanha militar após a qual a Tríplice Aliança desbaratou o sonho de acesso ao mar que levou Solano López e ao Paraguai à ruína.  Em 19 de Agosto de 1872, Pedro Américo firmou um contrato com o governo imperial com uma forte sugestão do Ministro, o Conselheiro João Alfredo Correia de Oliveira. O artista inicialmente aceitou a encomenda, que era pintar aPrimeira Batalha Dos Guararapes (19 de abril de 1648), mas logo depois modificou a proposta do Ministro. Como o contrato era bem aberto e a composição não era definida, bastando que fosse “... um quadro de assunto da história pátria com as dimensões que o artista julgasse conveniente e o prazo de cinco anos” (MELLO JUNIOR, 1982, p. 88). Então, Américo decidiu pintar uma guerra moderna como a Batalha do Avahy, ocorrida em 11 de dezembro de 1868, na Guerra do Paraguai. Para Vladimir Machado de Oliveira, Pedro Américo estava imbuído daquela “fé sagrada de representar um tempo presente, com suas mudanças, o movimento transitório dos acontecimentos em que a pintura estava integrada com a cultura erudita e com o acontecimento histórico recente, apaixonante, popular que ele já havia visto em Paris nas pinturas de Delacroix, Géricault”, entre outros. Com a Batalha de Avaí, Pedro Américo mostrou grandes afinidades com a pintura do gênero batalhas, concebido no século XVII e que se prolongou até o século XVIII. Américo não pitou apenas uma batalha, mas transformou sua obra em uma epopeia que fortaleceu a história do Brasil. Segundo Jorge Coli (2002, p. 114), a pintura de Américo “anunciava o peso, cada vez mais forte, das Forças Armadas como componentes essenciais no jogo do poder”.

Américo ansiava por pintar usando seu conhecimento adquirido no universo cultural europeu e do uso prático da fotografia como modelo na pintura de história.  Américo queria inovar na pintura utilizando as inovações do uso da fotografia e dos Panoramas para pintar.

Para Lilia Moritz Schwarcz, a Pintura de Pedro Américo revelou como era ambíguo o mundo da política e quão borradas se encontravam as fronteiras entre ficção e não ficção. A tela retrata um episódio marcante da Guerra do Paraguai, embate que prefigura, ao mesmo tempo, o apogeu e o começo do declínio do Império Brasileiro. E para retratar o evento que ocorreu em 11 de dezembro de 1868, o artista não fez por menos - produziu uma pintura de 50 metros quadrados e nela jogou a sorte da monarquia. De um lado pintou o “civilizado e ordeiro” exército brasileiro; de outro, “os bárbaros” paraguaios com seus atos vis. De um lado, os vestidos, de outro, os nus. Produzida originalmente na Itália por encomenda do Estado, o quadro chegou ao Brasil em junho de 1877, e a partir daí começou a sina da recepção e circulação dessa obra que tocava em temas centrais daquele momento histórico - a guerra, a violência, a presença de negros libertos, o lugar do exército e dos comandantes do Império na sociedade brasileira.

Os críticos republicanos tomaram a pintura de Américo como um quadro de “realismo brutal”, cheio de crueza chocante nas imagens.

Sobre a modernidade:

Na base dos desenvolvimentos da teoria estética, houve uma ampliação do público envolvido no mundo da arte, não apenas relativo ao uso, mas também a produção. As imagens politicas do período romântico também mudaram o público que consumia arte, Houve uma expansão dos assuntos tradicionais, da Igreja e da nobreza para setores da burguesia que viam na aquisição de uma pintura ou escultura um meio de promoção social cuja eficácia era universalmente reconhecida. Daí a fortuna de gêneros como o retrato ou o da paisagem.

Fundamental para o desenvolvimento da arte no século XIX foi à invenção da fotografia (a partir dos anos 30) com sua rápida expansão. Entre as consequências, juntamente com a possibilidade de obter imagens muito fiéis e de baixo custo em áreas como retrato ou visão, houve uma crise significativa na forma tradicional de ver pintores. Se a fotografia foi capaz de reproduzir o real em termos objetivos, os objetivos miméticos da arte foram perdidos.

Além da fotografia, novas técnicas de reprodução mais rápidas, baratas e mais eficazes que as tradicionais − litografia, aquatinta[1] e gravação em cores também devem ser consideradas para a multiplicação de imagens.

Simultaneamente com uma ampliação notável do público de amadores e amantes da arte, um crítico de arte impessoal foi desenvolvido, no mais alto nível, por Charles Baudelaire, que iniciou sua carreira literária com os artigos dedicados ao Salon of the 1845.

No pensamento moderno, o cômico, o bufão, o informe, o disforme e o horrível se unem ao grotesco. Para Nolasco (2011, p. 49) “a modernidade era a época da interioridade cristã que, na corrente de um avanço civilizacional, criou a melancolia e a contemplação”. É na modernidade que Victor Hugo opera os momentos híbridos do sublime-grotesco, como uma radiografia inquietante, risonha e desconcertante do real, da verdade que é a vida recheada de contradições. Victor Hugo (2010, p. 36) nos dá o sublime através do degradado; o feio, ao contrário, é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o ser humano, mas com toda a criação. É por isso que ele [o feio] nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos.

A incompletude do humano é assunto nas poesias de Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), um homem-poeta que perde a auréola (ou a aura) no lodo do asfalto; um indivíduo que sabe que tal infortúnio serve para alguma coisa – gozar o anonimato. Perda da Auréola, de Baudelaire, descreve a destruição da aura perante o avanço da vida urbana:

― Ora, ora, meu caro! O senhor! Aqui! Em um local mal afamado - um homem que sorve essências, que se alimenta de ambrosia! De causar assombro, em verdade.

― Meu caro sabe do medo que me causam cavalos e veículos. Há pouco estava eu atravessando o bulevar com grande pressa, e eis que, ao saltar sobre a lama, em meio a este caos em movimento, onde a morte chega a galope de todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, em um movimento brusco, desliza de minha cabeça e cai no lodo do asfalto. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que me deixar quebrar os ossos. E agora, então, disse a mim mesmo, o infortúnio sempre serve para alguma coisa. Posso agora passear incógnito, cometer baixezas e entregar-me às infâmias como um simples mortal. Eis-me, pois, aqui, idêntico ao senhor, como vê!

― O senhor deveria ao menos mandar registrar a perda desta auréola e pedir ao comissário que a recupere.

― Por Deus! Não! Sinto-me bem aqui. Apenas o senhor me reconheceu. De resto, entedia-me a dignidade. Além disso, apraz-me o pensamento que um mau poeta qualquer a apanhará e se enfeitará com ela, sem nenhum pudor. Fazer alguém ditoso – que felicidade! Sobretudo alguém que me fará rir! Imagine X ou Y! Não, isto será burlesco!65 (BAUDELAIRE, 1995, XLVI p. 73).

Walter Benjamin recorre ao texto Perda da Auréola para descrever a destruição da aura na obra de arte. Romper com a tradição, as regras e os padrões, assim é a perda da aura em Baudelaire, um poeta em choque com a crescente urbanização parisiense, com a parte suja, repugnante e fria do urbanismo, do tecnológico e do capital.

 

Referências bibliográficas:

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

BAUDELAIRE, Charles. Petits Poèmes en prose: O Spleen de Paris: Pequenos poemas em prosa. Tradução de Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

 ______. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

 COLI, Jorge. O sentido da batalha: Avahy de Pedro Américo. Proj. História. São Paulo

(24), 2002. Pp. 113-127. Disponível em < https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10615>. Acesso em abril de 2018.

