A CULTURA BRASILEIRA DO FEIO: por uma noção de beleza ampliada

 

“A feiura é fundamental, [...]. É feia, esta que vos fala. Muito feia. Feia contida ou feia furiosa, feia envergonhada ou feia assumida, feia modesta ou feia orgulhosa, feia triste ou feia alegre, feia frustrada ou feia satisfeita ─ feia, sempre feia” 

 

 

(Moacyr Scliar) 

Introdução

  

 

 

 “O Brasil é o único país onde as feias são bonitas”, afirmou Otto Lara Rezende (apud RODRIGUES, 2007, p. 114). Será o Brasil uma terra de gente feia? A mídia provoca uma constante mudança estética no imaginário brasileiro. O feio adquire espaço em nossa atual cultura, na qual a comunicação passa a jogar com o entendimento e a sensibilidade da imagem corpórea. O corpo, tema transversal em nossa tese, é pintado, observado, esculpido, moldado, maquiado, dilacerado, fragmentado, exposto, venerado e odiado; tornando-se motivo de desejo e nojo. Belo e feio, o corpo é o suporte físico que mais representou a estética mundial e nacional. Na mídia, a partir do século XX até a atualidade, os imaginários socioculturais de gente considerada grotesca, brega ou bizarra são elementos que causam pena ou risos, pois o corpo cultural popular atua nos elementos cotidianos, nos acontecimentos corpóreos do povo, em que não há uma elegância nos modos e nos gestos, tão comuns na classe erudita.  Na obra Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, Gilberto Freyre (1980, p. 283) afirma que “todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena ou do negro”.

Nosso corpo brasileiro fascinou navegadores, mas deixou alguns cronistas e religiosos abismados. Os genitais (“as vergonhas”) dos indígenas, de ambos os gêneros, eram livres de qualquer tipo de roupa, ossos e pedras coloridas enfeitam lábios e orelhas, jenipapo e urucum dão tonalidades ao corpo. Pouco ou nenhum pelo e banhos em demasia fascinavam e assustavam o europeu que aportava em um “paraíso” ou um “inferno”. Índios pintados, escravos marcados, mulheres nuas, homens deformados, pessoas tatuadas, senhoras debochadas, malandros cordiais.... Nosso corpo escreve nossa história através da literatura, das artes, das iconografias, das mídias e das pessoas que existiram/existem na nação brasileira. Se corpos humanos contam histórias, é preciso contar a história desses corpos que encenam o par binário beleza-feiura no Brasil. No país é visível a inversão de papéis ligados às belezas naturais e as misturas étnicas que contribuem mundialmente para a erosão dos ideais clássicos de beleza.

A natureza da feiura mudou ao longo dos séculos e continua mudando. Poderíamos escrever uma história do feio, pois o que é imutável não tem história.  A beleza surge em horizontes disciplinares os mais díspares: etólogos, psicólogos, antropólogos e mitólogos de todo os continentes destacam sua função social. Para estes, o humano é objeto de cultivo da própria imaginação. Norval Baitello Junior explica:

Este momento de voltar-se a si mesmo, apontando para a possibilidade de construir-se, do refazer-se, do melhorar-se ou piorar-se, do embelezar-se ou enfeiar-se, constitui a ponte para a superação das amarras da realidade físico-biológica denominada pelo semioticista Ivan Bystrina de “Primeira Realidade” (BAITELLO JUNIOR, 1997, p. 02).

Para Ivan Bystrina (1924-2004), a “segunda realidade”[4] é a realidade da qual fazem parte o vestir, os gestos, as artes, as danças, os rituais, a literatura, os mitos, o morar e suas formas individuais e sociais, os hábitos (comer, beber, cumprimentar, relacionar-se), as religiões, os jogos e os brinquedos. “Segunda realidade” são os fenômenos que superam os limites da natureza e o mais incontornável deles, a própria morte, oferecendo como soluções, de nível simbólico, textos imaginativos e criativos da cultura. Ora, o sonho, a fantasia e o imaginário constituem o mecanismo fundante dessa fabricação/construção social da beleza e da feiura do mundo cultural. Tal construção também caminha pela nossa relação histórica com os “objetos” do belo, passando, sem sombra de dúvida, pelas práticas corpóreas. O mundo dos objetos artificiais, técnicos, estéticos e culturais, ultrapassa a realidade biológica, ao mesmo tempo em que aguça a curiosidade e a fabulação do ser humano.

Na introdução da obra História da Beleza (2004), Umberto Eco explana sobre o paradigma da beleza e seus adjetivos, associando-o ao sublime, ao gracioso, ao que agradava os sentidos – o Belo e o Bom. Ao longo do livro surgiram em diálogo profícuo beleza e natureza, beleza e arte, beleza de consumo e de moda. Na obra História da Feiura (2007), o feio era associado aos valores negativos como a monstruosidade ou a maldade. Mas Eco, em longa exposição, afirmou que, ao final, a feiura triunfou na contemporaneidade. E que hoje, os limites entre o belo e o feio não são tão nítidos assim. Foi exatamente este limiar (ainda incerto e complexo) no movimento entre beleza e feiura no Brasil que nossa tese investigou.

Possuímos certa feiura renegada, escondida, esconjurada, mas presente em nosso imaginário, em nossos relatos de alteridades. As possibilidades de representação de outros modos de ser brasileiro, na mídia, revelam que somos uma nação com uma estética para nós, brasileiros, e para os outros, estrangeiros. Somos como os “Novos Baianos”, da composição “Sampa” de Caetano Veloso, que passeiam na garoa paulistana e curtem “numa boa”; que chegam a uma cidade de duras edificações e observam meninas discretamente deselegantes, pessoas que encaram a própria face de frente e a chamam de “mau gosto”, afastando o que não é conhecido. Porém, as pessoas, Narcisos que admiram belos reflexos, aprendem depressa a chamar de realidade “o avesso do avesso do avesso” [5], fazendo o feio, a cidade de feia fumaça que apaga as estrelas, ser bonito por uma questão de aproximação, entendimento e absorção. Somos um povo pleno de ludicidade. Nossa esperança, fantasia, utopia, nos levaram à poesia, ao amor e, finalmente, à festa: “O Brasil não é um país sério”, afirma Charles de Gaulle ou, segundo Franco Zefirelli[6], “O Brasil é o último país feliz do mundo”. Porém, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil é o país mais depressivo da América Latina com, aproximadamente, 5,8% da população nacional afetada pela depressão[7]. Talvez, para um olhar estrangeiro, ainda sejamos o último país feliz, mas a realidade é que a depressão está em todos os continentes.

Para Luiz Felipe Pondé o ressentimento humano nasce da inveja dos deuses, inveja da imortalidade, em que o “Conhece-te a ti mesmo” [8] significa “saibas que tu é mortal, e nós deuses, não”. Percebendo a própria imortalidade, resta ao humano o desejo de “nunca ser traído, nunca fracassar, nunca ser menos inteligente, nunca adoecer, nunca ser feio”. A feiura brasileira é a da resistência cultural de um feio ressentido que precisa resistir aos padrões impostos pelas culturas dominantes. (Re)Sentir é sentir-se constantemente e novamente brasileiro, em um ato cíclico de projeção-identificação: ordem-desordem-interações- encontros-organização-ordem [9]. Nossa intenção, o objetivo da tese ao lidar com a feiura nacional, é trazer e sentir a ubris/hybris, o descomedimento, e o caos, a desintegração organizadora, como um imaginário criativo para o elemento feio. (Re)Sentir, aqui, não é “ressentir”, como explica Maria Rita Kehl (2004): Ressentir-se significa atribuir a um outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar. (KEHL, 2004, p. 11).

Não culpamos outros por nosso jeito brasileiro de ser. Pelo contrário, o próprio povo brasileiro canta: “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”[10]. Nosso “descobrimento”, nossa arte, nosso corpo, nossas críticas debochadas, as memórias e lembranças culturais são os elementos que nos constroem esteticamente, repensando nosso modo de ser e estar dentro da feiura como forma de nos reelaborarmos em nossa cultura. Nosso estudo é sobre o povo brasileiro e a estética com uma identidade plural. Segundo Alfredo Bosi, em Cultura Nacional: temas e situações:

Plural sim, mas não caótica; (...). Fazer seu levantamento e divisar no claro-escuro do cotidiano as relações entre vida simbólica, econômica e política, é recusar-se a cair na tentação do absurdo que nos ronda mal deitamos os olhos nas manchetes de jornais (BOSI, 1987, p. 15).

Para Hélcion Ribeiro (1994, p. 29), o indivíduo brasileiro possui cinco dimensões: povo plural, novo, pobre, violento e “católico”. Já em uma direção antropológica e subjetiva, nosso caráter nacional combina oposições, estabelece relações, resiste, vive de um espírito lúdico próprio, peculiariza seus espaços sociais e enfatiza alguns novos atores sociais. Desta mistura objetiva e subjetiva surge, a partir do olhar da alteridade, o sujeito brasileiro. Quem é o ser humano brasileiro, afinal? Não existe um, mas muitos homens diversamente brasileiros devido a nossa pluralidade sociocultural.

Nos caminhos e descaminhos da história de formação do povo, desde o “descobrimento”, o imaginário que se constrói, revela um discurso que parece “ensinar” a necessidade de superar a dicotomia belo-feio como condição de possibilidade de uma beleza ampliada. “Caminhos”, segundo Marlise Meyer (2001, p. 13) “que varam fronteiras, as da geografia, as das classes, dos gêneros literários, das disciplinas”. Nossa tese é uma serpeante viagem entre as teorias da estética e informações da cultura brasileira. A ideia de um sujeito estável, produto de uma mentalidade positivista, parece desmoronar ante a profusão de novos significados atribuídos por diversos lugares simbólicos partilhados por um mesmo sujeito. A própria ideia de “nação” é um bom exemplo de como o grupo de pertencimento por excelência padece do mesmo mal das instituições contemporâneas: a precariedade. A brasilidade, inspirada no conceito de “inglesidade”, citado por Stuart Hall (2003, p. 49) está aberta a toda uma série de ressignificações. A ideia de Brasil que se quer mostrar, do brasileiro comum reificado pela mídia nativa, está em processo de plena mudança.

Explorando a história da feiura ocidental, trazemos no Capítulo 1 a noção de estética na história cultural e explicamos nossa beleza ampliada, na qual o feio e seus desdobramentos (riso, grotesco, deboche) são compreendidos como uma percepção do sentimento brasileiro e uma forma de resistência do povo. Trazemos, ainda, as atuações da feiura na cultura ocidental, em que o corpo aparece como morada do não familiar, do estranho.

Em nosso referencial teórico, exploramos a noção de beleza ampliada investigando os limiares da estética brasileira e mostrando que o belo-feio atua em nossa cultura desde antes de 1500. Temos no Capítulo 2 a exploração da presença do feio entre os primeiros habitantes do Brasil, antes e depois do olhar estrangeiro. O capítulo intitulado Poxiculturografia Brasileira trouxe o feio (do tupi, poxi) como um elemento estranho e curioso em uma terra recém-descoberta. Vemos a cultura brasileira do feio e o imaginário como capacidade que permite pensar nossa beleza diferente, na fealdade, no fóssil Luzia, no fálico, em nossa primeira imagem gravada e no maravilhoso/desconhecido. Navegamos pelo feio brasileiro presente no “Jardim das Delícias” (o Brasil); pela cultura indígena, na presença Do Imanifestado até o gentio, para entender o indígena como poxi-poranga (feio-bonito). E o que dizer de um país “descoberto” maritimamente tendo como nativas quase deusas bronzeadas (mulher e beleza/feiura)? Nossas “musas” autóctones com as vergonhas reveladas como Adão e Eva no paraíso. Para Georges Minois (2003, p. 112), Adão e Eva são perfeitos, “eternamente belos, eternamente jovens”, seres que se movimentam em um “jardim de delícias onde tudo é harmonia; estão nus, mas sem nenhuma vergonha. Nenhum defeito, nenhum desejo, nenhuma fealdade, nenhum mal”. Nossas indígenas como Evas revelam que fomos revelados[11], mas não fomos desvelados. Não tiramos todo o véu que nos cobre, não nos mostramos como somos, mas como queremos que nos vejam. Varremos para as margens nossas partes ocultas e lá as deixamos – marginalizadas. Ainda no capítulo 2, notamos como o feio atua entre os Entes Sobrenaturais, ainda existentes em nossa cultura, e percebemos como foi o encontro do europeu com nosso povo autóctone e suas cores, indolência (para o estrangeiro, eram os índios preguiçosos) e visão do futuro. Com a colonização, a alteridade aparece no corpo do brasileiro (vermelho versus branco) e, depois, na mistura (mestiços).

No Capítulo 3, investigamos nosso imaginário da estética afro-brasileira, nosso modo de sentir o Brasil pela visão dos mestiços, dos artistas do Barroco e da misteriosa figura de Aleijadinho. Em um capítulo intitulado Laidaraculturografia Brasileira (do iorubá laidara, feio), principiamos o escárnio com Gregório de Matos e mesclamos a figura histórica de Calabar com o ficcional Calabar de Chico Buarque, revelando que “traição” é um sentimento ligado à cultura do feio no Brasil.

Por fim, no Capítulo 4, trazemos o feio, o riso e a resistência presente no humor da Chanchada, do grupo “Os Trapalhões” e de elementos grotescos[12] que surgem em nossas mídias. O deboche ganha vida e corpo na cultura brasileira do feio. Segundo Gustavo de Castro (2013, p. 107), “habitamos hoje as sociedades dos gostos estéticos e é nisso que se transformou o universo da mídia em nossos dias: novos esteticismos por minuto”.

Nossa feiura está nas ruas, nas casas, nas favelas, nas florestas, mas, principalmente, está na sociedade. O feio, como todo fato humano, está ligado ao social. Somos Homo sapiens sapiens, humano racional; Homo sapiens faber, humano que fabrica, cria algo; Homo sapiens ludens, lúdico; Homo sapiens demens, criador de sonhos; Homo sapiens sepeliens, ser que enterra seres; e Homo sapiens amphibium, passível de viver em dois mundos. Assim, revelamos um imaginário da feiura nacional vivendo e convivendo entre os espaços do conhecimento, do lúdico, das magias, crenças e mitos, nesse grande recipiente que é o Brasil.

Usamos o imaginário para produzir obras com fins estéticos e lúdicos. Porém, nosso imaginário também concebe efeitos cognitivos e propósitos pragmáticos, que motivam e orientam nossas ações individuais ou coletivas. As ciências não deixam de fornecer critérios para a montagem de um mosaico organizado, de uma colcha de retalhos, um todo que está dentro de nós, pois somos nós que construíamos as regras sociais, a linguagem, a cultura, as normas, e coube a nós, pesquisadores, entender como o pensamento complexo nos abriu um caminho, ou alguns, para compreender melhor os problemas que nos afligem, nos causam dúvidas, ou que nos deixam pessimistas diante dos acontecimentos do mundo contemporâneo. “Não há no mundo nada que saia de um bloco único, tudo nele é mosaico. Não se pode contar cronologicamente senão a história do tempo passado, sistema inaplicável a um presente que progride” (BALZAC, 1839, p. 11) [13]

Não nos preocupamos com noções da beleza/o belo. Na verdade, exploramos aquele elemento estético que opera como uma migração da própria beleza – o Feio, a Fealdade. Propomos o feio como noção estética, como qualquer coisa que constrói; abrindo caminhos para entendimento da “mesmidade”[14] de um povo brasileiro que está sempre mudando, sem deixar de ser ele mesmo.

As representações da beleza e da feiura nos campi cultural, nos diversos setores do conhecimento, nas ciências da religião, mitologia, filosofia, história, antropologia, psicologia, arte, comunicação, entre outros, têm como pressuposto a ordenação de um conjunto de estratégias utilizadas para suscitar um determinado conjunto de efeitos nos seus receptores. Em obras religiosas a representação da feiura é utilizada para manter a ordem do dualismo. Separar é do campo diabólico[15], enquanto juntar é do campo simbólico[16]. Representa-se a bondade ou a maldade. Já na mitologia, a dualidade coloca “e”, no lugar em que o dualismo colocou “ou”: bem e mal, belo e feio, verdadeiro e falso, ordem e desordem, realidade e ficção. “O indivíduo contemporâneo é sujeito convertido em simbólico que se transforma em diabólico e vice-versa”, afirmou Selma Regina Oliveira (2012, p. 59). Para José Antônio Tobias, as pesquisas sobre a feiura fortalecem nosso bom senso, nossa democracia:

As leituras, as aulas e as pesquisas sobre feiura, por mais esquisito que pareçam, fortalecem a democracia, estimulam a criatividade e a alegria de viver, incentivam a formação do espírito crítico, ajudam a florescer a vocação de artistas tidos como autores de obras feias e fomentam o desabrochamento da personalidade, valorizando a liberdade própria e a dos outros, por que mostram que as obras de arte de qualquer pessoa, por mais feias que sejam, no fundo, são belas para aqueles que conseguem vê-las e, por isso, merecem respeito, consideração, tendo direito de viver e de não serem jogadas na estrada da vida e nem encaminhadas para o desvio, onde se deposita o lixo das Ciências, das Artes, da Educação e da História (TOBIAS, 1992, p. 08).