 GOMPERTZ, Will. Isso é arte?: 150 anos de Arte moderna. Do impressionismo aos

dias de hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

GUIMARÃES, Leda Maria de Barros; COSTA, Luís Edegar de Oliveira. História da Arte II: do Renascimento ao Neoclacissismo. Licenciatura em Artes visuais Percurso 2. Universidade Federal de Goiás. Goiânia: UFG, 2018.

HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 2010.

MELLO JUNIOR, Donato. Temas Históricos. In: Victor Meirelles de Lima, 1832-1903. vv. autores. Rio de Janeiro: Editora Pinakotheke, 1982, p.88.

NOLASCO, Ana. Transgressões do Belo: invenções do feio na arte contemporânea portuguesa. 2011. 293 f. Tese (Doutoramento em Filosofia Estética e Filosofia da Arte) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011. Disponível em: < http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3103/21/ulsd59723_td1.pdf>. Acesso em: março de 2015

OLIVEIRA, Vladimir Machado de. As vicissitudes das encomendas no século XIX: A encomenda a Pedro Américo da pintura Batalha do Avahy em 1872. 19&20, Rio de Janeiro, v. VII, n. 2, abr./jun. 2012. Disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_avahy_encomenda.htm>. Acesso em abril de 2018.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. A Batalha do Avaí. A beleza da barbárie: a Guerra do Paraguai pintada por Pedro Américo. Rio de Janeiro: GMT Editores, 2013.

SILVA, Verônica G. B. da. A Cultura Brasileira do Feio: Por uma noção de beleza ampliada. 2017. 233 f. Tese (Doutorado em Comunicação Social na Linha de Imagem, Som e Escrita). Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017.

  

[1] O aquatinta é um método especial de gravura artística gerada pelos meios-tons da gravura da área. É considerada uma das técnicas de impressão de gravuras mais pitorescas. A técnica aquatinta foi inventada entre 1765 e 1768 por Jean Baptiste Leprince e usada extensivamente por artistas como Francisco de Goya , Joan Miró e Hans Körnig.

 

As influências da ciência nas práticas artísticas na virada do século XIX

Figura 1- MONET, Claude. Impression, soleil levant. Óleo sobre tela. 48 × 63 cm. 1872. Museu Marmottan Monet (Paris-França). Fonte: http://www.marmottan.fr/

Figura 2- SEURAT, Georges. Le Cirque. Óleo sobre tela. 185 x 152,5 cm. 1890-1891. Musée d'Orsay (Paris-França). Fonte: http://www.musee-orsay.fr/

                         Com o século XIX, uma época de revoluções, deu-se nascimento dos “Ismos” − conceitos e concepções de ser-no-mundo. Entre 1801 e 1990, a história do mundo influenciou a história da arte em vários momentos. Era o futuro que vinha a todo vapor, ou melhor, vinha em trens nas novíssimas estradas de ferro inglesas. Industrialização, urbanização, pobreza, progresso científico e capitalismo desenfreado tornam o século XIX um terreno fértil para grandes obras de arte. Com o declínio do profissionalismo tradicional da arte e com a desintegração do sistema técnico relativo, surgiu a necessidade de colocar as atividades artísticas em relação aos outros ramos da cultura: ciência, filosofia, poesia, teatro, entre outros ramos.

                  Em 1826, o francês Joseph Nicéphore Niépce (1765–1833) fez a primeira imagem fotográfica. Em 1837, Louis Jacques Mandé Daguerre (1787–1851) inventou a fotografia ao captar a imagem de um canto de seu ateliê. Temos a imagem fotográfica de uma “Natureza-morta”. Em 1839, Daguerre, sem perceber, faz a primeira fotografia de um ser humano. Era um homem em pé que engraxava os sapatos em um bulevar movimentado. Os anos passaram e as descobertas fotográficas auxiliaram na captação de imagens paradas. Nasceram as fotografias de viagem, de guerra, documental, a fotografia-retrato e a fotografia de arte. Para Giulio Carlo Argan (1909–1992), os impressionistas enfatizavam que a fotografia não podia apreender a cor. Os impressionistas dedicavam-se a representação da vida moderna, especialmente os temas de paisagens, com base na observação direta.

                       Em 1863, o Salon des Refusés lança a arte moderna. Entre 1874 e 1886 os impressionistas realizaram a primeira e última exposição. No início da década de 1860, os impressionistas, os pintores renegados (ou a gangue de Manet) [1], fizeram a primeira revolução artística ao abandonar tradição; rejeitando a perspectiva, as figuras idealizadas e o chiaroscuro da Renascença; retratando uma fatia da vida contemporânea ou uma fotografia instantânea da natureza.  A sensação visual era o mais importante. A cor e a luz eram dignas de importante impressão sensorial, o vislumbre das mudanças da cor com a atuação da luz, do reflexo ou do clima fez com que vários impressionistas retratassem a volatilidade etérea da luz em pinceladas curtas, cortadas e distintas.

                    Um dos grandes nomes do impressionismo, e que praticamente batizou a corrente artística que surgia, foi o francês Oscar-Claude Monet (1840–1926). Com a obra intitulada “Impressão, nascer do Sol” (Impression, soleil levant, 1872), Monet nos deu um mosaico de borrões irregulares que emanam energia, impressões imediatas de um momento dado. Tons solares, cores primárias puras em pinceladas lado a lado, sombras em cores complementares (e não cinzas ou pretas) aos objetos que projetasse a sombra eram usadas por Monet em um estilo que dissolvia a forma em luz. Luz era cor para Monet, que pintava com contornos suaves, pinceladas soltas e quebradas que espelhavam a perenidade de uma natureza fugaz. Mesmo que os críticos tenham dito que a obra de Monet parecia algo inacabado, podemos perceber que “Impressão, nascer do sol”, com suas borbulhas e faixas de cor indicando barcos, ondas e o amanhecer, é uma obra totalmente acabada. Uma obra plena de mistura ótica: cores quebradas que se misturam quanto maior a distância.

                Em resumo, o Impressionismo nos deu pinturas subjetivas da vida contemporânea com paisagens ensolaradas (pintadas ao ar livre em vez de em um estúdio), com paisagens urbanas, retratos e cenas de lazer (salões de dança, ópera, balé, bares, piqueniques, etc.), em um estilo repleto de cores brilhantes (em contraste com tons escuros e suaves de pinturas acadêmicas) aplicadas em traços esboçados. As pinceladas dos artistas impressionistas foram feitas para se fundir aos olhos do espectador, não à paleta do artista. As sombras foram pintadas com cores, não pretas como antes.

            Entre 1880 e 1905, temos outro importante “Ismo” no seio das revoluções artísticas conhecido como Pós-Impressionismo. Período que surgiu após o impressionismo e que teve o nome cunhado pelo britânico crítico de arte Roger Eliot Fry (1866–1934) para a exposição londrina de 1910, Manet and the Post-Impressionists (“Manet e os pós-impressionistas”). Os artistas pós-impressionistas eram: Paul Cézanne (1839–1906), Georges Seurat (1859–1891), Henri de Toulouse-Lautrec (1864–1901), Vincent van Gogh (1853–1890) e Paul Gauguin (1848–1903).