Nossa feiura como forma de democracia estética, entende o espaço acadêmico como meio de compreensão e constante reflexão sobre os processos e relações sociais e imaginárias, a importância desta pesquisa se dá no diálogo entre a estética e os meios de criação do humano (a arte, a literatura, as comunicações, as religiões), justamente pela proposta de discussão teórica do imaginário e da estética com foco na feiura presente na mídia brasileira. Fizemos um rastreamento de algumas ocorrências das “feiuras brasileiras” no fluir do tempo, para demonstrar que o brasileiro usa o corpo como forma de embate e resistência. Para Platão (2003, p. 31), o feio é o que resiste à razão, o ininteligível. O feio tornando-se lúdico e resistindo como forma de pensamento estético e imaginário da fealdade. Quando falamos da imagem e do imaginário de algo, queremos dizer que o próprio objeto está diante de nós. Nesse processo concebemos, portanto, o mundo como imagem, ou seja, olhamos o mundo de fora, ao mesmo tempo em que fazemos parte dele; tornamo-nos sujeito e objeto concomitantemente – somos sujeitos de feiura e objeto do feio.

Partimos da teoria do “pensamento complexo” de Edgar Morin (1990, p. 35), um pensamento capaz de lidar com “incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios. A complexidade num certo sentido sempre tem relação com o acaso”. Nosso pensamento estético contextualiza, reúne e globaliza informações, fazendo nossa percepção atuar em um “tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal” (Ibid., p. 20). A complexidade traz o desconhecido e o mistério, temas deixados de lado pela ciência, para, então, construir um território multidimensional do fenômeno da beleza ampliada por impregnação de relações culturais. Para Gaston Bachelard (1986, p. 105), não há fenômenos simples, pois “o fenômeno é um tecido de relações”. Para Morin (2006, p. 08), a complexidade não é a chave do mundo, mas o desafio a enfrentar; por sua vez, o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o desafio, mas o que ajuda a revelá-lo ou a superá-lo.

O conhecimento complexo negocia com o “obscuro, o irracionalizado e o irracionalizável”; levando em conta o mito, o afeto; mobilizando o que o sujeito conheceu do mundo; vendo o ser humano como ser natural e sobrenatural, respeitando o diverso e reconhecendo o uno, segundo Gershenson Beatriz Aguinsky (2000, pp. 95). A investigação estética dos imaginários sociais, poéticas periféricas, tendências e percursos do belo e do feio da feiura brasileira mostra que a questão da beleza/feiura é complexa no Brasil porque passa pelo imaginário individual, grupal e social do brasileiro. O imaginário da feiura brasileira abre possibilidades metodológicas de investigação científica no campo interdisciplinar da estética, dos estudos do imaginário e da cultura. Seguimos o pensamento por montagem, no qual as peças estético-imaginárias vão se encaixando através de um olhar transversal sobre o corpo e os labirintos da cultura nacional, com uma fascinação exercida pela imagem que oferece uma aparência ambígua e ilusória da realidade – nosso daidolon[17].

Nosso corpus teórico é composto por discursos sobre a feiura veiculados pelos livros Estética de lo feo (Rozenkranz, 1992), História da Feiura (Eco, 2007) e O Feio (Tobias, 1960). Tais livros são o alicerce da pesquisa sobre a feiura brasileira. Usamos, também, História da estética (Bayer, 1995), Histórias das Ideias Estéticas no Brasil (Tobias, 1967), Convite à estética (Vásquez, 1999), Beleza (Scruton, 2009), As formas da beleza (Bodei, 2005) e outras obras que problematizam a estética. Obras que tratam do imaginário (Durand, Bachelard, Wunenburger, Bakhtin, Dravet), da complexidade (Morin, Castro), da cultura nacional (Ortiz, DaMatta, Prado, Chauí, Holanda, Bosi, Gomes, Freyre, Mello, Laraia, Meyer), da cultura cômica (Negrão, Sodré, Minois, Bakhtin) e tantos outros autores e obras que estão presentes em nossa pesquisa.

Como um bricoleur que se abandona a uma triagem paciente, escolhendo ou rejeitando elementos conforme a presença do estranho (não familiar), feio (desproporções corporais, rejeições sociais) e grotesco (elementos marginalizados e repletos de escárnio), a tese se afirma como uma longa meditação estética que atravessa elementos da história cultural brasileira.

 

  

 

 

 

1. A ESTÉTICA DO FEIO

 

O feio se converte em parte necessária da arte como elemento da realidade que deve representar.

 

(Karl Rosenkranz) [18]

 

 

 

 

1.1 A estética e a beleza ampliada

 

 

A beleza atrai o olhar e deleita os sentidos. A beleza baseada na imagem e na simetria procura ocultar seus elementos perturbadores e inquietantes, os aspectos trágicos, feios, cômicos, a desmesura do sublime; mas acabou revelando-os de forma ainda mais essencial. Etimologicamente, a palavra “estética” deriva das palavras gregas aisthesis, “sentimento”, e ica, “relativo à”; a definição seria então, atendendo as raízes: ciência relativa aos sentimentos. Para Marco Heleno Barreto (2008, p. 17), em Imaginação Simbólica (2008), estético é tudo aquilo que constitui a dimensão propriamente sensível de nossa experiência, o modo subjetivo como nos vinculamos ao mundo, as nossas tonalidades afetivas-ideativas-valorativas, passando pela chancela da imaginação criadora. Estética é a ciência que trata do belo em geral e da sensação que ele despertava em nós; beleza. Para Adolfo Sánchez Vásquez, na obra Convite à estética (1999), o feio não é inestético que ocorre em um estado de anestesia, na carência da sensibilidade; pelo contrário, o feio é um dado histórico que ocorre com o fluir cultural, mudando sua forma, seu conteúdo, a interpretação e representação da esfera do sensível.

Temos, pois, a Estética como ciência do belo. As dificuldades desta definição derivam exatamente do lugar central que nela ocupa o belo. Fora dela resta o que não se encontra nas coisas belas: não só sua antítese o feio, mas também o trágico, o cômico, o grotesco, o monstruoso, o gracioso etc.; ou seja, tudo que, mesmo não sendo belo, não deixa de ser estético. [...] E se estendermos o conceito, no primeiro caso, até abarcar todas as modalidades do estético (o trágico, o cômico, o sublime etc.) ou, no segundo, todas as suas manifestações artísticas, o belo acabará por perder seu conteúdo próprio. E o perderá respectivamente por excesso, ao converter-se em todo o estético; ou por defeito, como modalidade clássica, ou ao excluir da arte as formas não-clássicas do belo (VÁZQUEZ, 1999, p. 38).

O ponto de partida para pensar a feiura brasileira é História da Feiura (2007), de Umberto Eco. Se há uma história da feiura mundial, há uma história da feiura no Brasil, uma história do feio brasileiro? Chegamos a Estética do Feio (1853) de Johann Karl Friedrich Rosenkranz (1805-1879), obra que esclarece os elementos da feiura: vulgar, grotesco, abjeto, tosco, amorfo. Ao iniciar a pesquisa, encontramos O Feio (1960) e Feiura: o que é e como se cura (1992), obras de José Antônio Tobias. Com o caminhar da pesquisa, unimos diferentes elementos literários para compor a cultura brasileira do feio. A estética brasileira historicamente nasceu no período do Renascimento[19], em meio às descobertas do Novo Mundo e seus estranhos povos. Começamos nossa estética em pleno mundo grotesco; de sensações de estranheza, de contrários híbridos, de metamorfoses, no universo do absurdo. Para Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1993, p. 42), o grotesco é um mundo estranho, insólito, hostil e exterior. “É o nosso mundo que se converte de repente no mundo dos outros”. Segundo Fabiano Rodrigo da Silva Santos (2009, p. 138), “o grotesco é uma estética do outro”, que emana do polo de uma alteridade desorientadora, incompreensível, incerta ou mesmo hostil; com origens em outros mundos (fantasia, sonho, sobrenatural); outra cultura repleta de costumes populares; outros reinos da vida, incluso o bestialógico; outros estados de consciência, como a loucura, o transe, as manifestações do inconsciente e, finalmente, em um outro eu presente em nossos simulacros, nos autômatos, nos monstros e nos duplos. Pensando nesse outro eu que iniciou nossa cultura do feio nacional, decidimos que o caminho escolhido, para investigar os elementos do feio na cultura brasileira, era investigar o passado para entender o presente. Usamos a genealogia, o recuo genealógico como método. Tiramos das marginalidades históricas os elementos esquecidos pela cultura, pela iconografia e explorados pela presença de certo exotismo; elementos da feiura e também de resistência, de afirmação da cultura nacional, que produzem certo encanto do feio brasileiro.

O feio no Brasil pode ser belo? Para Nancy Etcoff, vivemos a época da beleza feia, ou seja, quando a beleza é moralmente suspeita e a feiura apresenta um encanto fascinante. Não podemos mais negar/evitar o tema da beleza/feiura na relação entre o comportamento humano e a cultura. Pensar o feio é pensar em desvantagens sociais e discriminação, é pensar como o comportamento humano é maleável, plástico e adquirido por experiências. Para Leda Cosmides, John Tooby e Jerome Barkow (1992, p. 03), “a cultura humana não é infundada e desincorporada. É gerada de maneira intrincada por mecanismos, localizados na mente humana, que processam as informações” [20]. A feiura brasileira, em seu aporte estético, é uma projeção, um aporte imaginário. O feio como algo que desagrada o sentido inteligenciado, mas que não deve ser negado esteticamente.

O feio não é sinônimo de não-estético ou de indiferente; é uma categoria estética e muda historicamente. O feio está presente na natureza e também foi criado pelo homem. [...], e o que vai significá-lo é a relação do sujeito diante do que é considerado feio (FANTIN, 2008, p. 49).

Em nossa história cultural, observamos mecanismos de identificação-projeção no imaginário brasileiro. Os elementos cotidianos que observamos em nossa literatura, em nossas mídias, nas canções, nas iconografias correspondem ao corpo histórico-cultural nacional. Mesmo que não seja nossa história cultural uma projeção sedutora deste corpo, ainda é uma representação que atrai o olhar. Tais projeções, em inumeráveis materializações, encarnam a série completa de nossos fantasmas, nossos preconceitos, ideais e ilusões, de nossas virtudes e de nossos vícios. A feiura brasileira é uma experiência sensível que se ativa pela imaginação e nos convida a outro modo de ver o povo brasileiro. É um encontro com nosso lado menos glamouroso, menos explorado pelos pesquisadores, mas, ao mesmo tempo, um lado que vem sendo consumido prazerosamente pelo grande público. Um lado sem aura (hic et nunc)[21] de uma cultura que se multiplica absorvendo e parodiando elementos de alteridades para resistir e existir como elemento único – um jeito de ser Brasil.

A cultura cotidiana do feio e suas reverberações nos revelam que há possibilidades de conciliação entre a beleza e a feiura no Brasil ao colocar elementos marginais (à margem da cultura, da história) como alternativas estéticas. Um feio que nos repele ao mesmo tempo em que atrai. O feio como um oco, um vão, um vazio que recebeu diferentes alteridades, “não apenas como uma categoria estética, mas cósmica”, segundo Charles Feitosa (2004, p. 35). O vazio representa todas as possibilidades da inteligência, ou seja, de imaginação. A manifestação do feio carece de um espaço vazio para se expressar e interagir com o mundo. O movimento da feiura ocorre em espaços vazios, na contemplação de um “cenário silencioso para olhos encantados” (o inconsciente) como afirma Rubem Alves (1995, p. 79), pois é na distorção da perspectiva em novos espaços que ocorre a tentativa de expressão de “um outro olhar” sobre o real, ocorrendo, segundo Bakhtin (1993, p. 137), a busca pela surpresa e o choque como formas de fruição estética, ou seja, um encontro com a fealdade. No vazio tudo é possível, um espaço a ser preenchido. No espaço vazio o feio pode ser o banal, o popular, o grotesco, o imoral e a resistência. Um embate, uma resistência contra o sistema histórico-cultural que oprime os elementos marginalizados. Resistência[22] do feio como uma reforma estética para continuar a existir no mundo das imagens belas. Os marginalizados, os esquecidos da cultura brasileira, usam o feio como resistência, como força de expressão ao direito de ser alguém novamente.

Ousando um pensamento transdisciplinar, tratando de assuntos aparentemente desconexos, mas ligados pela estética, pelo imaginário, tendo a feiura como eixo articulador, usamos “imaginários” (plural) para situar, segundo Jean-Jacques Wunenburger (2007, p.73), os “segmentos da experiência humana, dos ritos e das crenças”. Um pensamento transdisciplinar como campo de criação, de articulação transversal que une o social, o científico, o cultural e o estético, trabalhando nos limites de um olhar complexo, multifacetado e interconectado. Como pensamento complexo, ousamos associar termos concorrentes e complementares que criaram um conjunto necessário (humano/natureza; bom/mau; belo/feio) para o conhecimento da fealdade. Segundo Edgar Morin (1999, p. 18), os processos cognitivos se encaixam uns nos outros, fazendo do conhecimento um fenômeno multidimensional, peninsular [23], ou seja, ligado ao contexto, aos fenômenos cognitivos do qual fazemos parte. Para Wunenburger (2007, p.73), o substantivo “imaginário” remete a expressões de um indivíduo ou de uma cultura, como: fantasia, lembrança, sonho, devaneio, crença, mito, romance, ficção. “Os imaginários mais ricos, poderosos, constantes são de fácil reconhecimento: a sexualidade e a morte para o indivíduo, o religioso e o político para as sociedades”. A estética alimenta o imaginário e é, em parte, alimentada por ele, afirma Edgar Morin (2012, p.133).

Joseph Toynbee (1889-1975), na obra An Historian’s Approach to Religion[24], define o homem como um animal amphibium[25], ou seja, um ser que vive simultaneamente em dois mundos: dos afetos e do intelecto. Na verdade, Toynbee retoma um conceito criado pelo escritor inglês Sir Thomas Browne (1605-1682) na obra Religio Medici[26]. O homem como um grande amphibium, que está disposto a viver em mundos divididos e distintos, a viver entre o visível e o invisível (BROWNE, 1889, p. 66).

A natureza humana é, na verdade, uma união de opostos que não são apenas incongruentes, mas são contrários e conflitantes: o espiritual e o físico, o divino e o animal; consciência e subconsciência; poder intelectual e fraqueza moral e física, altruísmo e egoísmo; santidade e pecaminosidade; capacidades ilimitadas e força e tempo limitado; em suma, grandeza e miséria. Mas o paradoxo não termina aqui. Os elementos conflitantes na Natureza Humana [...] são inseparáveis um do outro. [...]. A natureza humana é um enigma; mas a Natureza Não-Humana é um enigma também (TOYNBEE, 1956, pp. 287-288, tradução nossa)[27].

Beleza e feiura, elementos conflitantes, mas inseparáveis.  Nossa cultura do feio é uma “transformação no contrário” (tudo o que é passa ao seu contrário), uma enantiodromia (do grego enantios, oposto + dromos, pista de corrida)[28]; um movimento constante que temos com nossos opostos psíquicos. Movimento gangorra, pendular, de compensação de um Eu que é um objeto fabricado, produzido para ser e não ser. Tal multiplicidade é feita noeticamente (nous, no espírito humano) e esteticamente (na sensibilidade humana), fazendo a mente humana penetrar no mundo das sombras, no mundo das coisas participantes; local de abstração, de transcendência, local no qual eventos psíquicos ocorrem em pares de opostos. O humano múltiplo é fruto do equilíbrio psicológico entre os opostos.

Não sabeis que só se estica um arco quando há necessidade e que, depois que foi usado, precisa ser afrouxado? Se nós o mantivermos sempre tenso, ele arrebentará e não poderemos mais utilizá-lo quando for necessário. Ocorre o mesmo com o homem: se ele permanecer sempre voltado para as coisas sérias, sem relaxar e sem se entregar aos prazeres, tornar-se-á, sem perceber, louco ou estúpido (HERÓDOTO apud MINOIS, 2003, p. 46).

De um lado do arco da vida está corpo humano, nosso espaço de individuação, do outro lado está à necessidade de superar a banalidade do próprio corpo. Desejando a beleza, o ser humano chega à feiura. Passamos da gangorra para à inflexão, a dobra[29] e, daí, à inclusão. Os pontos contrários que se movimentam pendularmente logo são uma curva no qual o belo encontra o feio e o abarca; o inclui. O resultado? A beleza ampliada. Entendemos por beleza ampliada a dilatação e a contaminação dos espaços do feio pelo belo e do belo pelo feio. É a dilatação das fronteiras definidoras da estética. A feiura como uma redenção. Ampliar a noção de beleza brasileira é uma remição para nosso imaginário cultural.  Mudamos o tempo todo, a mudança existe para nos acordar do vazio, para nos dar o choque, para mostrar que na unidade há saliências. Nossa beleza “pode encontrar-se até no que é gasto, doloroso, decadente”, afirma Roger Scruton (2009, p. 149). É através do elemento surpresa com o fim de provocar, especialmente, o estranhamento, que a feiura se torna íntima das sensações opostas: riso, medo, choro, fascínio, admiração. Morin coloca como um dos “milagres da estética” o encantamento que a tragédia nos causa, ao mesmo tempo em que aflige.

Os filmes e as séries de televisão nos falam, sem parar, dos problemas da vida que são os amores, ambições, ciúmes, traições, doenças, encontros, acasos. São “evasões” que nos fazem mergulhar em nossas almas e em nossas existências. [...], fazem-nos descer aos nossos subterrâneos, nossas “cavernas interiores”, onde reinam a violência e a barbárie, ou, então, dão um impulso imaginário a nossos desejos de aventura. [...]. O impossível é realizado, mas no imaginário, ou seja, sem perigo. [...]. Em todos os casos, a estética, como o lúdico, retira-nos do estado prosaico, racional-utilitário, para nos colocar em transe, tanto em ressonância, empatia, harmonia, tanto em fervor, comunhão, exaltação. Coloca-nos em estado de graça, em que nosso ser e o mundo são mutuamente transfigurados, o que podemos chamar de estado poético (MORIN, 2012, p. 135).