                     Ao contrário do que parece, os pós-impressionistas não estavam reagindo contra o impressionismo, na verdade, os pós-impressionistas estavam tentando levar as ideias do impressionismo além. Mesmo não mais interessados na preocupação impressionista com o naturalismo e os efeitos momentâneos, quase todos os pós-impressionistas passaram por uma fase impressionista. As pinturas dos pós-impressionistas traziam, como assuntos, as paisagens, os retratos, as naturezas-mortas, os locais exóticos e os interiores. Os estilos dos pós-impressionistas refletiam as emoções pessoais e visões de mundo dos artistas, ao invés de uma abordagem naturalista da pintura. No Pós-Impressionismo a arte ansiava ser mais substancial com manchas de cor mais viva. No Pós-Impressionismo temos dois grupos: Seurat (teoria dos pontos) e Cézanne (planos de cor) na concentração do desenho formal, quase científico; e Gauguin, van Gogh e Lautrec enfatizavam a expressão de suas emoções e sensações através da cor e luz.

                    Um dos grandes nomes do Pós-Impressionismo foi Georges-Pierre Seurat com suas obras feitas em cores vivas em pontos minúsculos (Pontilhismo). Seurat quis estimular a visão através da combinação de cores e linhas. O todo (o quadro) deveria se fundir no olho do espectador. Seurat manteve o uso das cores vivas, sem mistura, dos impressionistas, bem como os temas (férias, céu aberto), mas acrescentou as formas geométricas e padrões rigorosamente calculados.

                    Na obra “O Circo” (Le cirque, 1891), Seurat pinta uma cena simplificada do tipo cartaz, semelhante à artificialidade do mundo do entretenimento. Através de um rascunho pictórico com pequenos toques ou pontos de cores distintas, Seurat cria imagens cheias de vibrações e animadas por jogos de contrastes de cores que ressaltam a artificialidade dos sujeitos retratados. Linhas quebradas, linhas arabescas, luzes artificiais e pontos de vista invertidos tornam a imagem plana, sem os planos espaciais que permitem que as figuras representadas ganhem vida e animam a cena. As cores brilhantes (quentes) usadas são escolhidas especificamente para expressar alegria, para envolver emocionalmente o espectador e catapultá-lo para a atmosfera festiva que vemos dentro de um circo. “O Circo” é uma obra que exala uma atividade frenética, graças ao pontilhismo − uma verdadeira obsessão com a decomposição da luz em pontos de cor.

                      No número 63 do Boulevard de Rochechouart, na esquina da Rue des Martyrs, no 18.º Arrondissement, na periferia de Montmartre, em Paris, havia o antigo Circo Fernando, depois conhecido como Circo Medrano. Foi nesse ambiente que Seurat tirou inspiração para pintar uma arena com uma amazona dançando sobre um cavalo branco, um acrobata dando uma cambalhota enquanto um palhaço, em primeiro plano, desenha uma cortina amarela. Os arabescos e as curvas da pista, onde os atores se movem, contrastam com a rigidez horizontal dos bancos, com os espectadores em alinhamento fixo. “Seurat antecipou os modernos processos gráficos de impressão em cores” (JORDÃO, 2018, p. 56).

 

Referências Bibliográficas:

 

ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna: do iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

GOMPERTZ, Will. Isso é arte?: 150 anos de Arte moderna. Do impressionismo aos dias de hoje. Rio de Janeiro, Zahar, 2013.

 

JORDÃO, Paulo Veiga. Arte Moderna: do Romantismo ao Impressionismo. Licenciatura em Artes visuais Percurso 2. Universidade Federal de Goiás. Goiânia: UFG, 2018.

 

PÓS-IMPRESSIONISMO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo891/pos-impressionismo>. Acesso em: 25 de Mai. 2018. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

 

STRICKLAND, Carol. Arte comentada: da pré-história ao pós-moderno. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.


[1] Degas, Cézanne, Sisley, Renoir, Fantin-Latour, Bazille, Pissarro e Monet.

O século XIX foi o século da pintura, porém, observamos os ganhos que a escultura logrou alcançar, principalmente, na segunda metade do século.

Figura 1- DEGAS, Edgar. La Petite Danseuse de Quatorze Ans. Escultura com material têxtil, madeira, seda, bronze, cera, linho, cetim e musselina. 1879–1881. Galeria Nacional de Arte (Washington D.C- USA). Fonte: https://www.nga.gov/index.htm

             Edgar Degas (1834–1917) é um dos grandes nomes da pintura e escultura no século XIX. Um artista que sabia representar a figura humana no momento de interrupção de um movimento tanto na pintura quanto na escultura. Degas praticamente fazia fotografias “sem pose”. As bailarinas de Degas revelam um grande cuidado com movimentos desprevenidos. A vida sem enfeites era pintada pelo pintor francês que acreditava que a arte não era um esporte para ser pintada ao ar livre ou algo feito com a intenção de agradar.

                 Os olhos Degas começaram a falhar, por volta da década de 1870, fazendo com que o artista  mudasse do óleo para o pastel e, então, para a escultura. O toque para moldar foi o que restou ao artista cego. Degas fez esculturas com grande senso de movimento. Das 69 esculturas sobreviventes, 52 estão na coleção da National Gallery. Em um interessante texto, Suzanne Glover Lindsay, da Universidade da Pensilvânia, especialista em esculturas europeias do século XIX, relata que  após a morte de Degas, em 1917, cerca de 150 esculturas de cera e argila, muitas danificadas, foram encontradas em seu estúdio. Os herdeiros de Degas contrataram a fundição de Hébrard, em Paris, para fundir 73 das esculturas em edições de bronze, embora o artista nunca tenha lançado seu trabalho em bronze.

a maioria das esculturas de Degas foi modelada a partir de cera de abelha colorida, argila seca ao ar e plastilina, uma argila não seca. Esses materiais eram às vezes combinados em diferentes proporções e construídos em torno de armaduras artesanais improvisadas. Os interiores das formas eram frequentemente preenchidos com rolhas de vinho, que são surpreendentemente eficazes na mitigação do peso da massa interior. Degas começou a modelar com pellets ou bastões de cera de abelha, às vezes aplicado em camadas para construir uma figura inteira, mas mais frequentemente usado como revestimento sobre um núcleo de fios, argila, materiais orgânicos ou gesso. Usando os dedos ou espátulas especiais, ele criou uma gama de texturas de superfície para envolver a luz absorvida e refletida.” (FAILING, 2011).

Um ótimo exemplo de uma escultura de Degas é a bailarina com tutu (Figura 1) modelada em cera de abelha translúcida e com um real cabelo loiro-escuro percorrendo camadas de cera na cabeça. “Os sapatos da dançarina são verdadeiras sapatilhas de balé, revestidos com cera rosa, mas suas meias são ilusões esculpidas. O seu corpete de tecido é uma peça de vestuário fabricada, adaptada  ao acaso para se ajustar ao corpo. [...] o frágil tutu de cinco camadas da figura parece ser o original, ou pelo menos o mesmo tutu mostrado em uma foto do inventário da escultura tirada logo após a morte de Degas" (FAILING, 2011). Porém, pesquisadores acreditam que a peça de vestuário certamente não é a minissaia gasta usada hoje pelos moldes de bronze. 

Trechos traduzidos do original Unraveling the Mysteries of Degas's Sculpture ("Desvendando os Mistérios da Escultura de Degas"), de autoria de Patricia Failing, professora de história da arte na Universidade de Washington em Seattle e editora colaboradora da ARTnews.

Referência:

FAILING, Patricia. Unraveling the Mysteries of Degas's Sculpture. Art Media ARTNEWS, llc. 110 Greene Street, 2nd Fl., Nova York, NY 10012. Disponível em: <http://www.artnews.com/2011/05/01/unraveling-the-mysteries-of-degass-sculpture/>. Acesso em 11 de junho de 2018.

UM OLHAR SOBRE ESTUDOS CRÍTICOS E EDUCAÇÃO

Surgida na década de 1920 e persistindo até hoje, a Teoria Crítica é uma vasta corrente de pensamento de diferentes autores, entre eles: Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorn (1903–1969), Walter Benedix Schönflies Benjamin (1892–1940), Jürgen Habermas (1929), Max Horkheimer (1895–1973) e Herbert Marcuse (1898–1979); com diferentes conceitos e temas entre os quais cultura e comunicação têm papel central.

A Teoria Crítica está inevitavelmente ancorada na história e constantemente é redefinida de acordo com os acontecimentos históricos, permanecendo aberta ao futuro.

O termo “Teoria Crítica”, que engloba uma vasta corrente intelectual cujas origens remontam ao tempo da República de Weimar (Alemanha, década de 1920), que continuou a se desenvolver ao longo do século passado, até hoje. O termo é usado para designar um conjunto de abordagens que vão desde a teoria da desconstrução (discurso/palavras) de Jacques Derrida ao marxismo cultural, incluindo estudos queer (estudos sobre Gênero) e estudos culturais.

 Estudar sobre a teoria crítica é adquirir a capacidade de adaptar-se ao tempo, de interpretá-lo criteriosamente, de identificar tendências nas tendências atuais, de perceber o que está acontecendo nas mídias, nas virtualidades e fornecer um quadro teórico coerente para estes conjuntos de diferentes questões em diferentes campos. É importante termos diferentes leituras críticas do meio, para não cairmos em um perigoso processo de reificação advindo do positivismo, como tendência de congelamento dos fenômenos sociais, tentando isolá-los uns dos outros, sem poder concebê-los como processos práticos inscritos em uma totalidade social. Não devemos cortar o mundo social/cultural/político/econômico em segmentos isolados e desarticulá-los, pois fragmentar os processos sociais a ponto de dissolver qualquer perspectiva da totalidade social é deixar o campo do conhecimento muito tecnicista, alienado e controlado por minorias que ditam todo o sistema social, sem pensar no coletivo. 

A Teoria Crítica propõe uma emancipação do sujeito para escapar da reprodução de processos de alienação e dominação. Porém, com a Teoria Crítica ainda existam mal-entendidos, alguns ligados aos autores da Teoria Crítica, sobre os estudos ligados a cultura serem enigmáticos. Muitos estudos culturais precisam ser reescritos em seu diagnóstico geral e seus objetivos teóricos — incluindo a facilidade de acesso aos estudos. Por exemplo, muitos estudos sobre gêneros não são de fácil acesso para vários países, principalmente, países de terceiro mundo. No campo da arte, a Teoria Crítica busca a criatividade.

A arte é transformação do pensamento crítico, é abertura aos diferentes modos de ver e agir. A teoria crítica no campo das artes rejeita o mundo dado tentando enxergar além. Ao refletir sobre a arte, temos que refletir sobre uma teoria crítica que rejeita a arte dada para olhar além. A teoria crítica no ensino da arte não pode se limitar a receber e interpretar a arte. Claro que precisamos reconhecer que a arte, como é institucionalizada e praticada hoje, no atual “mundo da arte”, ainda é uma arte sob o domínio capitalista. A teoria crítica deve nos orientar para uma ruptura clara com a arte que o capitalismo submeteu, exercitando nossos intercâmbios de ideias. O mundo da arte é o espaço onde há uma enorme mobilização de criatividade e invenção que é canalizada para a produção, recepção e circulação de obras de arte.

Os teóricos da Escola de Frankfurt foram os pioneiros no desenvolvimento de uma compreensão dialética da arte. Herbert Marcuse (1898–1979), Max Horkheimer (1895–1973), Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903–1969), Walter Benedix Schönflies Benjamin (1892–1940) e Jürgen Habermas (1929) nos mostraram como a arte, delimitada pelo capitalismo, pode ser relativamente autônoma e instrumentalizada em favor da sociedade existente. Toda obra de arte, segundo a famosa formulação de Adorno, é autônoma e, ao mesmo tempo, um fato social.

Com a teoria crítica no universo das artes, há um esforço para superar cada tendência artística, a provocar o pensamento no público, reivindicar autonomias. A arte trata de gerar significados e produzir efeitos diferentes em amplos públicos.

A teoria crítica é uma nova crítica da razão, de seus impasses, suas dificuldades, suas contradições. Na sociedade industrial, para Adorno e Horkheimer (1986), os indivíduos são absorvidos pela totalidade social, sendo o indivíduo apagado, ilusório, padronizado, tornando-se um pseudo-indivíduo. Para a teoria crítica não há identidade de sujeito e objeto, pois há alienação porque há falsidade de totalidade. Para a teoria crítica, a arte é verdade, liberdade, autenticidade em sua essência; é uma força produtiva contra as relações dominantes de produção. Porém, vive em uma estética negativa, mimética.

Benjamin prega a transformação da função da arte, pois não basta se contentar em fornecer o aparato de produção, se não for para ser transformador. No entanto, essa transformação da função da arte passa apenas pela técnica.

A obra de arte sempre foi capaz de ser reproduzida, mas a reprodução técnica é algo revolucionário. No entanto, a autenticidade da obra não pode ser inteiramente reproduzida: “a autenticidade de uma coisa é tudo aquilo que ela contém e é originalmente transmissível, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico” (BENJAMIN, 1987, p. 168). Porque não pode ser reproduzido, a autenticidade do trabalho é desvalorizada: no momento das técnicas de produção, a aura do trabalho é alcançada. A aura é o valor cultual, o valor de uso agora perdido, a obra de arte somente pode perder sua aura quando não houver mais nenhum traço de sua função ritual (valor singular, autêntico, uso original e primeiro). Possivelmente, hoje, não tenhamos mais o culto da arte. A princípio, o valor da singularidade do trabalho é baseado em um ritual que é o suporte do valor de uso do trabalho; agora, a arte é secularizada e se torna política e não religiosa: não é mais sagrada, mas profana. O que também é fantástico. A função ritual ou ritual dominada pelo valor de uso (a aura) é assim substituída pela função cultural dominada pelo valor da troca, o valor de exposição característico da indústria cultural.

Diante das observações da perda da aura e da mudança de função da arte, Benjamin recorreu a formas de arte como o cinema que, por técnica, pode atingir as massas; uma forma de acolhimento por meio do entretenimento, que é em simultâneo, lembrança mística (o indivíduo mergulha no trabalho) e entretenimento mítico (o trabalho entra na missa) e que gera empobrecimento de sensibilidade na percepção. Finalmente, na arte como na política, Benjamin se opõe tanto ao comunismo como ao fascismo. O fascismo é a estetização (o tornar-estético) da vida política, culminando na guerra, em que as massas são treinadas; para os fascistas “a guerra é bela” (segundo o “slogan” do futurista fascista italiano Marinetti [1]). Para Benjamin, o comunismo foi à politização da arte, seu devir político, na qual as massas contribuíram e participaram.

Para Adorno, a arte perdeu sua essência devido às leis do mercado, valor de troca, capital, alienação, totalidade, totalidade como alienação ou falsidade, totalização e totalitarização pela razão e devido à proximidade do público, o comércio, a indústria cultural. Esta perda de liberdade da arte, perda de sua especificidade e sua autonomia, faz com que a arte se encontre em uma situação sem saída: após ser libertado de sua função de culto (ou religiosa), se fez prisioneiro de sua carreira, da função cultural, da função de exposição. A função de exibição, pela indústria cultural, torna a arte uma mercadoria e um veículo ideológico (a serviço da dominação), impossibilitando qualquer arte revolucionária. A arte é, portanto, equívoca e paradoxal, porque é verdade (liberdade), mas na falsidade da realidade em que participa e contribui, mesmo quando a transforma. Sobre alienação, entendemos a alienação artística é alienação de significado; o significado é alienado dele porque nele a liberdade, que é um predicado de significado, torna-se sujeita, transformando-se em idealidade, e o significado torna-se seu predicado: significado alienado.