 

Não há inteligência sem afetividade, sem o estado estético, sem o transe da felicidade, da graça, da emoção, do gozo; nosso sentido inteligenciado precisa do aisthètikos, de aisthanesthai (sentir). “A estética humana possui uma raiz profunda, anterior ao ser humano”, afirmou Morin (2012, p. 133). Para pensar o feio na cultura nacional, revelamos o trágico para chegar ao cômico, o sublime para chegar ao grotesco; nossa intenção é ir além do “belo/beleza/bondade” para alcançarmos a estética brasileira e, a partir de uma beleza ampliada, compreender o feio e seus desdobramentos (riso, grotesco, deboche) como uma percepção do sentimento brasileiro e uma forma de luta por visibilidade.

Naomi Wolf comenta que a beleza não é universal, nem imutável, nem uma função da evolução das espécies. Nem todo ideal de beleza feminina é originário da “Mulher Ideal Platônica[30]; a ‘beleza’ é um sistema monetário semelhante ao padrão ouro” (WOLF, 1992, p. 15). O mito da beleza sempre determina o comportamento, não a aparência. A beleza é uma ficção conveniente aos que criam as imagens do belo. Para Etcoff (1999, p. 11), os filósofos raciocinam sobre a beleza e os pornógrafos a oferecem. “A beleza captura ardilosamente corações, aprisiona mentes, e atiça fogos-fátuos emocionais”. A beleza é composta de partes iguais de carne (pode ser modificada) e imaginação (modificada ad infinitum): “nós a impregnamos de nossos sonhos, a saturamos de nossos anseios” (Ibid., p. 11). A reverência à beleza é uma fuga da realidade, não aceitamos que o mundo seja falho, que o corpo seja falho. A beleza é um campo aberto, pois é consciente de que o real é inesgotável. Então, nosso olhar é sempre por ângulos diferentes, por novos aspectos. E quem cria as imagens da beleza? Wolf (1992, pp. 16-17) afirma que a beleza “não tem nada a ver com as mulheres”. São as instituições masculinas, os industriais dos produtos cosméticos, os estilistas, o poder institucional dos homens que ditam qual a beleza do momento, do período. Porém, os mesmos homens também brincam com as imagens da feiura. Se a beleza é uma ficção, não importa o molde. A beleza e a feiura atuam como um quesito emocional em cada um de nós, fruidores e criadores do sentimento estético. Lalo, citado por Ariano Suassuna, comenta que:

A única beleza de que poderíamos falar, só existe em nós, por nós e para nós. Não é sua maneira de ser fora de nós, é nossa maneira de pensá-los que faz a beleza dos objetos ou das pessoas, assim como também sua feiura. Porque em si eles não são belos nem feios: são o que são, e qualquer outra qualificação lhes é extrínseca e vem-lhes exclusivamente de nós (LALO, 1952 apud SUASSUNA, 2008, p. 32).

 Para Charles Lalo (1877-1953), “[...]: todo ser, mesmo feio em si mesmo, torna-se bonito quando nele se manifesta profunda emoção, é essa emoção que é o belo” (LALO, 1912, p. 72, tradução nossa)[31]. Somos inconformados com nossa imagem refletida, nossa aparência que é nossa parte mais pública[32]. Mudamos todo o tempo e nem notamos que, às vezes, atravessamos a tênue linha entre beleza e feiura. Ao atravessar tal linha invisível, entramos no campo da percepção da beleza ampliada, no espaço dos sentimentos ambíguos despertados em nosso Ser.

 

 

1.2 Feiura na cultura ocidental: o feio corpo como morada do não familiar

 

 

Estética e culturamente nosso corpo está sendo percebido como espaço de identificação, desvio e, ao mesmo tempo, fascínio. Através da estética do feio/feiura, amparados pelas obras Estética do Feio (Rosenkranz) e História da Feiura (Eco), refletimos sobre o modo como olhamos o feio corpo do outro em nossa cultura ocidental. Nessa reflexão sobre anatomia, estética e fealdade, entendemos o feio corpo como morada do não familiar. O que é considerado feio passa do universo familiar, doméstico (heimlich), conhecido, nativo (heimisch) para um campo desconhecido, inquietante, estranho (unheimlich). O feio corpo, aqui, é tomado como algo que é estranho[33] precisamente por não ser conhecido, familiar. Para Sigmund Freud (1856-1939), em O mal-estar na cultura (2010), a maior fonte de nossos sofrimentos se encontra em nossos relacionamentos, em nosso encontro com a alteridade. O feio é um não-eu, uma exterioridade absoluta. Segundo Eco (2007, p. 10), o feio é definido em oposição ao belo. O belo é o que se assemelha a quem conceitua o belo. “Os conceitos de belo e feio são relativos aos vários períodos históricos ou as várias culturas”. O que é belo em um determinado tempo histórico pode ser feio em outro. O corpo atlético já foi belo e feio, dependendo do observador e do tempo histórico. “Belo” é, constantemente, o adjetivo usado para indicar algo que agradava: beleza da natureza, das ideias, das formas, espiritual, funcional, harmoniosa, proporcional, simétrica. A beleza introduziu a luz solar, a virtude, a bondade no mundo. Porém, o belo continha em si seu duplo. O feio jamais ficou apenas na sombra do belo, sua arma foi a metamorfose. Criamos a cultura que nos cria, criamos beleza e feiura quase que conjuntamente, cruzando-se o tempo todo, pois, segundo Morin (2012, p. 63) somos seres racionais loucos, produtores, técnicos, construtores, ansiosos, extáticos, instáveis, eróticos, destruidores, conscientes, inconscientes, mágicos, religiosos, neuróticos; gozamos, cantamos, dançamos, imaginamos.

Historicamente, Remo Bodei (2005, pp. 125-154) divide o feio em sete épocas: 1) o feio é banido por ser identificado como desordem, erro, mal, sem nenhuma existência positiva, uma carência do ser (“não-ser”); 2) o feio começa a ser aceito com ajuda da religião cristã: adorando um Deus sofredor[34] que toma para si as nossas enfermidades, dores e pecados, criando e observando as figuras monstruosas colocadas em igrejas românicas e góticas com suas gárgulas e serpentes; 3) o “feio apareceu como um ingrediente do belo”, o sal, nunca usado de forma isolada, o feio como típico “ingrediente” da arte moderna com seus elementos “aórgicos” (a ordem do caos), perturbadores e “dionisíacos”. Aqui, o feio é superado devido a nossa condição de mal-estar e insatisfação que nos leva ao círculo prazer-satisfação-necessidade-prazer. Divergências entre o gosto de poucos e o do grande público, “contraste estridente entre a arte de grande elevação e a arte de baixo nível”; 4) o feio é aceito a tal ponto de não ser mais possível distinguir o feio do belo, a arte como terreno de fenômenos anormais ambíguos, deformidades do corpo e da alma, miséria moral e material, crimes, marginalização, podridão social, dos poderes e da consciência; 5) o feio como queda do homem, como o mal que existe no homem, o cômico que ri de suas próprias desgraças, de sua feiura; o feio como potência ativa, perigosa, agressiva e em contínua fermentação; 6) o feio surge como superior ao belo, como se o feio tornasse o belo autêntico; o feio da realidade; o feio fruto da violência, com suas hibridações ousadas e contorções espasmódicas ao estilo Picasso de criar; e, finalmente, 7) a desdramatização do feio em que  aceitamos a “arte feia” como “arte”. O gesto de transgredir regras e tradições, presente principalmente nos vanguardistas, parece não nos pertencer em pleno século XXI. Estamos indiferentes frente à avalanche de informações, linguagens, suportes, modas e estilos. Nada não é tão feio que não possa ser superado segundos, minutos ou horas depois.

Durante muito tempo, o feio foi preterido como fonte de pesquisa e de estudo estético. Desde os clássicos até a sociedade moderna o feio foi marginalizado. Para José Antônio Tobias, em Feiura: o que é e como se cura (1992), não podemos curar a feiura. O feio nos é intrínseco. O corpo tem função de magia, de documento, fruição, responsável por hábitos e culturas, motivo fundamental das ações e do comportamento humano. Cultuamos o corpo e suas ações. As imagens de nossa constituição física têm como condicionantes as crenças, as guerras, as religiões, as tradições espirituais, a sociedade, as convenções, a cultura e a ciência. Para Michel Foucault, o corpo é lugar de conflito:

O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as ideias os dissolvem), lugar de dissolução do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia [...] está, portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (FOUCAULT, 1979, p. 22).

Para Jean-Yves Leloup (2012, p. 09), nossa pele, assim como nosso corpo, é um “ponto sensível do contato com o mundo e podia ser também um abismo”. Nossa pele é o “nosso órgão mais extenso”, o nosso “código mais intenso, um lar de profundas memórias”. O olhar é capaz de prender a imagem do outro e absorvê-la no corpo. Nosso corpo tem memória. Quando vemos algo que nos afeta de forma negativa (anomalias/desvios/irregularidades), arredamos o olhar. Mas, em alguns momentos de curiosidade, nosso olhar é fascinado, atraído pela coisa vista, fazendo com que percamos a liberdade, pois olhar o outro é um convite ao medo, ao ato de correr riscos e se sentir mais vivo. Mesmo que o corpo do outro seja feio, estranho, com órgãos expostos − algo que deve ser somente pensado, não visto − olhamos fascinados para nosso avesso exposto. Nossa curiosidade, nossa sede de conhecimento, nos leva a olhar o que é belo e o que é feio. É como olhar imagens sagradas e profanas. Olhar Cristo, mas também admirar imagens do Anjo de luz, “portador de luz” (latim, lucem ferre), aquele que fascina pela beleza. Diabo que fascina e seduz pelos encantamentos e cativamentos. Somos como Fausto que se entrega aos encantos da alteridade inquietante. Fascinar, fascinação, fascínio... Palavras para “estado de sedução”; encantamento; deslumbramento; enfeitiçamento. O verbo “fascinar” está diretamente ligado à luz, ao olhar. “Se não houvesse luz, não haveria olhar, eu nunca seria cativado pelo olhar; é preciso haver luz, é preciso que essa luz se reflita como um ponto brilhante na superfície da córnea” (NASIO, 1995, p. 53). Somos atraídos pelo feio como mariposas pela luz. Estar fascinado é estar irresistivelmente atraído, hipnotizado.

Na “Ilíada” (Homero), temos a inserção da corporalidade feia que nos foi dada pela figura do invejoso Térsites; um homem de “cara chata, coxo, corcunda, careca, velhaco”, sem educação, pertencente a uma classe inferior (BODEI, 2005, p.19). Térsites (Figura 1) era o contrário de Esopo[35] (621 a.C.-564 a.C.; Figuras 2 e 3), pois , mais feio guerreiro da Guerra de Troia, um exemplo de anti-herói, totalmente diferente de Sócrates (471 a.C.-399 a.C.; Figura 4) e Diógenes (413. a.C.-323 a.C.; Figuras 5 e 6). Esses eram fisicamente considerados “homens feios”, mas, moralmente belos. Térsites era desprezível e Sócrates, Esopo e Diógenes possuíam caráter (êthos) ilibado. Para Paula da Cunha Corrêa (1998, p. 140), na obra Armas e varões: a guerra na lírica de Arquíloco, no “mundo de Homero, as qualidades interiores e exteriores dos homens andavam inseparavelmente unidas”. 

Para os gregos clássicos, a beleza estava no Olimpo, nos deuses, e com os deuses o grego deveria se parecer. Segundo Daniel J. Boorstin (1995, p. 209), para os gregos o corpo devia estar saudável, pois era a representação do corpo de um deus olimpiano. O corpo grego, na arte, é dinâmico, ativo. Imagens simétricas de corpos jovens (kouroi) é o protótipo do clássico nu masculino. A nudez dos atletas gregos nos jogos os distinguia dos bárbaros. O corpo nu grego era o corpo atlético, que prezava o aidos (respeito aos deuses e semelhantes), era o corpo de um ser esforçado, digno de patrocínio da cidade-estado de origem e de estátuas. As estátuas dos atletas vencedores podiam, na crença de gregos antigos, curar doenças. Não ter um corpo atlético para um homem grego era uma desgraça, pois o feio no mundo clássico representava a maldade e a vilania. Se não tinha um corpo saudável, não era um homem bom, belo e justo. Segundo Xenofonte (apud BOORSTIN, 1995, p. 211), “um homem envelhecer sem nunca ter sentido a beleza e a força de que seu corpo é capaz” era total desgraça.

Na Grécia Antiga, Platão (428/7a.C.-348/7a.C.) associou beleza à bondade e considerou o feio como o nada ontológico, o quase nada, pois não existia uma ideia do feio; o feio era considerado uma forma de resistência à razão. Para o filósofo grego, o feio era informe, ao qual não correspondia nenhuma forma. E se não tinha forma, não tinha uma existência real, nenhum modelo universal. O feio, por excelência, era indigno da forma, concebido como o grau mais aproximado do insignificante, como o “pelo, lama, sujeira, ou outra coisa o mais possível, desprezível e vil”. Para os gregos, a hybris (o descomedimento) também representava um atentado contra a ordem cósmica e social. Exceder, passar da medida era entrar no campo da feiura. Na cosmogonia do pensamento platônico, constituída por pares, como inteligível/sensível, outro/aparência, conversão/destruição, o pressuposto do feio como oposto ao belo era logicamente necessário para a existência do feio analisado em ligação com o belo. Platão trata do feio em Hipías Maior, Fedro e O Banquete. Em Hipías Maior[36], notamos as interrogações “O que era o belo? Quais coisas eram belas/nobres/excelentes (kalon) e quais coisas eram feias/vergonhosas/desprezíveis (aiscron)?”. A beleza era relativa, proveniente da mimese, da aparência; superficial e inútil; o belo sendo um prazer (hedone). Para Platão também existem coisas feias de ver, mas que dão prazer, como os atos sexuais. Com relação à arte, Platão refere-se negativamente ao feio como dissonância e discórdia, pois era imitação. O feio é algo de indefinível dado que o próprio ouro, quando não usado de um modo apropriado, é feio. Até o mais belo símio é feio em comparação com o gênero humano. Em Hipías Maior, após diálogo entre Sócrates e Hipías, vemos que Platão encerra o episódio com a certeza de que “o belo é difícil”[37] (chalepa ta kala; do grego: kalós, “belo” e kalepós, “difícil). Em Fedro[38], cujo tema é o amor (erótico, Eros), a questão do feio está ligada ao contexto da caracterização da alma humana. O feio é aquilo que surge por oposição, um estado transitório da alma pela terra que não foi tocado pelo enlevo da Beleza e da Verdade. Quando a alma caiu na terra, tornou-se impura, híbrida. “A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea. O que é divino é belo, sábio e bom. [...], o que é feio e o que é mau fazem-na [a alma] diminuir e fenecer”[39] (PLATÃO, 2000, pp. 59-60). A imagem da mortalidade humana, do pesado, do mau, do impuro e do que é relativo ao terrestre representa, por associação, a imagem do feio como tudo que degrada e leva a alma à ruína. Para Platão, a alma era alada e por qualquer causa funesta, feia (esquecimento e perversão), perde as asas e cai na terra. Já em O Banquete (do grego, tò sumpósion/sympósion)[40], o diálogo platônico ocorre em uma festa na casa do poeta trágico ateniense Ágaton, no qual o médico Erixímaco sugere a realização de um hino ao Amor. Para Dion Davi Macedo (2001, p. 28), na obra Do elogio à verdade: um estudo sobre a noção de Eros como intermediário no Banquete de Platão, Erixímaco [41] concorda com Pausânias[42], também presente na festa de Ágaton, sobre a formulação de que “o amor tem uma duplicidade, não estando apenas nas almas dos homens e para com os belos e jovens, mas também nos corpos de outros animais, nas plantas e em todos os seres”. Erixímaco exalta o homem disciplinado (kosmios), conduzido pelo Eros que veio do alto (Eros celeste). Pausânias distingue dois Amores: um pandemiano (“venerado por todo o povo”), mais popular, vulgar, inspirador de amores carnais; e outro uraniano[43], mais espiritual, designado por celeste, o amor etéreo. O amor pandemiano, que mais adiante Pausânias define como “feio”, uma vez que despreza a alma, visa apenas o corpo sem qualquer preocupação moral. Platão (1972, 202 b-204 a), em O Banquete, escreve que o amor não é belo nem feio, mas algo que fica entre dois extremos. Para Søren Kierkegaard (1813-1855), ao referir-se às discussões do Banquete platônico, afirma que amar o próximo é amar o diferente, não como um “segundo eu”, mas amar e querer bem o “primeiro tu”:

O que Sócrates fala do amor ao feio é propriamente a doutrina cristã do amor ao próximo. O feio, com efeito, é o objeto da reflexão, portanto da ética, enquanto o belo é o objeto imediato, por isso aquele que todos nós queremos amar com o maior prazer. – Neste sentido, “o próximo” é “o feio” (KIERKEGAARD, 1967, p. 413, tradução nossa) [44].

 O amor é o intermediário entre o belo e o feio, mensageiro entre dois mundos: Olimpiano (imortal) e humano (mortal). Eros é o intermediário entre o mundo da consciência e do inconsciente (um daímon)[45], traço-de-união entre o mundo dos homens e o mundo divino. Eros[46] tem uma dupla face: uma celeste e uma popular. Na face celeste, Eros é um deus antigo, não é filho de mulher, é um dos quatro princípios dinâmicos substanciais[47], a divindade primordial, juntamente com Caos, Terra e Tártaro, com a atenção e desejo voltados a outros homens, amor que não visa procriação, de princípio masculino, amor ao belo e honroso que conduz à virtude e torna o ser amado melhor, amor de ação boa e bela.  Em sua face popular, Eros é humano e tem a presença do espírito feminino, a fraqueza, a falta de inteligência, a violência de um amor arranjado e propenso ao vício e à procriação, amor de ação má e feia. Sobre a visão platônica do feio como uma “tentação dos simulacros”, Ana Nolasco, em Transgressões do Belo: invenções do feio na arte contemporânea portuguesa, afirma que: “[...] o feio encontra-se numa estranha terra de ninguém: não sendo, nem cópia, nem forma, nem o nada, é, por definição, o que não é digno de participação na ideia nem de ser aflorado como “coisa em si” pelo discurso” (NOLASCO, 2011, p. 22).