Como a arte, então, pode auxiliar em uma pedagogia critica? Possivelmente através da percepção, do modo de nos tornarmos conscientes da realidade que nos rodeia através dos nossos sentidos. Perceber é, em certo sentido, sentir. Quando não alienados, a arte consegue atuar justamente em nossa sensibilidade.

O ensino das artes promove criatividade, outras habilidades favoráveis à inovação e a consciência cultural. O ensino artístico permite desenvolver os modos de pensar, as atitudes e habilidades sociais consideradas essenciais pelas sociedades. Porém, a educação da percepção não pode ser apenas uma instrução teórica, mas, também, deve ser uma aprendizagem pela prática e experiência, e é em contato com obras de arte, com o ensino de artes, com o fazer e a capacidade critica para transformar o ambiente ao redor que esta experiência pode ser experimentada. Os diálogos, as diferenças culturais, as pedagogias que revelam as fronteiras entre o saber, o ver e o fazer devem ser exploradas.

O ensino crítico das artes visuais serve para provocar a imaginação, despertar a sensibilidade e estimular o pensamento crítico e desenvolver o julgamento. A arte e a educação são complementares e nos permite desenvolver outro modo de apreensão do mundo.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1988.

ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. de Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.

_________. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história a cultura. Obras escolhidas. Vol 1. São Paulo: Editora Brasiliense: 1987.

MARTINS, Raimundo. Estudo Críticos e Educação. Licenciatura em Artes Visuais. Percurso 2. Eixo 4. UFG. Goiânia: UFG, 2018.

MATOS, Olgária C. F. A Escola de Frankfurt: luzes e sombras do Iluminismo. São Paulo: Moderna, 1993.

RÜDIGER Francisco. Theodor Adorno e a crítica à indústria cultural: comunicação e teoria crítica da sociedade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

 



[1] Filippo Tommaso Marinetti (1876–1944) foi escritor, poeta, editor, ideólogo, jornalista e ativista político italiano. Fundador do movimento futurista (1909). Cf. Walter BENJAMIN, Magia e Técnica, Arte e Política (1987, pp. 195–196).

 

O processo de Ensino e Aprendizagem

 

 

Aprendizagem é um processo contínuo, uma experimentação concreta (fazer algo), uma reflexão sobre o que é feito (o pensar), um fazer algo novo ou melhorar a mesma coisa de uma forma elaborada com base no aprendizado (experimentação ativa), um ato de conversar com outras pessoas e aplicar o que já se sabe à situação. Aprender é um estímulo (motivar, inspirar, induzir) para as habilidades e conhecimentos necessários; uma interação; uma motivação; uma maneira como recebemos informações (percepção) e como as processamos em nossa cognição (como lidamos com a informação). Segundo Ana Ignez Belém Lima Nunes e Rosemary Nascimento Silveira (2015), aprender é o processo de adquirir novos ou modificar conhecimentos, comportamentos, habilidades, valores ou preferências existentes.

 Nossas relações de aprendizagem são trocas de conhecimento que consistem em compartilhar o conhecimento que as pessoas adquirem através de suas experiências com o mundo. Adquirir experiências, desenvolver o pensamento, incluir, inovar, ser criativo é uma forma de constituição do ser que aprende e apreende. Ninguém aprende pelo e sem o outro.

 O cérebro infantil é plástico, maleável, cheio de sinapses, mas precisa de alguém que o guie na jornada do aprendizado. Esse alguém deve ser capaz de entender as necessidades de cada aluno, ajudar na classificação, na análise, na identificação e na organização do conhecimento. Os educadores precisam oferecer condições e suportes para desenvolver habilidades nos alunos, conduzir o desenvolvimento intelectual/afetivo, elaborar interações entre os iguais e os diferentes. Algumas vezes o educador precisa aprender a ver a criança que ainda não está lá e guia-la ao mundo do conhecimento de uma forma clara e tranquila, como vimos no filme “Como estrelas na Terra” (Taare Zameen Par, dir. Aamir Khan, Amole Gupte, 2007).

 

 

Referencial:

Nunes, Ana Ignez Belém Lima. Psicologia da aprendizagem. Ana Ignez Belém Lima Nunes e Rosemary Nascimento Silveira. 3. ed. rev. Fortaleza: EdUECE, 2015.

 

 

Obras audiovisuais:

COMO estrelas na Terra. Direção de Aamir Khan, Amole Gupte. India: Disney, 2007. Netflix (165 min.).

 

 

PROJETO Âncora. Destino: Educação - Escolas Inovadoras. Produção do Canal Futura. Brasil: Canal Futura e YouTube. 12 ep. (aprox. 60 min.). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kE6MlnwML8Y&feature=emb_title&ab_channel=CanalFutura. Acesso em: out. 2020.

 

Pela educação do povo

Anísio Teixeira (acima /esquerda) Demerval Saviani (acima/direita).   José Carlos Libâneo (abaixo/ esquerda) Paulo Freire (abaixo/ direita)
Anísio Teixeira (acima /esquerda) Demerval Saviani (acima/direita). José Carlos Libâneo (abaixo/ esquerda) Paulo Freire (abaixo/ direita)

 

O Brasil é pleno em educadores, em pessoas que lutam para o desenvolvimento do conhecimento nas diferentes faixas etárias, sociais e cognitivas. Iremos, aqui, elaborar um catálogo com resumos biográficos de alguns estudiosos da educação no Brasil.  A saber: Anísio Teixeira, Dermeval Saviani, José Carlos Libâneo e Paulo Freire.

Nosso primeiro educador é Anísio Spínola Teixeira (1900–1971), um grande jurista, escritor e educador brasileiro. Baiano nascido em Caetité, em 1927 foi para os Estados Unidos conhecer as ideias do filósofo John Dewey (1859–1952). No Brasil, no ano de 1935, cria a Universidade do Distrito Federal; criou a Escola Parque (1945); foi diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1952–1964) e debateu sobre as Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nos anos 1950. Anísio Teixeira era grande defensor da educação pública. Para o educador, a democracia somente daria certo no Brasil se começasse na educação pública. Com Darcy Ribeiro, Teixeira fundou a Universidade de Brasília, tornando-se reitor em 1963. Com o começo da Ditadura Militar (1964–1985), teve a UnB invadida por militares. O corpo de Anísio Teixeira foi encontrado no fosso do elevador do prédio em que morava no dia 11 de março de 1971. Morte acidental ou causada pelos militares?

Anísio Teixeira foi influenciado pela Escola Nova (Escola Pragmática) de John Dewey e o aprender fazendo e a educação como reconstrução da experiência. O Movimento Escola Nova defendia a escola pública, laica, gratuita e obrigatória com um plano nacional de educação. Os pioneiros da Escola Nova defendiam a função social e pública da educação, uma escola acessível a todos, laica e comum para homens e mulheres. Anísio acreditava que educação não era privilegio, mas uma necessidade assim como a democracia.