Platão coloca o feio (ou a tensão inibidora) como o aparente (o-que-parece-ser); algo feio como algo que desvia do bom caminho – da Verdade; é feio, posto que fosse cópia, algo que se afasta do original, torna-se falso, a feiura é a máscara que leva à mentira. A beleza deste mundo é um vestígio (íchnos) da Beleza suprema, da ordem no cosmo. “É conhecida a lei dos tebanos que ordenava a ele [o artista] a imitação do belo e proibia sob penalidade a imitação do feio”, segundo Gotthold Ephraim Lessing (2004, pp. 99-100), no artigo Laocoonte. O artista tebano era proibido de alcançar a semelhança mediante exagero das partes feias do modelo, ou seja, fazer caricaturas. O feio é posto, do ponto de vista moral, como negativo da kalocagatia, fusão entre o ideal moral e o belo, como algo/alguém mal: termo grego kalos deriva de kalein, “chamar, atrair a si. Kalos associado à agathos (bom), daí o termo kalokagathos (homem exemplar, plenamente realizado). Para Raymond Bayer, em Séneca, não existe diferença entre a virtude e o bem; honestum é o belo em perfeição moral e honestas é a virtude do sujeito: “O bom é o que escolhemos; o que escolhemos é o que amamos; o que amamos é o que estimamos; o que estimamos é o que é belo; logo, o bom é belo” (SÉNECA apud BAYER, 1995, p. 67). Ontologicamente o feio é o imperfeito, o inacabado, o ser-menor. Para Plotino (203 d.C.-270 d.C.), em Enéadas[48], é a predominância da figura materialmente insuficiente que origina o feio. A verdadeira beleza não é a que reside no corpo (aspecto exterior), mas nas almas (beleza interior). Plotino afirma que o humano, apegado às belezas dos corpos, permanece cego (typhlós) nas profundezas do Hades, em meio às sombras. Amar algo feio é amar a imitação. O reflexo é uma espécie de fascinação sem esperança, como se fosse um elo preso ao mundo da matéria e das aparências. O feio ligado à invisibilidade, do ser que está preso à matéria (hyle), do ser que habita o mundo das aparências. O feio absoluto é algo sem forma (morphe), sem ideia (eidos) e que não tem parte com a razão (logos). No seio do sagrado, Plotino vê o feio como algo impuro, assimilado ao pecado. Segundo Junito de Souza Brandão (1987, v. 2, p. 186), quem segue o feio torna-se “vítima de uma ilusão de que a Imago, a imagem, a umbra, sombra, são a única realidade. Mais precisamente: o esquema neoplatônico vê o mitologema como o mito equivalente à queda da alma na matéria”. A queda representa um desejo refletido da alma pelo corpo, pela particularidade, pela imagem no espelho. “Para os neoplatônicos este movimento simbolizava igualmente uma queda da unidade na multiplicidade, do Uno no muito, do pleuroma na criatura” (Ibid., p. 187). Platão e Plotino colocaram o feio como a queda do ser.

O filósofo grego Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), em A Poética, afirma que temos prazer em contemplar imagens perfeitas de coisas cuja visão nos repugna, como as figuras dos animais ferozes e dos cadáveres. Aristóteles ainda afirma que rimos dos inferiores. A comédia é a imitação de pessoas inferiores. O cômico (to gheloion), a começar pelos gregos, é uma imagem do feio representado “sem dor”; o riso (ghelos) surgia ao olharmos uma cena cômica (BODEI, 2005, p. 126).  “A comicidade, com efeito, é um defeito e uma feiura sem dor nem destruição; um exemplo óbvio é a máscara cômica, feia e contorcida, mas sem expressão de dor” (ARISTÓTELES, 2007, p. 23). O feio ligado ao cômico tinha sua importância. Para Minois (2003, p. 253) o riso deteriora as falsas certezas, em que “nossa natureza é a dor; o riso é a decepção e o erro; um belo rosto é um rosto em lágrimas; a fealdade é uma face deformada pelo riso”. Rimos perante coisas feias. Aristóteles comenta, em A Parte dos Animais[49], que o humano “é o único animal que ri” ou que “nenhum animal ri, exceto o homem”. O riso pertencia aos seres caídos, ao domínio do desprezível, do mutante, do múltiplo e do mal. Minois (2003, p. 37) ainda coloca o riso ligado a Dioniso, um deus da embriaguez e da “natureza selvagem, da possessão extática, da dança, da máscara, do disfarce, da iniciação mística”. A festa dionisíaca termina com uma saída extravagante (kômos) dos embriagados celebrantes. Mark Griffith, na obra “Aristophanes’ Frogs”, afirma que na Grécia antiga:

[...], um kômos era um grupo de foliões, uma festa semi-desenfreada, muitas vezes alimentada pelo vinho e pela música, que perambulavam pelas ruas, cantando, gritando, fazendo brincadeiras entre si ou atacando outros com zombaria e insultos (GRIFFITH, 2013, p. 04, tradução nossa) [50].

 “É da kômodia que vem a comédia, os kômodoi eram os comediantes” (MINOIS, loc.cit)[51]. No mundo divino, do imutável, da unidade, não há riso. Joana de Vilhena Novaes, em “O intolerável peso da feiura: sobre as mulheres e seus corpos”, afirma que a feiura é ligada ao risível:

Na estética, uma das formas tradicionais de o feio se apresentar é através da comédia. Na Poética de Aristóteles, a feiura aparece em uma dimensão mais amena e não causadora de dor ou sofrimento, pois tem no ridículo e no risível uma de suas formas de expressão. Também nos gêneros literários da caricatura, da sátira, da paródia, da ironia, da anedota, o feio foi explorado esteticamente em sua dimensão risível (NOVAES, 2006, p. 248).

A comicidade degrada o ser humano e o trágico o engrandece, pois “só se pode rir de uma deformidade física se ela não for sinal de dor ou doença. O riso só é aceitável em pequenas doses, para tornar mais agradável a conversação [...]” (MINOIS, 2003, p. 73). O riso é feio, mas pode amenizar a vida desde que a lei e a religião escapem ao riso. “O riso insinua-se pelos interstícios do ser, pelas fissuras e pelos pedaços mal colados da criação”, em Deus não deve haver a menor fissura; o riso se opõe ao sagrado, afirma Minois (op.cit., p. 75). Se o riso vive nas fissuras, vive nas dobras. Risibilidade e feiura vivendo nas dobras como algo múltiplo – “O múltiplo é não só o que tem muitas partes, mas o que é dobrado de muitas maneiras”, segundo Gilles Deleuze (1991, p. 14).

Para Públio Ovídio Naso (43 a.C.-18? d.C.) é necessário viver inter utrumque, entre um e outro, no entremeio [52]. Para Mário Perniola (2000, p. 80), em “Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo”, o entremeio “não ocorre só entre o belo e o humano, entre o dissídio e a harmonia, mas também entre o bonito e o feio. [...] o belo é algo muito efêmero, instável, precário, [...]”. Damos valor positivo ao que nos circunda, mesmo a presença insatisfatória do feio é sempre melhor do que sua ausência, pois sem a presença da feiura não há diferença alguma. Da Grécia para a Roma Antiga, o corpo foi a transversalidade que ligou as culturas. Percebemos que no Império Romano[53] as atividades atléticas tornaram-se “jogos”, divertimentos (de ludere, brincar) para alegrar a multidão; o corpo estava ligado à felicidade do povo. Tanto na Grécia quanto em Roma, a veneração excessiva aos atletas não era bem vista pelos filósofos e cidadãos preocupados com o culto ao corpo, ao elogio à força mais que ao saber. A feiura do corpo atlético foi reprovada por Cláudio Galeno (129/130 d.C.-199/200 d.C.), médico e filósofo romano. Para Galeno (apud BOORSTIN, 1995, p. 214), nas bênçãos do espírito os atletas não tinham parte e, por baixo da massa de carne e sangue, a alma era entorpecida como um mar de lama. Atletas não gozavam das melhores bênçãos do corpo, pois relegavam a velha norma de saúde que prescrevia moderação em tudo. Os atletas passavam a vida exagerando na comida e “dormindo como porcos”, por isso, raramente chegavam à velhice, e, quando chegavam, estavam mutilados e expostos a toda sorte de doenças. Não tinham saúde nem mais beleza e mesmo os que eram, por natureza, bem proporcionados, ficavam gordos e lerdos, perdiam a forma e a graça devido a golpes recebidos no boxe e no pancrácio. Ainda segundo Galeno, a alma entorpecida e o descomedimento alimentar deformava o ideal atlético, fazendo com que, na velhice, nem a mente fosse sã, nem o corpo digno dos deuses.

 Na antiguidade clássica, a feiura do corpo estava muito mais ligada à má-formação corpórea do que o descomedimento do atleta. Na história greco-romana não existem representações de heróis deformados, assimétricos, desarmônicos. O mito do herói estimula a tomada de consciência da perfeição possível, a plenitude da força, a introdução de luz solar; da beleza, da virtude e da bondade no mundo. Na Grécia, to kalon (belo, bom e nobre) era a oposição a to aischron (sujo, feio, vergonhoso). Para Christina H. Tarnopolsky (2010, p. 68), a palavra “sujo”, no contexto da aesthesis grega, podia ser interpretada como falta de virtude, de beleza, como algo proibido. Figuras que mostram um herói matando um monstro ecoam em nossa cultura: Teseu mata o “Touro de Minos”; Hércules mata a Hidra de Lerna, o Leão de Némea, o gigante Gerião; Perseu mata Medusa e segura cabeça decepada. São imagens de morte, mas não desviamos o olhar, pelo contrário, admiramos imagens do corpo fragmentado. A imago mortis é uma categoria estética da feiura − o asqueroso. O asqueroso é exclusivo do corpo em putrefação ou decomposição, uma categoria própria do ser humano, algo subjetivo. Além da falta de moderação corporal, do monstro que deve ser combatido, da imagem da morte e o corpo transformado em pedaços, outra feiura que deve ser contida é a figura do Outro. O sofrimento pessoal do encontro com a alteridade, do outro que invadia, fazia com que os romanos tivessem medo do feio e do diferente. Gregos e romanos desviavam o olhar aos povos bárbaros (BOORSTIN, 1995, p. 209). Gilberto Cotrim (1995, p. 134-137) relata que o cidadão romano tinha vários motivos para não gostar dos bárbaros, mas havia três motivos estéticos: os bárbaros tinham o “costume de untar o cabelo com manteiga rançosa, não tomar banho e cheirar a alho e cebola”. Segundo Raul Giovanni da Motta Lody (2004, p. 15), os bárbaros “tinham por princípio que os cabelos longos distinguiam os homens livres dos escravos (estes eram obrigados a usar cabelos curtos)”. Os romanos tinham poder e tinham certas normas/costumes de higiene, como: roupas limpas (túnicas de lã ou linho, togas), barba sempre bem feita (incluso seus escravos) e as termas romanas para os banhos públicos ou privados. Quem não tinha poder, não tinha nenhum luxo, e os bárbaros eram os  povos que tinham paixão pela caça, pelo mar; povos rústicos que usavam roupas feitas de pele de animal. Os hunos, bárbaros mongóis, comiam “raízes das plantas e carne semicrua de qualquer animal”, vestiam-se com “tecidos de linho ou com pele de ratos cosidas umas às outras” (COTRIM, op.cit.). Tais povos não deveriam ter boa aparência perante olhares da cultura clássica, então, os “não-bárbaros” tornaram o outro repugnante, era uma maneira de inferiorizá-lo. O outro é algo grotesco que nos ronda; o grotesco como uma “estética do outro” nos dando alguma forma de exceção, distorção ou excentricidade ao revelar a alteridade, afirma Fabiano Rodrigo da Silva Santos (2009, p. 266).

Umberto Eco, na obra Construir o Inimigo e outros escritos ocasionais (2011), afirma que a alteridade é a diferença que nos ameaça. Alter (do latim “outro”) era o não- Eu, o alienígena, o estranho, o forasteiro e o alheio. Para Eco, ter um inimigo é importante, pois sem inimigos a identidade pode ruir, como aconteceu com os antigos romanos. Quando o inimigo não existe, é necessário construí-lo. E como se dá tal construção? Através da estética, do sentimento e percepção do modo como vemos outro. Os romanos [54] identificaram, produziram e, finalmente, demonizaram o inimigo – o bárbaro. Os inimigos são diferentes da classe dominante detentora de poder. Os bárbaros não possuíam os costumes romanos. O estrangeiro é feio, sujo, rude e possui defeito de linguagem, portanto, de pensamento. A diferença, o nosso não reflexo, o nosso não igual, nos ameaça. Atualmente existem dois tipos de inimigo: o estrangeiro, inimigo de fora da ordem estabelecida, como os povos bárbaros para os romanos; e o imigrante, o inimigo que, mesmo participando do povo dominante, fala mal a língua, possui a cor da pele diferente, é disforme, ou seja, a fealdade e a irregularidade de forma caracterizam o aspecto exterior do inimigo.

O inimigo deve ser feio, porque se identifica o belo com o bom (kalokagathia), e um dos caracteres fundamentais da beleza foi sempre aquela que a Idade Média chamará depois integritas (isto é, o ter tudo quanto é requerido para ser um representante médio daquela espécie, pelo que, entre os humanos, serão feios aqueles a quem faltar um membro, um olho, os que tenham estatura inferior à média ou uma cor “desumana”) (ECO, 2011, p. 15).

Em cada momento histórico cultural há um inimigo: pagãos, estrangeiros, leprosos, hebreus, sarracenos (árabes e mulçumanos), loucos, judeus, negros, indígenas, mulheres[55], ciganos, heréticos, os delinquentes, ou seja, sujeitos fora da ordem social, segundo a visão do povo dominante. O inimigo é fétido [56], feio, diferente, de classe inferior. Não tem como abolir a figura do inimigo, do mesmo modo que, hoje, é difícil abolir o feio do mundo. O Inimigo humano é uma força natural, social; invasor é sempre o outro.  Como a alteridade era feia, até no prazer romano houve um lado obscuro − o riso grotesco − riso feio de histeria e horror, cuja gritaria evocava a cacofonia e o caos, o oposto da harmonia. O grotesco ligado ao hediondo e ao obsessivo. “O grotesco em geral emana do polo de uma alteridade que se mostra, por vezes, desorientadora, incompreensível, incerta ou mesmo hostil ao senso comum” (SANTOS, 2009, p.138). O grotesco não é apenas mera representação burlesca, mas uma angústia complexa e perplexa diante da erosão do ser humano, do aniquilamento do mundo. “O grotesco adquire uma relação subterrânea com a nossa realidade, e um teor de ‘verdade’”, aponta Wolfgang Kayser (2003, p. 31). Observar o outro como feiura grotesca é estar diante do repentino e da surpresa, partes essenciais do grotesco.

Deixando a feiura romana, contemplamos o grotesco na Idade Média. Esse foi um período obscuro no qual até o nascimento foi considerado algo grotesco. Inter faeces et urinam nascimur (“nascemos entre fezes e urina”), relembrou Georges Bataille ao citar Santo Agostinho (apud BATAILLE, 1987, p. 38). Para Bayer (1995, p. 31), tudo que existe estava maculado e o nascimento não é estético.  É a morte e o pecado que comandam o pensamento medieval e não há melhor meio de se familiarizar com a morte do que associá-la a uma ideia libertina, afirma Bataille (1987, p. 18). Dançar com a morte é ir ao encontro das ossadas que nos esperam em tantos cemitérios[57] – a dança macabra também era sedutora. Vivendo nos campi da repugnância e da náusea, o homem e a mulher medieval lutavam contra a morte.

O inferno é uma ideia frágil que Deus nos dá involuntariamente de si mesmo. (...) O ser se convida a si mesmo para a terrível dança cuja síncope é o ritmo dançante, e que devemos aceitá-la como ela é, já sabendo do horror que a acompanha (BATAILLE, 1987, p. 174).

Na medievalidade, ia para o inferno todo aquele que cometesse o mal; tornar-se mal era encontrar a si mesmo, mas na escuridão. “O Bem é o passivo subordinado à Razão. O Mal é o ativo que nasce da Energia. O Bem era o Céu. O Mal era o Inferno...”[58], afirmou William Blake (2007, p. 16-17). Vivendo no caos, no horror, na decadência da existência, em um inferno psicossocial em meio a tantas cruzadas, guerras religiosas, pestes e fome, a morte era sombra que perseguia. O feio nas Cruzadas[59] era a transgressão do corpo em tempos de guerra, era “sempre a transgressão, a violação dos interditos em que repousava a civilização” (BATAILLE, 1987, p. 169). Sobre os homens que participavam das cruzadas − os cruzados − Minois nos revela:

Sempre sérios, nunca penteados, raramente lavados, esses heróis de Cristo encarnam o desprezo de si que deve caracterizar o verdadeiro cristão. Com os cabelos desarrumados e hirsutos, sujos de poeira, mergulhados em sua imundície e em seu suor, eles se lançam sobre o adversário, do qual não temem a selvagem barbárie (MINOIS, 2003, p. 239).

Passamos, com o correr da história, do corpo imundo dos cruzados para o corpo santificado das imagens do Cristo morto, do corpo agonizante, da beleza do sacrifício, dos estigmas e da imolação. Aqui, o mal é o feio que educa e que gera o bem. O feio neste mundo terreno é o limite do belo. E por esse caminho, ao acolher o feio, a arte mostra o rosto enganoso do belo mundano e permitiu ao povo descobrir o divino como o verdadeiramente belo. Com o cristianismo, passamos a ter a imagem de um homem flagelado, sofrido, mas que ao tirar o pecado do mundo nos deu, segundo a teologia cristã, consolo. Eco coloca a imagem do Cristo flagelado como algo que inspira simpatia e comoção para os cristãos. Na cristandade ocidental medieval, as imagens eram valorizadas, reproduzidas e até vendidas como relíquias religiosas. Se o povo era iletrado, as imagens possuíam papel pedagógico. Iluminuras [60] eram usadas para iluminar o caminho do povo iletrado. As pinturas foram chamadas de “literatura dos laicos” (laicorum litteratura) ou “literatura dos incultos” (illiterati), afirma Władysław Tatarkiewicz (2002, p. 155). O papa São Gregório I Magno (540 d.C.-604 d.C.) considera as pinturas religiosas como “os livros dos que não sabem ler”, imagens como meio pelo qual se transmitia uma mensagem  ̶  via média (LOYN, 1997, p. 173). A via-crúcis (caminho da cruz) é o sofrimento do corpo santo do qual os fieis não desviam o olhar. Sofrimento de puro fascínio. O sofrimento usado como beleza, o pavoroso usado como espetáculo. Olhar o sofrimento, a desgraça do outro nos dá certa angústia, mas também certo alívio.

Olhar um corpo em decomposição é lembrar que pode ser o nosso corpo morto se decompondo – memento mori é o “lembre-se da morte”. Não era à toa que olhamos para acidentes, mesmo que rapidamente; nosso olhar é, em grande medida, atraído pela desgraça. Olhamos, pois queremos ter a certeza de que alguém não morreu e se há um morto, não é alguém próximo a nós. A morte causa fascínio, pois morte é finitude (meu fim, fim de outros que conheço), restando ao ser humano jogar com a fortuna labilis, a inconstância da sorte. O feio irrompe pelas brechas da fachada séria das coisas. A feiura, o grotesco e o riso retiram o indivíduo de seu ambiente cotidiano, transgredindo os limites e as regras, pois o mundo está às avessas, os tolos são coroados reis em uma inversão da hierarquia medieval; há a vivência íntima do escatológico e do obsceno na esfera pública; o mundo às avessas é um mundo perverso, afirmou Martinho Lutero (apud MINOIS, 2003, p. 321). A Idade Média era o domínio do ridículo, definido como aquilo que rebaixava, atraindo atenção para baixo e para o feio. Os artistas sabem usar o feio das caveiras, carcaças, sangue, fezes e dos vários outros elementos abjetos pelo fascínio que nos causam. Há o feio formal, que é certo desequilíbrio na relação orgânica entre partes de um todo e pode ser ligado à dominação sociocultural: um anão é visto, às vezes, como um elemento estranho em nosso mundo, algo não familiar, e tão pouco vemos vários andando pelas ruas. Porém, basta um anão passar e alguns se viram para olhar. O anão, como elemento da estética da feiura, está inserido no imaginário do grotesco; atua desde o Egito antigo, usado em rituais para afastar demônios em partos [61]. O anão é um humano, como eu/você/todos, mas pela desproporção das partes, é um elemento estranho, assim como um gigante o é. No todo, no mundo de estaturas medianas, o diferente, a baixíssima estatura causa desequilíbrio.

Entre nascer e morrer, nos resta o riso que revela nossa humanidade. O fanático não brinca, ele crê no sagrado. Nem todos toleram o riso. Os pais da Igreja acreditavam que o riso era um fenômeno diabólico, ligado à decadência humana.  Como não rir se o riso, o sagrado, o profano, o belo e o feio estão intimamente ligados? Podemos “rir do outro, desse fantoche ridículo, nu, que tem um sexo, que peida e arrota, que defeca, que se fere, que se prejudica, que se torna feio, que envelhece e que morre – um ser humano, bolas!, uma criatura decaída” (MINOIS, 2003, p. 112). Entre a metade do século XIV e o fim do século XV temos a ligação do riso com o diabo e os excluídos. O alvo preferencial dessa exclusão era o judeu. No Brasil o verbo “judiar”, tão usado na fala coloquial, guarda em sua etimologia a traição de Judas, o judeu que vendeu o Jesus Cristo. “Os hebreus escarneceram, zombaram, enfim, judiaram de Cristo, e na concepção popular nada mais justo que eles também paguem por isso, devendo também ser judiados” (PEREIRA, 1998, p. 190).  Minois afirma que, por volta do ano 1500, o carnaval era chamado de “a festa dos judeus”:

[...], os judeus, quase nus, só com uma pequena peça de tecido, devem correr até o palácio do papa. Para que tudo isso seja ainda mais engraçado, também fazem correr os corcundas, os mancos, os gordos, sob o sarcasmo, as zombarias, as brincadeiras de mau gosto. [...]. Nas farsas e nos mistérios, os judeus, associados ao diabo, são ridicularizados com ele (MINOIS, 2003, p. 250).

O feio estava ligado à imperfeição, à corrupção, aos excluídos, às criaturas decaídas e grotescas. O carnaval[62] era a desforra da feiura que ri para esquecer o medo do inferno, afirma Bakhtin (1993, pp. 40-45) ao fazer consideráveis críticas às teses do crítico alemão Wolfgang Kayser (1906-1960), destacando que ao escrever uma teoria geral do grotesco, o alemão deixa de lado a dimensão “carnavalesca do mundo”. Bakhtin liberta tudo que há de “terrível” ou “espantoso” para tornar-se “alegre”, “luminoso” e “inofensivo”. A grande expressão do grotesco para Bakhtin era a exclusão do medo e do terror para dar vazão à alegria. Renasceu o prazer terreno, a sensualidade, as cores, a luz e a beleza do corpo humano e a feiura de suas representações. Ao escrever sobre o grotesco, Muniz Sodré e Raquel Paiva, em “O império do Grotesco” (2002), trouxeram as falas de Bakthin, Kayser, Victor Hugo e outros, para o ambiente cultural grotesco mais próximo do brasileiro:

O grotesco pode tornar-se de fato uma radiografia inquietante, surpreendente, às vezes risonha, do real. Daí sua frequente desconstrução das obras criadas pelo idealismo cultural, tanto pelo apelo ao que é libidinalmente baixo quanto pela exposição do mal-estar do corpo dentro da linguagem. Grotesco é quase sempre o resultado de um conflito entre cultura e corporalidade. (...) é quase sempre também uma certa visibilidade disso que Freud chamou de “pulsão de morte”, em especial quando surge a abolição da diferença (fundacional) entre humano e não humano. Com efeito, mostra-se aí algo correspondente ao trabalho psíquico de dessubjetivação, desinvestimento dos valores simbólico e caos. A hierarquia e as diferenças são desqualificadas, instalando-se um campo de determinações, mas sem filiação nem dívida simbólicas. A racionalidade e a coerência das instituições são solapadas pelo caos e pela dissociação – funções complementares da pulsão de morte –, características do grotesco (SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 60).

As percepções que temos e formamos, partindo da dicotomia belo/feio, é que o feio é concebido a partir da visão de mundo de cada indivíduo. Nesse sentido, podemos aplicar o conceito de “excedente” adotado por Bakhtin, no livro Estética da criação verbal (1997, p. 43), que afirma que o nosso aspecto físico não entra no horizonte concreto da nossa visão a não ser no momento em que passamos a nos refletir no espelho. Nossa consciência do próprio aspecto físico, das partes do nosso corpo, da nossa aparência física, é vivida por nós internamente e só percebida externamente a partir da presença do outro. O nosso eu só existe a partir do outro e o feio só existe por causa do belo. Bakhtin colocou o caráter cômico do mundo popular como “realismo grotesco”, ou seja, a percepção de que o mundo é um grande organismo vivo, um enorme caldo cultural em que as formas são mutáveis. O realismo grotesco é o rebaixamento, era a transferência de tudo o que era elevado, espiritual, ideal e abstrato para o plano material e corporal (BAKHTIN, 1993, p. 27). Na concepção grotesca do corpo, o grotesco é ambivalente: “é a morte prenhe, a morte que dá à luz [...]. A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude” (BAKHTIN, 1993, p. 23). Para Bakhtin, o corpo não está separado do resto do mundo, não é acabado nem perfeito, mas ultrapassa a si mesmo através dos orifícios, protuberâncias, ramificações e excrescências. É no coito, na gravidez, no parto, na agonia, no comer, no beber, nas necessidades naturais que o corpo ultrapassa seus próprios limites. Nosso corpo é eternamente incompleto, criado e criador que vive simultaneamente no umbral do berço e do túmulo. Minois afirma que sobre a festa carnavalesca, existem duas visões: a séria e a cômica.

A visão oficial e séria do mundo, representada pela estética clássica, insiste, ao contrário, no permanente, no estável, no identificável, no diferenciado, e só vê, no grotesco popular, grosseria, insulto, sacrilégio, vontade subversiva de rebaixamento. Ela mantém apenas o “alto”, desprezando o “baixo”, um pouco como as estátuas de nobres portais góticos opondo-se aos monstros informes das gárgulas e dos capitéis, relegados a lugares inacessíveis. A visão séria é acompanhada de interditos, restrições, medo e intimidação. Inversamente, a visão cômica, ligada à liberdade, é uma vitória sobre o medo. Na festa carnavalesca, destrói-se, reduz-se, inverte-se, zomba-se de tudo o que faz medo. [...]; ri-se daquilo que se tem medo (MINOIS, 2003, pp. 158-159).

Com os séculos XV, XVI e XVII, as censuras religiosas eliminam as diversões licenciosas. O Carnaval, chamado de “saturnais” e “bacanais” pelos pregadores religiosos, torna-se uma abominação surgida nos tempos pagãos. As Saturnais (Saturnalia) eram festas em que, como se sabe, os antigos romanos celebravam, no mês de dezembro, entre os dias 15 e 17, o deus Saturno (do latim Saturnus que provém do adjetivo satur, -a, -um, “cheio, farto, nutrido” e do verbo saturäre, “saciar, fartar, saturar”), que era um deus da abundância (BRANDÃO, 1987, v. 2, p. 340). Um deus romano do tempo, da semeadura e da vegetação, o equivalente ao grego Crono (o podador, aquele que corta e separa). O sábado era o dia consagrado a Saturno. Na Antiguidade, o asno era um animal de Saturno e era considerado um animal muito sensual, conhecido também por sua perseverança e pretensa estupidez. No final da Antiguidade, Saturno era considerado o deus dos judeus e, nas disputas entre cristãos e não-cristãos, tanto os cristãos como os judeus eram acusados de adorar o asno (Ibid., p. 306). Nas Saturnais reinava a alegria, a orgia, a liberdade e eliminavam-se interditos de toda ordem. Já a Bacchanalia era uma celebração em honra a Baco, com caráter orgiástico. Baco (do grego Bákkhos) era, como se sabe, um dos nomes de Dioniso/Dionísio que era, exatamente, sob seu aspecto orgiástico, a divindade mais importante dos órficos. Nome esotérico e sagrado, bákkhos/Baco serviu para distinguir o verdadeiro místico, o verdadeiro órfico que conseguiu libertar-se de uma vez dos liames do cárcere do corpo (Ibid., p. 168).

 O carnaval é festa que mistura profano e sagrado, na qual o obsceno e o escatológico desencadeiam-se. “A festa faz parte da cultura, não é vingança da natureza contra a cultura, e a cultura é um conjunto de normas” [63] (BASTIDE, 1970, p. 69). A Renascença repousa entre o humanismo sorridente e o fanatismo religioso. No século XVI, com o aparecimento da imprensa, dá-se o rompimento entre as culturas das elites e a cultura popular. Porém, o riso encontra-se tanto nas elites como no povo. O feio sempre encontra uma fissura para existir. Rabelais [64] prenuncia a era do absurdo como uma era moderna: “Rabelais-Janus tem um riso de duplo sentido: ele utiliza as receitas do riso carnavalesco medieval e retira delas um riso filosófico moderno. [...] Tudo tem duplo sentido, dois níveis, em Rabelais; tudo pode ser lido pelo direito e pelo avesso” (MINOIS, 2003, p. 274). Segundo a simbólica medieval, a beleza é obra divina e a fealdade é expressão do mal, mas as imagens grotescas existem para exorcizar o mal e acentuar, não eliminar, a feiura. A feiura torna-se, na Renascença, a expressão do particular que dá lugar à fantasia e à bizarrice, evocando o sonho e a loucura. Com o burlesco francês, no século XVI, há um gênero cômico literário que age às vezes elegante, outras vezes de forma grosseira, como um escândalo e como uma libertação de tudo que pesa sobre o ser humano e a sociedade. No século XVII, o feio se encontra no escatológico e no obsceno, na excreção e na sexualidade. O libertino é a figura feia que ri da bestialidade humana; um riso pessimista que não espera nada do mundo. A indiferença fez o humano rir do outro. Até Deus parece rir para (e com) o humano. Para o jesuíta francês Louis Richeome (1554- 1625), os macacos foram criados por Deus para nos fazer rir:

Os macacos têm uma alma insana e ridícula; o corpo deles é próprio para fazer rir, retirado do retrato de sua alma; uns não têm cauda e são pelados em certo lugar; outros, como as macacas, apresentam uma longa e disforme extensão de cauda; os pés não são nem pés, nem mãos, mostrando-se semelhantes, todavia, aos dois; a face nem é rosto de homem nem de besta, disformemente enrugada, salpicada de verrugas, aveludada por pelos desajeitados, a garganta fendida até as orelhas, em suma extremamente disformes e com uma feiura artificial e agradável (RICHEOME, 1602 apud MINOIS, 2003, pp. 380-381).

Como os macacos, não éramos (e somos) nós os feios, ridículos, risíveis e grotescos? A humanidade decaída é ridícula e recai sobre ela toda a derrisão possível. A zombaria é o reino do espírito aberto. Já o feio, no começo do século XVIII, torna-se intelectualizado, com desejo de corroer as bases do poder, da razão, da sociedade. É a partir da segunda metade do século XVIII que o humano busca perceber o mundo através da estética como disciplina filosófica. O Iluminismo procura “esclarecer” a cultura, o humano no mundo, o ser através da razão, não se esquecendo da sensação e da imaginação.

 Em meados do século XVIII, no domínio da estética, o prazer no que era desagradável fez a dor, o prazer negativo, sair das oposições negativas. Com Edmund Burke (1729-1797), o feio é integrado à categoria estética do sublime. O termo latino sublimis significa “aquilo que vai se elevando, que se mantém no ar”; deriva do adjetivo limus ou limis, “oblíquo, que olha de lado ou atravessado, que sobe em linha oblíqua ou ladeira”; sublimare significa “elevar, exaltar, glorificar”, ao passo que “sublime” designa aquilo que está “suspenso no ar, que estava no ar; alto, elevado”, segundo Marco Antônio Coutinho Jorge (2008, p. 150).  Em 1757, Burke publicou a obra Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo na qual falou sobre o sublime como manifestação do ilimitado. O afeto do sublime se localiza para além da nossa capacidade de saber (lógos), o modo como os sentidos são afetados e as percepções são adquiridas varia conforme a cultura e a experiência de cada um. Burke distinguie o prazer (pleasure) como prazer simples ou positivo, e deleite (delight) como prazer relativo (diminuição de dor física, perigo ou sofrimento). Para Burke as ideias de dor são muito mais poderosas do que aquelas que provêm do prazer:

Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as ideias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de um modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção de que o espírito é capaz (BURKE, 1993, p. 48).

Burke afirma que todos nós sentimos prazer no belo, uma mescla de dor e prazer no sublime e uma tensão na contemplação do feio. Sobre o gosto, declara que é nada além daquela faculdade, ou aquelas faculdades do espírito que são afetadas pelas obras da imaginação e das belas artes. Encontramos prazer na semelhança.

Em suma, parece-me que o denominado gosto, na sua acepção mais geral, não é uma ideia simples, e sim algo composto em parte de uma percepção dos prazeres primários dos sentidos e dos prazeres secundários da imaginação, e em parte dos vereditos da faculdade do juízo, no que concerne às várias relações dessas duas espécies de prazeres e no que diz respeito às paixões humanas, aos costumes e às ações dos homens. São esses os elementos constituintes do gosto, e o fundamento de todos eles é o mesmo no espírito humano, pois, como os sentidos são as grandes fontes de nossas ideias (BURKE, 1993, p. 31).

Já o mau gosto provém de um defeito do juízo (ignorância, desatenção, preconceito, precipitação, leviandade) devido a uma fragilidade inata do entendimento. A curiosidade, um sentimento superficial, é a primeira e mais elementar emoção que encontramos no espírito humano. No entanto, a curiosidade atrai por sua novidade e não prende nossa atenção por muito tempo. Com a curiosidade podemos alcançar uma dor ou um prazer. A dor nasce da eliminação do prazer, do mesmo modo que a origem do prazer está na diminuição ou fim de uma dor. Burke (1993, p. 26) acredita que o efeito da dor e do prazer tem um caráter positivo. No “estado de indiferença”, o espírito humano não está em um estado nem de dor nem de prazer. A imaginação e o juízo se apoiavam nos sentidos, a imaginação se relacionava a tudo que denominávamos engenho, fantasia e invenção. “A imaginação constitui a mais ampla esfera do prazer e da dor, dado ser ela o campo de nossos temores e de nossas esperanças” (BURKE, loc. cit.). O que Burke quer dizer é que as fontes do terror também são as fontes do sublime. O obscuro, o infinito, a grandiosidade e as privações colocam o ser humano diante de sua pequenez. “Todas as privações em geral são grandiosas, porque são todas terríveis: vazio, trevas, solidão e silêncio” (BURKE, op. cit., p. 76). Sobre a fealdade, Burke afirma que é bastante compatível com a ideia do sublime. “Mas absolutamente não diria que ela, em si, seja uma ideia sublime, a menos que esteja associada a qualidades que provoquem um grande terror” (Ibid., p. 125).  O feio é considerado uma resistência e oscilação. Se para Platão, o feio é o que resiste à razão, o ininteligível, para Burke, o feio é essencialmente aquilo que se opõe, é aquele relaxamento que constitue o efeito específico da beleza. Enquanto a variação é bela, o feio é a prolongada uniformidade ou a variação súbita.