Outro grande educador nacional é Dermeval Saviani (1943), filósofo e pedagogo brasileiro. Em 1966 trabalhou em um órgão da Secretaria de Educação de São Paulo. Já em 1967, foi professor do Curso de Pedagogia da PUC/SP e ajudou a criar os Cursos de Mestrado e Doutorado em Filosofia da Educação nessa Instituição. O pedagogo tinha uma visão progressista sobre a educação no Brasil. Para Saviani, o papel da escola é revelar aspectos essenciais das relações sociais. Para a Pedagogia Histórico-Crítica, defendida por Saviani, o papel da educação escolar é a de possibilitar o acesso dos indivíduos a cultura letrada. Para Saviani, a educação não deve ser uma fonte de marginalização. Com a teoria marxista, Saviani mostra as contradições da ideologia capitalista. Em “Para além da curvatura da vara”, os discentes entram para a escola com uma visão sincrética, confusa, e o papel da escola é fazê-los ultrapassar essa visão confusa, chegando a uma visão sintética. É um passar da visão sensorial imediata (empírico) para chegar ao concreto (unidade na diversidade). Resumindo, o ponto de partida é o empírico, passando pela mediação do abstrato e reconstruindo o concreto (ponto de chegada do conhecimento).

Nosso terceiro intelectual da educação brasileira é José Carlos Libâneo (1945), um intelectual e escritor brasileiro que desenvolveu reflexões sobre didática e prática de ensino. A escola deve ter um papel fundamental na luta contra as desigualdades e a exclusão social. Para Libâneo, o aluno integra um contexto sociocultural, os conteúdos oferecidos precisam fazer sentido e envolver os estudantes, ou seja, a aprendizagem deve ser significativa. Libâneo propõe a Pedagogia Crítica Social dos Conteúdos.

E, finalmente, aquele que é tão amado e odiado no Brasil, Paulo Reglus Neves Freire (1921–1997) foi um educador e filósofo brasileiro. Freire foi o mentor da Educação para Consciência. O Método de alfabetizar Paulo Freire, idealizado em 1962, é mais que um método que alfabetização. É uma ampla e profunda compreensão da educação. Com uma proposta para a alfabetização de adultos, Freire testou o método na cidade de Angicos (RN) onde alfabetizou 300 cortadores de cana em apenas 45 dias. O educador criticava o sistema tradicional que utilizava a cartilha (repetição de palavras soltas) como ferramenta central da didática para o ensinar da leitura e da escrita.  Para Freire, não bastava ler, era preciso compreender contexto social da leitura. O método propõe a identificação das palavras-chave do vocabulário dos discentes — as palavras geradoras.

 Anísio, Saviani, Libâneo e Freire chamam nossa atenção pelo fato de se dedicarem ao que temos de mais precioso, a educação. E mesmo assim, são até odiados em pleno 2020. Paulo Freire é odiado por pessoas que o chamam de “comunista” pelo simples fato de Freire ensinar o povo a educação do cotidiano, da leitura ao redor e de mundo, fugindo da massificação de palavras e ensinamentos engessados. Quatro educadores que criaram importantes métodos focados na educação sociocultural de um povo oprimido.

Paulo Freire e a "palavramundo"

 

Para Paulo Freire (1989, p. 9), “[…] uma compreensão crítica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, […]”. Saber ler o mundo nos ajuda a ler as palavras, pois a linguagem e a realidade são atos unidos, havendo necessidade de relacionarmos o texto com o contexto. Primeiro devemos ler o mundo ao nosso redor e depois ler a palavra. Ler o mundo particular e depois ler a “palavramundo”, nos ajuda a re-criar e re-viver outros mundos dentro de cada palavra. Antes de sabermos pegar em um lápis e riscar palavras, aprendemos e apreendemos nosso olhar no mundo ao redor (particular, interior e exterior), é uma atividade perceptiva. Uma “percepção rio”, ou seja, um fluxo constante e sempre diferente de percepção, um aumento na capacidade de perceber. Percebemos o mundo imediato através das palavras, das oralidades dos mais velhos, “expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores” (p. 10).

Somos primeiramente alfabetizados em casa, no mundo familiar, e depois alfabetizados pelos docentes. São os professores de nossa infância que nos ensinam a ler o mundo, nos ensinando a importância do ato de ler e de escrever — um elo. A alfabetização deve nos guiar em apreender a significação profunda dos objetos. Apreender é assimilar, é compreender profundamente e fixar na mente para o eterno de cada Ser.

O ato de ler é um ato de “arqueologia” de nós mesmos, de nossa existência no Reino das Palavras, desde a infância até o último dia de respiro.

 

[…] sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador. […]. A alfabetização é a criação ou a montagem da expressão escrita da expressão oral. Esta montagem não pode ser feita pelo educador para ou sobre o alfabetizando. Aí tem ele um momento de sua tarefa criadora. (FREIRE, 1989, pp. 12–13).

 

 

O movimento de aprender é um ciclo, um “[…] movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo […]” (p. 13). Para Freire, as palavras devem vir carregadas de significação da própria existência de quem é guiado ao invés da experiência de quem guia, pois, as palavras do Povo estão sempre grávidas de mundo. O ato de ler deve começar pelo espaço ao redor do leitor e ir ampliando o espaço geográfico até outros mundos, isso seria uma “ação contra-hegemônica” (GRAMSCI apud FREIRE, 1989, p. 14).

 

 

 

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados, Cortez, 1989. (Coleção Polêmicas do nosso tempo, 4), p. 9- 14.

Do porão a palmatória em Rugendas

 

 

O pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802–1858) viajou durante dezesseis anos pelas Américas. O intuito? Uma coleção de imagens americanas, um álbum americano do pintor viajante em uma pitoresca viagem. Um álbum repleto de vegetação, montanhas, nuvens, pessoas comuns, costumes, trajes locais, monumentos, cenas históricas, paisagens, faunas e floras pitorescas, botânicas e artísticas. O “Novo Mundo” era um lugar atraente para os pintores viajantes. Vindo de uma família de artistas, Rugendas pintou as faces indígenas, pretas, brancas dos países pelos quais passou. Uma dessas obras, digna de atenção pelo contexto, é “Navio Negreiro” (Nègres a fond de calle /Negros no fundo do porão, 1830, Fig.1) de Johann Moritz Rugendas.

 

Fig. 1: J. M. RUGENDAS, Nègres a fond de calle, 1830. Litografia, 35,5 centímetros x 51,3 centímetros.

                             Fonte: Wikipédia, Domínio Público

 

 

A obra supracitada está presente publicada no livro Voyage Pittoresque dans le Brésil (“Viagem Pitoresca Através do Brasil”, 1835) que reunia cem litografias produzidas durante as viagens de Rugendas pelo Brasil. A imagem representa homens, mulheres e crianças pretas abaixo do convés, com marinheiros (guardas europeus). Temos na obra um tema etnográfico da primeira metade do século XIX. Rugendas chegou ao Brasil em 1822, contratado como ilustrador para a expedição científica do Barão Georg Heinrich von Langsdorff (1774 – 1852). Na litografia percebemos a dor dos escravizados. Uma dor de quem perdeu a liberdade, uma tristeza (banzo) que é misto de revolta, nostalgia e dor. Temos um preto morto sendo retirado do porão pelos marinheiros. Provavelmente será jogado ao mar. Alguns pretos choram, outros cobrem o rosto com a mão, alguns nem olham. A luz que entra pela escotilha é pouca, a comida e a água menos ainda. Uma lanterna de querosene brilha parcamente no porão. Os pretos (velhos, jovens e crianças) estão acorrentados como animais. Não sabemos suas origens tribais, apenas que serão leiloados, caso sobrevivam a viagem no tumbeiro. Frio, fome, fedor, nenhuma higiene básica, escorbuto, péssima alimentação, pouca vitamina D, tristeza, doenças e maus tratos, assim era uma viagem nos tumbeiros.