O terror é paixão que sempre gera deleite, quando sua ação não é muito direta, e a piedade é acompanhada de prazer, porque nasce do amor e da afeição social (BURKE, 1993). O feio é a sensibilidade que auxilia o despertar do terror. Burke liberta o feio de sua carga negativa (o oposto do belo) quando define o sublime como categoria estética; o feio como manifestação presente no sublime. Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762) percebe a região da estética entre a sensibilidade e a inteligência pura e define a estética como “disciplina do conhecimento sensível”. Baumgarten considera a estética como uma ciência, a “irmã mais nova da lógica”. Com o autor de Aesthetica (parte I e II, 1750 e 1758, respectivamente), a estética é conhecida como ciência do belo e possui duas grandes partes: a estética teórica e a estética prática. O objetivo da estética é a perfeição (aperfeiçoamento) do conhecimento sensível. Na estética teórica a perfeição do conhecimento sensível é o belo; a beleza do conhecimento é universal; e a beleza não é uma, mas partes múltiplas da sensibilidade. Na estética prática, Baumgarten tentou um estudo da criação poética, parte intermediária entre o intelecto e a sensibilidade. Sobre o feio, Baumgarten o colocou como imperfeição do conhecimento sensível: “A brevidade, a vulgaridade, a falsidade, a obscuridade impenetrável, a hesitação dúbia, a inércia são todas imperfeições do conhecimento e, em geral, deformam o conhecimento sensitivo” (BAUMGARTEN, 1993, § 23, p. 101). Porém, “as coisas feias, enquanto tais podem ser concebidas de modo belo; e as mais belas, de modo feio” (Ibid., § 18, p.100).

De Platão a Baumgarten, a feiura é compreendida como privação da beleza, mas no século XVIII a ideia de beleza entra em crise com a ideia de harmonia. O meio de ser harmonioso é ser incompleto, define Victo Hugo (2010, p. 26). O sublime aparece associado à natureza e, no século XVIII, o universo do prazer estético divide-se em duas províncias: a do Belo e a do Sublime, que não se apresentavam totalmente separadas. Há um alargamento do conceito de beleza no ser humano que busca novos prazeres, novas sensações; desenvolve um gosto pelo exótico e o diferente.

  Immanuel Kant (1724-1804), na obra Crítica da Razão Pura (1781), amplia a esteticidade de Baumgarten que é limitada ao belo. Kant desdobra o juízo estético/juízo de gosto (prazer e desprazer), a partir do belo, ao que é ligado a um sentimento positivo e do sublime, ao que é ligado a um sentimento violento. Para Kant (2001, p. 497), o prazer estético é gerado pela interação entre imaginação, o entendimento e a razão, as ideias intelectuais. A abstração, a imaginação e a desproporção passam a ganhar terreno no campo estético. Para Bayer (1995, p. 198), seguindo os conceitos kantianos, “o objeto belo é maravilhosamente inútil. O universo podia existir sem a beleza: nada lhe teria sido retirado, a não ser nossa satisfação sensível”.

Kant (2005, pp. 89-134) apresenta duas espécies de juízo: determinante, situa um objeto sobre a regra, o geral aplicado ao particular; e reflexivo, parte de um objeto para a regra, o geral é o problema que deve ser encontrado. Temos o juízo reflexivo estético ou juízo de gosto, um efeito subjetivo. Kant coloca o belo e o sublime como um prazer desinteressado e que pode ser universalmente partilhado. O que chamamos de belo é um objeto que estimamos. O sujeito do sentimento sublime é o sujeito transcendental, pois o sublime está em nosso espírito. O ser humano que admira o sublime sabe que existem forças que excedem nossas próprias forças e nos humilha; diante do sublime somos impotentes. No belo, a finalidade é o entendimento; no sublime, a liberdade é a razão. Imaginação, entendimento e razão estão presentes na teoria do sublime em Kant. Com relação ao feio, Kant o colocou como um sentimento de nojo, que não desperta na humanidade o seu verdadeiro destino − a superação do sensível. Já o sublime é posto como uma instância estética que transcende a beleza e a fealdade. Segundo Marlene Fortuna (2002, p. 193), em A obra de arte além da sua aparência, “[...] muitas vezes, o muito feio, pode ser o mais belo do mundo, se encarado sob o conceito de sublimidade Kantiana”. O sublime é sempre limiar, nem inteiramente acima nem totalmente abaixo das capacidades humanas, é aquilo que vai além do limiar. Para Burke e Kant, o sublime abre ou habita uma lacuna entre experiência e consciência, afirma, Steven Connor (1994, p. 56-57) em Teoria e valor cultural. Se o sublime não está no sujeito que percebe, há um falso sublime que degenera em burlesco: em vez de sublime, é ridículo (BAYER, 1995, p. 236). Kant contribui para abrir uma fissura na união entre a esfera moral e a esfera estética.

David Hume (1711-1776) é outro importante pensador da estética e do belo. Hume é contra os pensadores que relativizaram a beleza reduzindo-a ao gosto de cada um. O belo/feio não está no objeto, mas nas condições de recepção de cada sujeito e na beleza dos sentidos. O Eu é um “feixe de diferentes percepções”, e se somos um feixe de pensamentos e percepções, podemos discutir o belo e o feio, pois ambos os conceitos estéticos são uma tentativa de reconfigurar toda a historicidade velada pela moral (HUME, 2009, p. 240). Podíamos ter simpatia pelo feio? Para Hume, a simpatia é a conversão de uma ideia numa impressão, pela força da imaginação. Assim como houve em nós um interesse e uma simpatia pelas coisas que agradam, as coisas belas, também houve interesse pelo sentimento do feio. A satisfação ou a dessatisfação é sentida em nós através do ato de imaginar. Nossas paixões próprias e nosso sentimento de beleza dependem da imaginação. A beleza é o que, por costume ou por capricho, dá prazer e satisfação à alma. Já a deformidade produz pena. Hume (2009, p. 462) acredita que a beleza dos sentidos se dá através da simpatia. A simpatia é a “conversão de uma ideia em uma impressão pela força da imaginação”, algo que desperta em nós paixões calmas e/ou violentas (Ibid., p. 310). A satisfação ou dessatisfação se dá no humano pela imaginação. A beleza é uma conveniência, uma beleza de interesse que agrada unicamente pela comunicação, um fenômeno de simpatia. Nosso sentido de beleza depende da simpatia. Um objeto que dá prazer é belo, mas todo objeto que produz pena é desagradável e feio.

Para Adam Smith (1723-1790) (1986, pp. 118-126), quem faz a moda são as pessoas distintas e não toda a gente que usa certa vestimenta. Tal princípio estende-se a todos os objetos de gosto: música, poesia, arquitetura. O gosto tem suas revoluções e não há algo tão disforme que não possa agradar. Para Smith, um homem é belo e feio por sua própria beleza intrínseca, e não por se parecer com outro homem. No fim do século XVIII e começo do século XIX, o belo/feio era aquilo que o artista fazia; aquilo que partia de seu íntimo, da subjetividade. Nem sempre a procura do belo é finalidade da arte. A partir de 1800, as representações da fealdade marcaram presença incontestável na história da arte. A fealdade é algo que ultrapassa o universo aberto do belo e nos atrai.

Victor Hugo (1802-1885) abandonou a kalos kai agathos (belo/bom/bem) clássica e assumiu que a fealdade é uma categoria estética que deve ser analisada e respeitada, pois “tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2010, p. 26). Com o grotesco, Hugo quer criticar, chocar, provocar certo mal-estar na sociedade francesa e mundial. O grotesco, enquanto categoria estética atua como uma reinterpretação culta da espontaneidade popular. O grotesco hugoliano é cristão, pois “os humildes deviam herdar o reino dos céus” (Ibid., p.28-43). Em qualquer lugar onde acontece a produção simbólica, há o feio, o monstruoso, a palhaçada, entre outras categorias estéticas. O momento literário é o do Romantismo, no qual se dá a fusão do belo e do feio. Temos uma aliança íntima entre o belo, o sublime e o grotesco, sendo o último diversificado e o feio tendo mil tipos. Há uma noção de pausa e descanso do belo, segundo Hugo, que permite pensar o grotesco como horizonte estético do gênio moderno, tornando-se expressão da sociedade. Sobre o grotesco, Sodré e Paiva acrescentam:

O grotesco subverte as hierarquias, as convenções e as unidades socialmente estabelecidas. Subverte as figurações clássicas do corpo, passando a valorizar as vinculações corporais com o universo material, assim como seus orifícios, protuberâncias e partes baixas. Alimentação, dejeção, cópula, gravidez e parturição compõem constantes na imageria grotesca. O grotesco é quase sempre o resultado de um conflito entre cultura e corporalidade (SODRÉ; PAIVA, 2002, pp. 59-60).

No pensamento moderno, o cômico, o bufão, o informe, o disforme e o horrível se unem ao grotesco. Para Nolasco (2011, p. 49) “a modernidade era a época da interioridade cristã que, na corrente de um avanço civilizacional, criou a melancolia e a contemplação”. É na modernidade que Victor Hugo opera os momentos híbridos do sublime-grotesco, como uma radiografia inquietante, risonha e desconcertante do real, da verdade que é a vida recheada de contradições. Victor Hugo (2010, p. 36) nos dá o sublime através do degradado; “o feio, ao contrário, é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o ser humano, mas com toda a criação”.  É por isso que ele [o feio] nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos.

A incompletude do humano é assunto nas poesias de Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), um homem-poeta que perde a auréola (ou a aura) no lodo do asfalto; um indivíduo que sabe que tal infortúnio serve para alguma coisa – gozar o anonimato. Perda da Auréola, de Baudelaire, descreve a destruição da aura perante o avanço da vida urbana:

― Ora, ora, meu caro! O senhor! Aqui! Em um local mal afamado - um homem que sorve essências, que se alimenta de ambrosia! De causar assombro, em verdade.

― Meu caro sabe do medo que me causam cavalos e veículos. Há pouco estava eu atravessando o bulevar com grande pressa, e eis que, ao saltar sobre a lama, em meio a este caos em movimento, onde a morte chega a galope de todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, em um movimento brusco, desliza de minha cabeça e cai no lodo do asfalto. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que me deixar quebrar os ossos. E agora, então, disse a mim mesmo, o infortúnio sempre serve para alguma coisa. Posso agora passear incógnito, cometer baixezas e entregar-me às infâmias como um simples mortal. Eis-me, pois, aqui, idêntico ao senhor, como vê!

― O senhor deveria ao menos mandar registrar a perda desta auréola e pedir ao comissário que a recupere.

― Por Deus! Não! Sinto-me bem aqui. Apenas o senhor me reconheceu. De resto, entedia-me a dignidade. Além disso, apraz-me o pensamento que um mau poeta qualquer a apanhará e se enfeitará com ela, sem nenhum pudor. Fazer alguém ditoso – que felicidade! Sobretudo alguém que me fará rir! Imagine X ou Y! Não, isto será burlesco![65] (BAUDELAIRE, 1995, XLVI p. 73).

 

Walter Benjamin recorre ao texto Perda da Auréola para descrever a destruição da aura na obra de arte. Romper com a tradição, as regras e os padrões, assim é a perda da aura em Baudelaire, um poeta em choque com a crescente urbanização parisiense, com a parte suja, repugnante e fria do urbanismo, do tecnológico e do capital. Segundo Artur Bispo dos Santos Neto (2007), nas poesias de Baudelaire predominam a parte feia do capitalismo:

 

[...] prostituição, mendigos em becos, feiura expressa no lixo da metrópole, sofrimento sem finalidade e dispersão do próprio eu. Sua poesia é quase totalmente dotada de um caráter negativo ou destrutivo, repletas de “angústias, confusões, degradações, trejeitos, domínio da exceção e do extraordinário, dilaceração em opostos extremos, inclinação do Nada (SANTOS NETO, 2007, p. 24).

 

O poeta sente a “destruição da aura na vivência do choque” pela paisagem social, pela presença dos desclassificados. Em lugar de uma estética do belo, Baudelaire opta pela estética do feio na própria poesia. Baudelaire “entreviu espaços vazios nos quais inseriu sua poesia”, afirma Walter Benjamin (1989, p. 110). Poesia lírica que entende o feio e o disforme como algo interessante, pois tem equivalência com a ruptura e provoca surpresa. Tudo que é banal é abominável para o poeta lírico, incluso a mulher, um ser sempre vulgar. Para Baudelaire (1868, p. 216), na obra Curiosités esthétiques, o poeta/o artista, em uma incessante busca pela originalidade literária, não deve ter medo de se envolver nos caminhos do estranho e do horrível. O artista deve entender que até a “beleza é sempre bizarra” (Le beau est toujours bizarre) e que a natureza contém um pouco de bizarrice de feiura. O poeta prefere os monstros de sua fantasia à trivialidade positiva (La nature est laide, et je préfère les monstres de ma fantaisie à la trivialité positive). O banal cansa o artista, fazendo com que o feio torne-se belo e o belo feio, tudo levando para o desabrochar da feiura no século XX. O feio, principalmente após movimentos vanguardistas, ganha “autonomia”.

O Feio artístico, o Belo-feio, é a categoria estética que melhor caracteriza as artes do novecentismo. Um tempo entrópico, entre a utopia e o apocalipse. Época veloz, em que o tempo acelerou e o espaço encolheu. Tempo dinâmico e caótico. Imprevisível. Idade certa do apogeu estético de uma “fealdade” omnipresente, registro testemunhal da fealdade real da vida. Transfigurando, no seu testemunho, as inúmeras iniquidades que povoaram a barbárie trágica dos últimos tempos. Uma “fealdade” que irá revelar-se transgressora, subversiva, insólita, perturbadora, desconcertante. Geradora das maiores perplexidades. [...]. A multiplicação axiológica da “fealdade” nas artes abarcará um alargado espectro de valores: o cômico, o mordaz, o sarcástico, o burlesco, o bizarro, o grotesco, o pícaro, o jocoso, o satírico, o paródico (CALHEIROS, 2010, p. 57).

Há o desvelamento da moral no campo das artes, mostrando que o feio também tem lugar de destaque. Os vanguardistas trazem a presença do diferente, do feio, do gordo e do torto, nos lembrando de que somos partes e não o todo, que somos a variedade dos conceitos estéticos de beleza e feiura. Se há um belo corpo, há um feio corpo. Estamos cercados por representações que tornam o outro repugnante para, assim, inferiorizá-lo. O século XX é considerado a época do vazio, do esvaziamento dos sentimentos humanos, repleto do recrudescimento da violência, das guerras, do imoralismo, no qual o feio foi “entendido como sinal e sintoma de degenerescência” (NIETZSCHE, 2006, p. 75). A beleza parece estar na semelhança, assim como Narciso se apaixona por seu reflexo, nos olhamos no espelho para procurar nossa satisfatória imagem refletida, mas nem sempre conseguimos, pois assim como Narciso, estamos fadados a desejar imagens epifânicas, distantes de nossa realidade. Quando percebe o seu corpo como feio, o humano percebe o declínio do seu tipo e passa a se odiar. Gregory Bateson (1904-1980) coloca a feiura como um fenômeno que tem suas emoções localizadas no medo:

O belo e o feio, o literal e o metafórico, o são e o louco, o cômico e o sério... até mesmo o amor e o ódio são todos temas que a ciência hoje evita. Mas em poucos anos, quando a fratura entre os problemas da mente e os problemas da natureza deixará de ser um fator determinante daquilo sobre o qual é impossível refletir, eles se tornarão acessíveis ao pensamento formal. Hoje, a maior parte desses temas é inacessível; os cientistas ― até mesmo antropólogos e psiquiatras ― os evitam e por ótimas razões (BATESON, 2005, p. 63, tradução nossa)[66].

Medo (do grego: phobos, do latim: metus) é sentimento de viva inquietação ante a noção de perigo real ou imaginário. Algo feio pode ser algo perigoso, uma alteridade que não reconheço. Um Outro que vejo como feio pode matar e o medo é fundamentalmente o medo da morte, afirma o historiador francês Jean Delumeau (2009). Então, enquanto vivos estivermos o medo nos acompanhará. Metaforizamos nossos medos em diferentes formas, seres, atitudes, estéticas e imaginários. O medo nos é intrínseco, está em nós e nos acompanha por toda nossa vida. “E o medo humano, filho de nossa imaginação, não é uno, mas múltiplo, não é fixo, mas perpetuamente cambiante” (CAILLOIS, 1961 apud DELUMEAU, 2009, p. 23).