 

Outra representação de pretos escravizados feita por Rugendas é a obra Châtiments Domestiques (“Castigos Domésticos”, 1835, Fig. 2).

 

Fig. 2: J. M. RUGENDAS, Châtimens domestiques, 1835. Litografia aquarelada, 38 × 54 cm.

 Fonte: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon94994/icon94994_180.jpg

 

Na obra temos o que parece ser uma fila de escravizados que irão sofrer castigos domésticos. Há uma preta que irá receber a palmatória do Senhor de escravizados, uma preta sendo puxada pela orelha pelo capataz, um negro de costas que parece já ter recebido o castigo e outros que já receberam ou vão receber o “corretivo” do “dono”. Eu escolhi essa imagem por uma causa bem pessoal e familiar. Sou filha de um preto baiano que teve escravizados em sua constituição ancestral familiar e uma representação dessa obra de Rugendas esteve por muitos anos pendurada na parede de casa. Na época, muito criança, nem notava o que havia no quadro ou quem era o pintor, mas hoje, sinto que meu pai devia sempre olhar para a obra com tristeza. Devido as várias mudanças de endereço da família, o quadro foi perdido, mas ainda conservo a memória da imagem dos pretos castigados naquele quadro. Lembro da expressão de medo no rosto das pretas. Vejo as mulheres brancas apenas observando com certo desdém. Mulheres e homens de um Brasil escravagista do período colonial.

 

 

 

Referências:

 

DIENER, Pablo. O Catálogo Fundamentado da obra de J. M. Rugendas e algumas idéias para a interpretação de seus trabalhos sobre o Brasil. Revista USP, n. 30, São Paulo, jun./ago. 1996, p.46–57. Disponível em:  http://www.revistas.usp.br/revusp/issue/view/1882. Acesso em: 05 nov. 2020.

 

JOHANN Moritz Rugendas. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa707/johann-moritz-rugendashttp://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa707/johann-moritz-rugendashttp://www.capoeira-palmares.fr/histor/maler_pt.htm. Acesso em: 5 de nov. 2020. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

 

TIRAPELI, Percival. Arte Imperial: do Neoclássico ao Ecletismo. São Paulo: Editora Nacional, 2006.

 

ZANINI, Walter (Org.). História geral da arte no Brasil. São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983.

 

 

ZENHA, Celeste. O Brasil de Rugendas nas edições populares ilustradas. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro, v. 3, n. 5, pág. 134–160, dezembro de 2002. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2002000200134&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 5 nov. de 2020.  https://doi.org/10.1590/2237-101X003005005 .

O IMPÉRIO ACIMA DE TODOS

 

No salão de 1789, em Paris, o pintor Jacques-Louis David (1748–1825) apresenta uma pintura neoclássica “Os Litores trazendo a Brutus os corpos de seus filhos” ( Les Licteurs rapportant à Brutus les corps de ses fils , 1787, Fig. .1). A pintura causou grande controvérsia antes da abertura do Salão, durante os primeiros meses da Revolução Francesa. A corte real estava preocupada de que uma propaganda política podia agitar o povo, por isso todos os quadros eram verificados antes de serem pendurados. Quando os jornais parisienses relataram que a monarquia não havia permitido o quadro supracitado, o povo ficou indignado e a família real foi forçada a ceder. O quadro foi, posteriormente, pendurado na exposição e protegido por estudantes de arte.

 

 

Figura 1: DAVID, Jacques-Louis. Os Litores trazendo a Brutus os corpos de seus filhos. 1787. Óleo sobre tela, 323 cm × 422 cm. Museu do Louvre.

 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:David_Brutus.jpg

 

O tema da morte a serviço do Estado foi, naturalmente, um tema inflamatório em 1789 na França. Brutus ajudou a livrar Roma do último de seus reis, o tirânico Tarquínio, o Soberbo. Como os dois filhos de Brutus, Tito e Tibério, foram atraídos para uma conspiração para restaurar o poder do tirânico Tarquínio, Davi estava enviando uma mensagem forte de apoio à Revolução ao retratar a morte dos traidores.

 Lúcio Júnio Brutus (em latim: Lucius Iunius Brutus), um líder romano considerado o pai da República e Primeiro Cônsul, está sentado em luto por seus filhos, que tentado derrubar o governo e restaurar uma monarquia. Os filhos conspiraram contra a liberdade romana. O pai ordenou a morte de seus filhos de modo a manter na República, embora à custa de sua própria família. Os litores devolvidos aos corpos dos filhos de Brutus para que enterrados pela família. David adota um formato de composição radical, colocando o personagem principal, Brutus, na esquerda extrema da tela. Por uma questão de precisão, David baseou as características de Brutus em um famoso busto antigo, o chamado Capitólio Brutus [1] (artista desconhecido, Fig.2), faça qual o pintor possuía uma cópia.

 

Figura 2: ARTISTA desconhecido. Capitoline Brutus. Séculos 4 a 3 a.C. Escultura em bronze, 69 cm. Palazzo de Conservatori, Sala dei Trionfi, Musei Capitolini (Roma).

Fonte: https://commons.wikimedia.org

 

Brutus é colocado sozinho, obscurecido na sombra, enquanto espreita para fora da tela, quase como uma carranca. Brutus senta-se para a esquerda sobre um klismos, uma antiga cadeira grega, um móvel familiar pelas representações, em cerâmica, pintada e em baixos-relevos, a partir de meados do século XV a.C. David retrata os pés de Brutus em uma postura embaraçosa e cruzada, conotando o tumulto interior do pai enlutado. Por outro lado, sua esposa é retratada de forma impressionante, enfatizando o sofrimento maternal, pois seus filhos sem cabeça são trazidos para a sala pelos litores (os antigos oficiais romanos que servia de guarda-costas dos magistrados que detinham o poder de Imperium).

Na representação de Brutus o corpo está tenso enquanto medita sobre as consequências de seu ato e notamos que a sentença de morte dos filhos afeta toda a família. A posição dos braços de Brutus (Fig.3) nos remete a figura do profeta Isaías no teto da Capela Sistina, de Michelangelo (1475–1564). 

 

Figura 3: DAVID, Jacques-Louis. Os Litores trazendo a Brutus os corpos de seus filhos (detalhe, lado esquerdo). 1787. Óleo sobre tela, 323 cm × 422 cm. Museu do Louvre. MICHELANGELO. O profeta Isaías (detalhe, lado direito). 1508–1512. Afresco, teto da Capela Sistina, Roma, Vaticano.

Fonte: https://commons.wikimedia.org

 

A expressão do pai é séria, mas também serena, quase em meditação profunda bem abaixo da de uma escultura da alegoria de Roma (Anexo 1) e ao lado de uma escultura em relevo de Rômulo e Remo mamando na Loba (a origem mítica de Roma, parte inferior do pedestal). Brutus como a representação de que o público está acima do privado, do familiar.

No centro da tela temos uma “natureza morta” representada por um cesto de costura, emblema da domesticidade, do universo feminino romano. David iluminou a dor (figura materna) e alegorizou o sofrimento (figura paterna). A tela de David nos dá o medo e a dor do luto. A mãe está sofrendo, temos uma filha ao lado dela, as mãos levantadas defensivamente e, finalmente, outra filha quase desmaiada.

 

Figura 4: DAVID, Jacques-Louis. Os Litores trazendo a Brutus os corpos de seus filhos (detalhe). 1787. Óleo sobre tela, 323 cm × 422 cm. Museu do Louvre.