A arte contemporânea se dá com as revoluções artísticas no final do século XIX, contra a arte acadêmica burguesa, é de fato uma rebelião contra a beleza cultuada desde a Antiguidade Grega. Com a avant-garde artística do século XX o feio triunfou. Jung (apud ECO, 2007, p. 365) afirma que o feio é um sinal de grandes transformações que se estabelecem na cultura e no cotidiano das pessoas. Desagradável ontem, arte hoje... Munch (Expressionista), Picasso (Cubismo), Dalí (Surrealismo), Duchamp (ready made) entre outros artistas, validam o feio como traço importante da vida e da arte. O feio atua como provocador, como denúncia social, integra uma “estética do refugo” (arte povera, uso do lixo nas artes). Andy Warhol mostra que há beleza nas banalidades; Vik Muniz faz do refugo arte de galerias; Sebastião Salgado fotografa gente suja, pobre, pessoas enrugadas e pés encardidos com tanta maestria que o que se vê são imagens fascinantes da alteridade. Atualmente, a cultura brasileira incorpora todos os fenômenos estéticos para contemplar a existência do feio.

Se na primeira metade do século XX a feiura torna-se tolerada como belas imagens do feio, é na segunda metade do século XX e no século XXI que as representações do feio passam a integrar um amplo local de visibilidade – as mídias. O caráter repulsivo do feio ganha destaque, na televisão, no cinema e a feiura vira símbolo de embate das classes artísticas e das classes socioculturais. Não esconder o feio é o que Cândido Portinari (1903-1962) faz ao pintar desvalidos sociais (“Os Retirantes”, 1944, Figura 7). João Batista Berardo (1983, p. 54), em “O político Cândido Torquato Portinari”, relata que em Paris, no ano de 1946, ao visitar uma exposição de Portinari, o Duque de Windsor não se sentindo seduzido pelos temas pintados e resolve perguntar ao pintor brasileiro se não teria algumas flores. “Flores, não”, responde o Portinari, ressentido. “Estas existem em pequena escala em meu país, ao contrário da miséria”. A rebelião torna-se, artisticamente, um produto de crítica social e uma cerimônia ritual: morte ao belo/viva a fealdade.  O século XXI pode ser considerado uma ode à fealdade e uma ode à realidade das pessoas comuns. O feio assegura sua consagração estética e se existe uma feiura brasileira, precisamos mostrá-la e englobá-la em nossa beleza. 

O corpo no século XXI revela uma fluidez de sentidos e estéticas. Segundo Francisco Ortega o corpo objeto de desconfiança e abjeção:

O corpo tornou-se espaço da criação e da utopia, um continente virgem a ser conquistado. No fundo, poucos estão totalmente satisfeitos com o corpo que têm, [...]. Precisamente devido à sobrevalorização e ao enorme investimento simbólico que vem sofrendo, o corpo tornou-se objeto de desconfiança, receio, angústia, insegurança e mal-estar para muitos: aceitamos apenas o corpo em transformação, em mutação constante. Uma suspeita do corpo que se transfigura em “pavor da carne”, desconfiança da materialidade corporal e desejo de sua superação. O corpo é o abjeto; a abjeção, [...] como rejeição corporal da corporeidade, [...] (ORTEGA, 2008, p. 13).

 

Não é apenas um corpo bonito ou feio, é toda uma carga cultural que conta a história do corpo. A realidade corporal (psicossomática e psicoemocional) se molda de acordo com as tendências da moda, dos embates sociais, da saúde ou da falta de saúde, da cultura do consumo, das intervenções estéticas. É a percepção da realidade do outro que vai influenciar no nosso corpóreo, pois o corpo agora é comunhão, interação e virtualidade. A estética e a arte criam a realidade de um corpo incerto. O corpo submetido a tantas formas e moldes, acaba submisso à deformidade. O corpo na atualidade é motivo de culto e de abjeção. Os corpos pintados por Portinari, e que não seduziram o Duque de Windsor, eram corpos abjetos de uma visibilidade da realidade da pobreza nacional, corpos superados pelas limitações da carne, pela miséria, pela feiura da materialidade de um corpo em desconstrução física.

  

 

 

2. POXICULTUROGRAFIA BRASILEIRA

 

 

 

Precisamos descobrir o Brasil![...]. Precisamos, precisamos esquecer o Brasil! [...] Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

(Carlos Drummond de Andrade) [67]

 

 

 

2.1 Imaginário e a cultura brasileira do feio

 

 

Atualmente, o imaginário é um vasto campo no qual o feio habita, desenvolve e se ramifica em complexidade. Como fonte catalisadora, campo de distribuição e receptáculo, o imaginário é meio condutor de informações, de práticas, de saberes, de entidades, de seres e de ideias-imagens; zona cosmo-bio-antropomorfa atravessada por símbolos, mitos, ícones, vestígios e representações; meio entre a razão e a emoção, campo mais crepuscular do que iluminado pelo pensamento racional, matemático e lógico. Na zona crepuscular da imaginação temos contido o claro-escuro refletido pela própria realidade, ou seja, beleza e feiura atuando em um espaço aberto e cheio de pluralidade. Respiramos, no Brasil, “um ar impregnado por uma antiguidade plural: a nativa, a colonial e a africana trazida pelos exilados do continente negro que aqui foram instalados e trouxeram consigo sua própria antiguidade”, afirma Florence Dravet (2015, p. 16). Representamo-nos em diferentes gradações estéticas, ao mesmo tempo e quase que o tempo todo, nos mitos, nos monstros e nos seres encantados, nos entremeios da história de formação do povo. O imaginário do feio está intimamente ligado à história, à estética, à literatura, às artes e à mídia brasileira. Nosso imaginário da feiura nacional está presente em nossa mitologia, nos desvelando enquanto nação. Segundo Victor Jabouille (1994, p. 27), “se o logos é a linguagem da demonstração, o mito é a linguagem da imaginação, mesmo a linguagem da criação”. Para Gilbert Durand[68] (2002, p.18), o imaginário é concebido como “conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital do homo sapiens”. A realidade só é e será realidade se for tecida no imaginário. Segundo Edgar Morin (1997, p. 120) “o imaginário estético é, como todo imaginário, o reino das necessidades e aspirações do humano, encarnadas e situadas no quadro de uma ficção”. Mircea Eliade, em Mito e Realidade (2006), afirma que o mito é uma realidade cultural, complexa e múltipla que habita o imaginário. Os homens existem porque os mitos existem e são narrados:

 

[...]: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade que passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural (ELIADE, 2006, p. 11).

 

Qual é o imaginário estético da feiura brasileira? Quais imagens de feiura circundam o povo brasileiro? Em quais mitos criadores encontramos a beleza ampliada? As imagens que nos cercam, nos penetrando, dominando e absorvendo, estão presentes desde que o humano, antes mesmo de saber escrever, no ato mesmo de tentar “representar” − tornar a fazer presente – sua presa ou as forças medonhas que o cercam, é desperto para outra força nele, a força de criar através de imagens. “Conhecer as imagens que nos circundam significa também alargar as possibilidades de contato com a realidade; significava ver mais e perceber mais”, afirma Bruno Munari (1997, p.11). Com função de magia, documento, fruição, fonte de inspiração, condicionadas por crenças, guerras, cristianismo, sociedades, convenções, culturas, observações, ciências, entre outros condicionantes, as imagens nos circundam desde tempos imemoráveis. Para Etienne Samain (2012, p. 23), toda imagem é uma “memória de memórias, um grande jardim de arquivos declaradamente vivos” que pensa. Qual é a nossa atual memória da fealdade nacional? Quais as imagens feias que inspiram nossa criação, nossas fantasias, superstições, folclore, artes, literaturas e mídias? Cada indivíduo é um ser único em sua forma de pensar, agir e criar, com suas experiências e concepções dos mundos que o rodeia. O imaginário varia de pessoa para pessoa em função do seu contexto cultural, do modo como se vê na sociedade, como se vê no mundo e como se projeta. Tudo é nó e conexão no tecido imaginal. O diálogo feio-belo aparece em vários momentos na cultura brasileira e o modo como nos vemos, nos projetamos, diz muito sobre quem somos como nação. Usamos nossa estética para nos camuflar e resistir. Não somos belos nem feios, somos belos e feios, essa é nossa beleza ampliada. Usamos nossa fealdade como deboche, como humor, um modo de sobreviver às intempéries. No fundo, a fascinação pela feiura é o desejo de descobrir um novo sentido, secreto, até então desconhecido, do Mundo e da existência humana, da alma brasileira.

 

 

2.2 A fealdade no fóssil, no fálico e no maravilhoso

 

 

Não é nossa tarefa definir o complexo religioso dos povos indígenas do Brasil. Temos vários povos, diversas culturas, várias movimentações de tribos do tronco tupi-guarani pela América do Sul, com diferentes costumes e modos de entender o sagrado e que sofrem contínuas e profundas modificações através do tempo. Nossa intenção é revelar que um ser feio (do tupi, poxi) é também belo (como um ser humano ou um deus), demonstrando, assim, o conceito de beleza ampliada no contexto cultural brasileiro.

 Nosso desvelamento começa em um passado bem distante, para trazer um fóssil e uma imagem fálica ao nosso início estético. Para trazer Luzia, um fóssil, um corpo que de certa forma é monstruoso e apela ao humano uma secreta identificação, como o sublime atrai pelo terror que o contém. A beleza é um campo amplo cercado por um contorno infinito. E é nessa borda que habita a feiura, nesse contorno habitam as imagens que precisam renascer do esqueleto, do fóssil; precisamos das representações que existem no contorno. Para Sandra Pesavento (2005, p. 40), “representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência”. O fóssil recoloca uma ausência e torna sensível uma presença. Representar é englobar o simbólico de uma sociedade, é tornar o simbólico real, afirma Leandro Mendonça Barbosa (2012). O simbólico de uma dada imagem “é uma representação do mundo que varia de acordo com os códigos culturais de quem a produz”, esclarece Maria Eliza Linhares Borges na obra História & Fotografia (2003, p. 80).

 

Há uma exposição, uma reapresentação de algo ou alguém que se coloca no lugar de um outro, distante no tempo e/ou no espaço. Aquilo/aquele que se expõe – o representante – guarda relações de semelhança, significado e atributos que remetem ao oculto – o representado. A representação envolve processos de percepção, identificação, reconhecimento, classificação, legitimação e exclusão.  [...] a representação tem a capacidade de se substituir à realidade que representa, construindo o mundo paralelo de sinais no qual as pessoas vivem. As representações apresentam múltiplas configurações, e pode-se dizer que o mundo é construído de forma contraditória e variada, pelos diferentes grupos do social. Aquele que tem o poder simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e expressa a supremacia conquistada em uma relação histórica de forças. Implica que esse grupo vai impor a sua maneira de dar a ver o mundo, de estabelecer classificações e divisões, de propor valores e normas, que orientam o gosto e a percepção, que definem limites, autorizam os comportamentos e os papéis sociais. (PESAVENTO, 2005, pp. 40-41).

 

Luzia, ser que habita no fóssil e em nosso imaginário como representação de humano brasileiro, nos atrai como uma espécie de ponto de fuga do devir-humano. Ela é como nós, mas não igual a nós, fascina porque está rodeada de apelos que emanam de sua própria existência. Para Guilermo Giucci (1992), em Viajantes do Maravilhoso: o novo mundo, o maravilhoso se apoiava no desconhecido ou na falta de hábito, se apoia nos mistérios do vislumbrado, no desejo imaginário do diferente, para reafirmar, várias vezes, o direito à sua existência. Luzia é esse maravilhoso; um ser que atua fora do familiar indígena e europeu, é inesgotável enquanto sistema de representação e se movimenta, fluidamente, entre a realidade e o mito, apropriando-se de ambos.

Nosso passado é mais remoto do que apenas os últimos cinco séculos. O continente americano não estava vazio antes dos “descobrimentos”[69]. O Brasil, mesmo antes de Cabral, já estava ocupado por inúmeras tribos, distribuídas e organizadas de diferentes maneiras, com numerosas línguas e distintos modos de conceber o humano e o universo. Para Júlio Cezar Melatti, no decorrer do período Pleistoceno[70], os seres humanos conviviam com enormes mamíferos, atualmente extintos. Tínhamos, no Brasil, as preguiças gigantes (megatérios) e tatus gigantes (glipodontes)[71]. Melatti, na obra Índios do Brasil (2007), relata que antigos esqueletos humanos, provenientes de novos achados ou de peças guardadas em museus, são retomados para descoberta de datação radioativa. Alguns esqueletos, completos ou não, datam de uma época de transição do Pleistoceno para o Holoceno, incluso um crânio da coleção do Museu Nacional oriundo da Lagoa Santa[72] (Minas Gerais) conhecido como um dos crânios mais antigo das Américas. O bioantropólogo Walter Alves Neves atribui uma idade de 11,5 mil anos ao fóssil chamado “Luzia”[73] (Figura 8, 9 e 10), alusão à africana pré-histórica “Lucy”[74]. A natureza, em constante mudança, nos revela o fóssil que faz aparecer à diferença, um movimento de nossa história, uma mobilidade de nossa identidade. Para Michel Foucault (1926-1984), o fóssil era como aquela região sombria, móvel, trêmula que conhecemos como identidade e nos lembrava, na incerteza de suas semelhanças, as primeiras obstinações da identidade. “O fóssil, com sua natureza mista de animal e de mineral. [...] marca um quase-caráter no mover-se do tempo” (FOUCAULT, 1999, p. 217).

Para Neves e seu colaborador, o arqueólogo francês André Prous, a hipótese de que os primeiros habitantes do continente se pareciam muito mais com populações da África e com os aborígenes da Austrália, ao invés dos asiáticos, significa que o povoamento do continente foi um processo complexo. O tipo físico de Luzia é completamente diferente daquele dos índios atuais. Segundo a teoria de Neves, nosso continente foi colonizado por duas levas de Homo sapiens vindas da Ásia: uma primeira onda migratória, aproximadamente 14 mil anos, foi composta por indivíduos caçadores-coletores parecidos com Luzia, morfologia não mongoloide, semelhante à dos atuais australianos e africanos, não deixaram descendentes; e uma segunda onda migratória, aproximadamente 12 mil anos, em que os membros apresentavam o tipo físico característico dos asiáticos, dos quais os índios modernos derivam.

 

Para a genealogia da fealdade, nosso imaginário começou com Luzia, ser incunábulo do Brasil que, segundo datação realizada no crânio, era uma jovem de vinte e poucos anos, com 1,50 metros de altura. Luzia não foi sepultada, foi depositada no chão do abrigo/caverna, numa fenda. Esse ser que habitou o Brasil, mesmo antes de Brasil ser, é nosso começo maravilhoso, nossa estranheza com traços físicos negroides; crânio mais estreito e longo, com face proeminente, estreita e baixa. Luzia é um ser intermediário entre o africano e o aborígine, entre o Pleistoceno e o Holoceno, é o maravilhoso que reside na diferença, no inaudito, no contrário ao conhecido.

Luzia pequena versus a megafauna; Luzia, preguiças e tatus gigantes são exemplos das dicotomias do maravilhoso. Além da descoberta humana e da megafauna, Neves, em fevereiro de 2012, publica um artigo na revista científica Plos One em que relata um achado interessante na região de Lagoa Santa. No sítio Lapa do Santo, os trabalhos de escavação trouxeram à tona um petroglifo de uns 30 centímetros com uma figura antropomórfica de um humano. O petroglifo estava escondido a 4 metros de profundidade. O desenho retrata um homem com um enorme órgão sexual e idade entre 9.600 e 10.400 anos. O desenho na pedra mostra o que parece ser um homem com a cabeça em forma de C (Figura 11), três dígitos nas mãos e o falo ereto. Tal gravura rupestre é considerada a mais antiga das Américas, apresentando uma datação indiscutível, sugerindo que a cultura entre o fim do Pleitosceno e o início do Holoceno, há 12 mil anos, não se restringe à fabricação de ferramentas de pedra e à subsistência, mas também engloba uma rica dimensão simbólica.

 Nossas primeiras imagens como nativos e nossos primeiros traços rupestres revelam que nosso imaginário do feio fascina pela diferença, pelo incomum, pelo insólito muito antes da entrada e amalgamento com o imaginário da civilização europeia. Para José Gil, em Monstros (2006, p.13), “queremos conhecer os confins de nós próprios, aquele limiar onde deixamos de ser homens”. Luzia (o fóssil) e a figura do petroglifo são mirabilis[75], maravilhas visuais, “um contrapeso à banalidade e à regularidade do quotidiano” (LE GOFF, 1989, p. 27). Como maravilhas, o fóssil e a figura rupestre são formas de resistência à ideologia oficial que coloca a existência do Brasil a partir do encontro com o europeu. Luzia e o suposto homem com o falo ereto são nossa resistência à imagem europeia da criação humana, o brasileiro não era a imagem e semelhança de um “deus europeu”. A alteridade de Luzia e da representação rupestre de um ser fálico (humano? divino?) é movente, instável e desfigura da imagem que temos dos brasileiros. Para José Gil:

 

[...] embora os índios e negros descobertos nos séculos XV e XVI na África e nas Américas se encontrassem aquém das fronteiras da monstruosidade, a sua humanidade foi objeto de dúvida: eram monstros, animais? Por outras palavras, a sua alteridade é móvel, não fixa e, por definição, instável. [...]. O monstro é pensado como uma aberração da “realidade” (GIL, 2006, pp. 17-18).