Fonte: https://commons.wikimedia.org

 

As mulheres são personificações da dor que aponta para os filhos mortos, da dor que se protege, da que desvanece e da que desfalece. Já na sombra, temos o “herói” romano com o semblante sombrio de um pensador, um homem com uma feição estoica que possivelmente segura firme a sentença de morte escrita (símbolo de autoridade). David nos deu uma beleza austera com foco nas consequências domésticas, pois as mulheres estão na luz, no foco das atenções.

Existe um padrão de cores ligando diferentes partes da pintura. Vemos um pano azul na criada (véu na cabeça em sinal de luto e imensa angústia) e em um dos litores, o vermelho está na toalha de mesa e na almofada da cadeira de Brutus. Em um primeiro plano é temos o chão amarelo e cinza com armações de cimento. As junções na pavimentação acentuam a perspectiva do chão. Uma forte luz diagonal do sol destaca o corpo de um dos filhos sendo carregado pelos litores no lado esquerdo da cena, enquanto Brutus está quase completamente na sombra. Parece que Brutus está olhando para o pintor ou nós, observadores, no lado direito da tela, observando toda a cena acontecendo. Não temos uma ilusão de profundidade como nas obras renascentistas, David mostra nitidamente a cena, pois é a mensagem que importa — o dever cívico acima de tudo e o Império acima de todos.

Uma pergunta que me atormentou desde a primeira vez que vi a obra foi “como morreram os filhos de Brutus? ”. Pesquisando os esboços de David, entendi que foram decapitados e as cabeças penduradas em lanças (Anexo 2), por isso a mãe e as filhas estavam tão chocadas, acredito.

 

 

Referências Bibliográficas:

 

KIROFF, Blagoy. Jacques Louis David: 135 Master Drawings. Canada: Kobo Editions, 2015.

 

NANTEUIL, Luc De. Masters of Art - Jacques-Louis David. United Kingdom: Delphi Publishing Ltd, 2017.

 

SARTORELLI, Alberto José Colosso. A conjuração dos mortos: Jacques-Louis David, artista do porvir. ARS (São Paulo), São Paulo, v. 18, n. 38, pág. 241–265, abril de 2020. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202020000100241&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 4 de dez. 2020. 



[1] O “Capitólio Brutus” é tradicionalmente identificado como um retrato de Brutus, datado do 4.º ao início do 3.º século a.C.

 

ANEXOS

Anexo 1

 

Anexo 1: GOLTZIUS, Hendricka. Allégorie de Rome. Pintura em tapeçaria de couro. 2.15 m x 1.15 m. Ecouen, Museu Nacional do Renascimento.

 

Anexo 2

Anexo 2: DAVID, Jacques-Louis. Os Litores trazendo a Brutus os corpos de seus filhos (estudo). 1787. Óleo sobre papel montado em tela, 27,5 cm x 35 cm. National museum, Estocolmo, Suécia.

 

Um pouco de Arte Abstrata

A arte abstrata é marcada pela liberação da cor, das formas e, sobretudo, do sujeito. Tanto que, gradualmente, a figuração é totalmente deixada de lado e o conteúdo é abandonado pelo uso da forma pura. Audácia e pesquisa cromática caracterizam este período; o estilo dos artistas era cada vez mais livre das amarras acadêmicas.  Arte abstrata é a arte que não tenta fazer uma representação precisa de uma realidade visual.

 A arte abstrata foi um movimento internacional que dominou todo o século XX, e se posicionou como uma ruptura com uma concepção tradicional da arte que imitava a natureza. Não representa assuntos ou objetos do mundo natural, mas formas e cores misturadas. A palavra “abstrata” significa “separar” ou “retirar algo de outra coisa”. O termo pode ser aplicado à arte que se baseia em um objeto, figura ou paisagem, onde as formas geométricas não possuem origem com qualquer realidade visual externa. As pinturas abstratas são imagens autônomas que não se referem a nada além de si mesmas, são imagens que rompem com o mundo das aparências.

A passagem para a abstração foi feita gradualmente. Os primórdios da arte abstrata são difíceis de identificar, porém, desde o início dos anos 1900, a arte abstrata formou uma corrente central da arte moderna.  Vemos, de fato, o aparecimento simultâneo de diferentes pintores com estilos variados, cada um trazendo seu toque muito pessoal à definição de abstração. Se fosse dada uma data no início da arte abstrata, 1910 é (quase) unânime, pois corresponde à Primeira Aquarela Abstrata de Vassily Kandinsky. Esse pintor russo, ligado ao movimento de vanguarda do Leste Europeu, é o primeiro a pintar sem qualquer figuração. É assim que a arte abstrata é definida: uma arte que, ao contrário da arte figurativa, não representa a realidade, é dela abstraída. Esta arte se concentra em cores e formas. Ele está livre dos assuntos ou objetos usuais do mundo exterior.

 

Quem são os pioneiros?

Wassily Kandinsky (1866-1944): se propõe a inventar uma linguagem da emoção: grandes massas de cores combinam-se livremente com formas e linhas que falam à sensibilidade, como a música.

Piet Mondrian (1872-1944): busca uma linguagem geométrica e matemática para traduzir as forças organizadoras e primordiais de tudo o que existe: linhas ortogonais e cores primárias são dispostas em um fundo branco.

Kazimir Malevich (1879-1935): empurra os limites da simplificação da linguagem pictórica para dar conta da essência invisível das coisas. É considerado o autor do primeiro monocromo da pintura contemporânea.

František Kupka (1871-1957): cruza em sua obra abstrata o uso das cores “sensoriais” e a simplificação geométrica do tema, produzindo formas visuais e gráficas que representam o movimento. A dimensão musical também é fundamental em sua obra.

A abstração pode ser resumida em duas ideias. De um lado a busca da racionalidade, de uma ordem independente da realidade externa. Por outro lado, o desenvolvimento da função expressiva e simbólica da cor, o ritmo das formas e sua independência do sujeito. Artistas como Kandinsky e Kupka, encontram na diversidade cromática um importante painel de emoções. O vermelho brilhante ou o azul profundo, espalhados na tela, proporcionam um certo efeito no espectador, comunicam um estado de espírito.

Diferentes artes abstratas:

A arte abstrata é um movimento rico, rapidamente dividido em subcategorias com códigos muito precisos. Kandinsky é o representante da abstração lírica; no cerne de suas preocupações, encontramos o poder das emoções e o impacto da cor nos seres humanos. Malevich representa o suprematismo: um movimento que busca a pura sensibilidade pictórica, onde formas e cores são trabalhadas por si mesmas. As obras deste último são mais geométricas, menos coloridas que as de Kandinsky, comparáveis a um turbilhão de formas e cores, mas habilmente organizadas. Piet Mondrian, por sua vez, com seus quadrados de cores primárias e linhas pretas, abre caminho para a abstração geométrica, uma arte quase matemática. Também notamos o desenvolvimento do Orfismo, usado pelo casal Robert e Sonia Delaunay. Eles usam cores brilhantes e formas arredondadas cobrindo completamente a tela. Essas diferentes tendências são quase concomitantes e perduram até a década de 1930.

 

Existem muitas ideias teóricas por trás da arte abstrata. Enquanto alguns adotaram a ideia de “arte pela arte” (que a arte deve ser puramente sobre a criação de belos efeitos), outros propuseram que a arte pode ou deveria ser como a música, com padrões sonoros. A ideia, derivada do antigo filósofo grego Platão, de que a forma mais elevada de beleza reside não nas formas do mundo real, mas na geometria, também é usada na discussão da arte abstrata, assim como a ideia de que a arte abstrata não representa o mundo material, mas pode ser visto como representando do mundo espiritual.