 

Segundo Gil, o monstruoso é a “desfiguração” última do Mesmo, do humano, no Outro, no estranho. A imagem do homem com falo entra no terreno do monstruoso ― algo que excede a corporeidade humana ― do maravilhoso e do sagrado culto do falo[76]. Para Rosenkranz (1992, p. 247, tradução nossa), toda representação dos genitais em imagens ou palavras, que não se refere à ciência ou à ética, e obscenamente representada é feia, pois era uma “profanação dos santos mistérios da natureza”[77]. Todo o elemento fálico, mesmo santificado pela religião, era esteticamente feio. “Todos os deuses fálicos são feios. Príapo é feio na ereção de seu membro duro” (ROSENKRANZ, loc. cit.).  O obsceno consiste em uma ofensa deliberada ao pudor. O elemento grosseiro faz parte do “vulgar” que Rosenkranz aponta como uma fealdade. O culto fálico é muito antigo e difundido em vários contextos religiosos ou mágicos. A representação dos órgãos sexuais tem um significado simbólico: no Egito, havia o culto ao falo de Osíris que indicava o poder masculino de inventar, criar outros seres; na Grécia, o itifálico (do grego ithus, reto) era objeto de culto; Dionísio e seu filho com Afrodite, o deus Príapo (deus grego da fertilidade), eram cultuados e falos gigantes os representavam; na Índia, Shiva também é associado à fertilidade e sua adoração emerge com as crenças locais de fertilidade na representação de um “falo” de pedra ovalada, o lingam (o signo), inserido dentro de uma “vulva” circular, a yoni, representando que a criação se dá com a união do masculino com o feminino; no Japão, na cidade de Kawasaki[78], existe o Kanamara Matsuri[79] (“Festival do Falo de Aço/Metal”) que ocorre na primavera; no Brasil, Exu é o agente cosmogônico do elemento fálico. Para Roger Bastide, na obra “O candomblé da Bahia, rito Nagô” (1961, p. 210), “as estatuetas mais antigas de Exú encontradas nos candomblés apresentam caráter fálico muito acentuado”. Bastide afirma, também, que na década de 1960, era encontrado nos mercados da Bahia pequenos Exús com dois chifres, um membro viril e uma cauda.

 

[...] todos os Exus são entidades fálicas, presidindo à fecundidade, os antigos cultos dos falos renascem nas giras de Exu. A dança erótica de Exu e Pomba Gira representa o ato sexual. E o “otá” ou o fetiche de Exu é sempre alongado, de barro, madeira ou ferro e simboliza o “falo” (FARELLI, 1974, p. 122) [80].

 

O falo pode ser um objeto apotropaico, um instrumento mágico que protege ou ataca, detém ou destrói. Porém, como veremos mais adiante, o falo deixa de ser digno de culto para ser diabólico, rejeitado pelo monoteísmo; grotesco, o “baixo corporal” em Bakhtin, é ligado ao escárnio e ao deboche. O mundo está cheio de fronteiras, de espaços que parecem mágicos, prontos para o desvelamento no fóssil e no fálico, nos revela como os sítios do maravilhoso encontram-se aqui, à beira do caminho de nossa história cultural, na periferia de nossa estética. Não somos brancos, como alguns desejam salientar a própria composição étnica. Lilia Schwarcz, ao analisar escritos de Sílvio Ramos Romero (1851-1914) sobre “a composição étnica e antropologicamente singular” da população brasileira, destaca que não são poucos os exemplos sobre certo espetáculo brasileiro de miscigenação, no qual “formamos um país mestiço... somos mestiços se não no sangue ao menos na alma” (ROMERO apud SCHWARCZ, 1993, p. 11). O branqueamento brasileiro não existe em Luzia, em nossos povos tupi-guarani e nem no moderno brasileiro do século XXI.

Luzia pertence à primeira leva migratória que, mesmo não deixando descendentes pelas terras da América do Sul, é indício de nossa estética multifacetada, de nosso imaginário do diferente, que em algum momento histórico de nossa estética pode ter sido negroide, seguida, com o avançar do tempo, de uma cultura repleta de tárias (filhos do trovão, o sangue do céu) [81]. É da segunda leva migratória (morfologia mongoloide) que derivam nossos índios modernos[82]. A presença indígena na América do Sul é um mistério que carece desvelamento. Mas o que nos diz respeito, neste momento, é a parte estética e imaginária de nosso povo indígena. Interessa-nos saber sobre a estética daqueles humanos “nus, pardos, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas, de bons narizes e bons corpos” [83] que andavam pelo Brasil antes da chegada de Cabral e de suas reverberações míticas (reflexos do próprio brasileiro). O primeiro registro estético feito sobre o povo brasileiro foi positivo, foi o registro português/europeu. Primeiro estavam,os brasileiros, despidos, depois foram vestidos, tiveram os corpos domesticados/apropriados/modelados pela cultura. São longínquas as matrizes da beleza no Brasil. Em uma história de pouco mais de quinhentos anos, a beleza brasileira ampliada ornamentou a natureza em regimes estéticos os mais sublimes e perturbadores. Paisagens que, de século em século, reverberam em textos e representações, reiterando uma visão comum do belo/feio em um Brasil feito de cores, curvas, exageros, maravilhas, sensualidades, resistências e humor.

 

 

2.3 O feio no Jardim das Delícias

 

A terra inteira já foi considerada “uma imensa caixa retangular, muito semelhante a uma arca com uma tampa arqueada” (abóboda do céu) e Deus observava suas criações, afirma Daniel Boorstin (1989, p. 110), na obra Os Descobridores: de como o homem procurou conhecer-se a si mesmo e ao mundo. A terra tinha apenas uma face, dada por Deus aos descendentes de Adão. Qualquer sugestão de que antípodas existissem, era absurda e herética. A Terra era conhecida como orbis terrarum[84] e o paraíso (ou hortus deliciae) estava situado nas partes orientais da Terra.

O Paraíso é um lugar que se situa nas partes orientais, cujo nome é traduzido do grego para o latim como hortus [isto é, jardim]. Chama-se na língua hebraica Éden, que se traduz para a nossa língua como Deliciae [isto é, lugar de luxo ou delícias]. Unindo as duas ficamos com Jardim das Delícias, pois está plantado com toda a espécie de árvores de madeira e de fruto, tendo também a árvore da vida. Lá não há frio nem calor, mas sim uma temperatura primaveril contínua. Do meio do Jardim jorra uma fonte para regar todo o pomar e que, dividindo-se, origina as nascentes de quatro rios. O acesso a este lugar foi vedado ao homem depois de seu pecado, e ele está agora cercado por todos os lados por uma chama espadiforme, que é o mesmo dizer que está rodeado por uma muralha de fogo que chega quase ao Céu (BOORSTIN, 1989, p. 111).

Quando os portugueses resolveram “dobrar o mundo”, trazendo certa metade oculta do globo à luz, indo além do Equador, tornaram acessíveis praias desconhecidas e frutas (nada proibidas) em um grande “Jardim das Delícias” conhecido, hoje, como Brasil. Porém, tentando chegar às Índias, as caravelas portuguesas chegaram, primeiramente, em terras brasilis. Os périplos (do latim periplus, “navegar à volta”), do século IV até quase o século XIV, eram transmitidos oralmente por marinheiros analfabetos. Foi a partir de cerca de 1300, que os portolanos (“guias de porto”) foram utilizados como guias práticos e portáteis de navegação, testados e corrigidos pelos navegantes em cada porto. Tais marinheiros analfabetos que se lançaram ao mar acreditavam piamente que os oceanos singrados estavam repletos de seres fantásticos, paraísos imagináveis, demônios abomináveis e humanidades monstruosas. Para Alfredo Bosi, na obra Dialética da colonização, a piedade católica do mesmo século da Contrarreforma [85] explorou de modo intenso a imaginação material do Céu e do Inferno:

O demoníaco avulta sob a conotação de idolatria polimórfica (“o nome do diabo é Legião”, diz o Evangelho) que cinde a alma do fiel, turva a luz da sua mente, rompe com a sua identidade e a degrada à cegueira e à anomia da carne crua e dos instintos sem peia (BOSI, 1992, p. 84).

Temos a feiura do grotesco medieval pautado pelo maravilhoso, pelo extraordinário e pelo terrífico, no qual o Brasil é ao mesmo tempo locus amoenus e locus horrendus. A natureza exuberante, o exotismo, faz o navegador crer que não há pecado do lado de baixo do Equador. Para Roberto Gambini, a frase do papa Paulo III (1468-1549) “exprime um pensamento cartesiano ao traçar uma linha reta e dizer que abaixo dela não existe pecado, mas acima sim”. O lado de baixo do Equador é o “reino do inconsciente”, a “parte sombria” do mundo. Com o traçado da linha do Equador, cria-se “um cristianismo subequatorial, com uma subética, com um subdogma, com uma subliturgia, com um submito, (...). Começa aí o nosso subdesenvolvimento moral”, segundo Lucy Dias e Roberto Gambini (1999, pp. 51-52), na obra Outros 500: uma conversa sobre a alma brasileira. Com o passar do tempo, o discurso paradisíaco cede lugar ao diabólico e abaixo da linha do Equador temos uma região infernal corrompida por Satã desde a Idade Média, segundo a mentalidade do cristão europeu.

As narrativas sobre as terras ao sul do Equador alimentavam as imaginações. O ato de ouvir se aliou ao de ver. Os navegadores, os cronistas e os marinheiros estavam tomados pela “vertigem da curiosidade” e tais homens captaram e aprisionaram o raro, o estranho, o singular. Desde o século XII, o europeu mescla as descrições sobre outros mundos com o “maravilhoso”, dando vida aos seres que habitaram os confins do mundo conhecido. Era nos mares que viviam os animais monstruosos. Para a historiadora Laura de Mello e Souza, na obra O Diabo e a Terra de Santa Cruz, o Oceano Índico é um “horizonte corporificador do exotismo”, lugar de sonhos e do fluir dos instintos. Bem além do Índico, poderiam ser encontrados cinocéfalos, ciclopes, trogloditas, acéfalos, homens-formiga, seres criados pelo imaginário europeu para seu “mundo pobre e limitado”. O canibalismo, nudismo, liberdade sexual, erotismo, incesto eram temas que habitavam o Índico e que também estiveram presentes na descoberta da América. Do Índico ao Atlântico o imaginário europeu leva toda a mística do diferente em seus relatos. O Oceano Atlântico torna-se reduto de humanidades monstruosas. Já o Brasil foi, ao mesmo tempo, “paraíso terreal” e “reino do demônio”.

O dia que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz (…) era a 3 de maio, quando se celebra a invenção da Santa Cruz em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por esta causa pôs nome à terra que havia descoberta de Santa Cruz e por este nome foi conhecida muitos anos. Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha os desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja. [86]

A madeira tintorial de cor avermelhada que existia na “porção imatura da Terra” contribuía para as possessões demoníacas. O bem e o mal, o belo e o feio viviam em embate por almas na terra recém-descoberta, chamada primeiramente de Santa Cruz (nome sacro). Para frei Vicente do Salvador (1564-1636), o vermelho demoníaco era da madeira que “batizou” o Brasil (nome profano). Já frei Antônio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779) via o Brasil como sobrenatural e miraculoso, no qual nosso descobrimento era um milagre divino. Laura de Mello e Souza (1986, p. 29) afirma que as grandes descobertas e os relatos de viagem eram “embelezados pela imaginação”:

Componentes do universo mental, nunca estiveram isolados uns dos outros, mantendo entre si uma relação constante e contraditória: na esfera divina, não existe Deus sem o Diabo; no mundo da natureza, não existe Paraíso Terrestre sem Inferno; entre homens, alternam-se virtude e pecado (SOUZA, op. cit.).

Os “descobridores” provavelmente pareciam ter a mesma opinião sobre os primeiros habitantes das terras encontradas: tinham beleza e feiura no corpo. Segundo Jose Carlos Reis, na obra As Identidades do Brasil 2: de Calmon a Bomfim, do ponto de vista português, houve uma descoberta; era um “olhar estrangeiro, violento e conquistador” (REIS, 2006, p. 47). Para o historiador Pedro Calmon Moniz de Bittencourt (1902-1985) (apud REIS, loc. cit.), o descobrimento do Brasil deveria ser visto como um “encontro”, um “olhar recíproco” entre brancos e indígenas. Calmon coloca que a “descoberta do Brasil” não foi feita nem pelo índio, nem pelo português, mas por aquele que resultou do seu “encontro”, o brasileiro. “A reciprocidade do olhar entre portugueses e índios gerou o brasileiro e o mundo brasileiro” (REIS, loc. cit.). Segundo Tzvetan Todorov, na obra A conquista da América: a questão do outro, Cristóvão Colombo (1451-1506), ao “descobrir” um “Novo Mundo”, tinha opinião de que os nativos lhe pareceriam “gente que não possuía praticamente nada”. Nas ilhas caribenhas, Colombo chamou de “índios” aos aborígenes que encontrou. Andavam nus, tinham “corpos muito bonitos”, “cara muito boa” e faziam “gesto bonito, elegante” (TODOROV, 2010, p. 41). Todorov afirma que para Colombo, três eram os motivos das navegações: humano, divino e natural:

Três argumentos vêm apoiar a convicção de Colombo: a abundância de água doce, a autoridade dos livros santos e a opinião de outros homens encontrados. E claro que estes três argumentos não devem ser postos no mesmo plano, mas revelam a existência de três esferas que dividem o mundo de Colombo: uma é natural, a outra divina, a terceira humana. Então talvez não seja por acaso que encontramos também três impulsos para a conquista: o primeiro humano (a riqueza), o segundo divino, e o terceiro ligado à apreciação da natureza. E, em sua comunicação com o mundo (TODOROV, 2010, p 22).

 Planetas separados, pessoas de diferentes estéticas, porém, todos nus e “bonitos” em um primeiro encontro com o europeu navegador.  Para Pero Vaz de Caminha[87], escrivão da Armada de Pedro Álvares Cabral ao escrever para El Rei D. Manuel, fala sobre os índios serem praticamente seres edênicos retirados do paraíso cristão, “muito bem cuidados e muito limpos”. A limpeza contrasta com outras características. São índios “bonitos”, porém também animais, não possuem alma.

No imaginário brasileiro existe uma formação subscrita por nativos, selvagens canibais; e por navegadores, degredados, ladrões, judeus, ciganos e inimigos do rei. Depois chegam os negros. Os degredados deixados no Brasil “teriam que conviver com os nativos e aprender seus costumes e suas línguas, para servir de intérpretes aos colonizadores”, conforme Margaret Presser (2006, pp. 96-97), em sua Pequena Enciclopédia para Descobrir o Brasil. Para a mente cristã ocidental (leia-se Portugal e Espanha), no Brasil somente havia gente sem alma, seres estranhos, animais selvagens e mercadorias para troca e venda (animal ou humana). Roberto Gambini (1999, p. 63) afirma que nós − povo brasileiro − começamos de um “ato de negação” que ocorre quando “duas civilizações se encontram, se juntam, mas uma nega a outra”. Os índios como objetos da primeira negação e os negros da segunda. O índio era selvagem, preguiçoso e se fosse escravizado, morreria. Alimenta-se aqui o imaginário da negação da cultura, da preguiça para o trabalho braçal e agrícola representado no modo de ser indígena. Já os africanos alimentam o imaginário da feitiçaria, do “bárbaro” que fugia e montava guetos, negando a colonização e a cultura do branco. O índio era um animal e o negro, mercadoria.

Para o diplomata francês Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882), que permaneceu no Brasil por 15 anos, a população brasileira representava o que havia de mais feio e imperfeito na humanidade, por ser produto de uma mistura racial condenada ao enfraquecimento e degenerescência da espécie humana. Não por acaso, João Ribeiro[88] (2008, p. 13) cita o termo “mulato (a)” como usado para descrever mestiços que parece ter-se derivado do sentido primitivo de mulato, jumento. As mulas são resultado do cruzamento do jumento com égua ou do cavalo com a jumenta e mulato/mulata (do latim mula) passou a ser usado como analogia aos filhos/filhas de homem negro com mulher branca e vice-versa. Conforme Schuma Schumaher e Érico Vital Brazil (2007, pp. 192-195), os grupos negros seriam formados por “criaturas sensitivas, fantasiosas, imediatistas, extremadas, expansivas e cruéis”. Assim, para ter assegurado o sucesso da nação, era preciso recorrer ao branqueamento – via imigração europeia – para quebrar a determinação dos traços negros e indígenas no conjunto da população brasileira. Gobineau não era o único estrangeiro a acreditar na fealdade brasileira. O Brasil foi considerado, em narrativas do zoólogo Johann Baptist von Spix (1781-1826) e do antropólogo Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), como um país degenerado, com um povo de feição estranha, um país de “natureza inferior”, de “homens inoportunos, seminus” que feriam a sensibilidade europeia (SPIX; MARTIUS, 1981, pp. 90-91). Os naturalistas bávaros que aportaram no Brasil, no início do século XIX, se deslocando em expedições pela terra desconhecida, acreditaram que o país refletia um “espelho mágico” miscigenado, com “inferioridade de raças de pele escura”. Karen M. Lisboa, ao pesquisar a obra Viagem pelo Brasil (1817-1820), de Spix e Martius, nos informa que a visão dos viajantes sobre a “Nova Atlântida” (Brasil, lugar místico e mítico) tem no brasileiro uma mistura de “diversas raças na sua promiscuidade” (LISBOA, 1997, pp. 136-137). O Brasil, uma ex-colônia, não era reflexo das alvas pessoas da Europa, uma terra com gente de todas as cores e vestuários.

Desde cedo as narrativas de viagens sobre o Brasil aliavam fantasia e realidade, tornando fluidas as fronteiras entre real e imaginário. Porém, nas terras brasileiras, o aspecto mágico presente no imaginário renascentista, com uma imensa geografia fantástica, não era mais local do “maravilhoso”, mas espaço de desordem e deformação (LISBOA, 19997, p. 138). Conforme devassavam o vasto território nacional, os naturalistas, pelas luzes da ciência, apagavam nossa cartografia fantástica. O imaginário europeu dos séculos XVIII e XIX desencantou nossas terras longínquas ricas em fantasia. “Do descobrimento desta ‘ignota imensa terra’ (...) só nos cabe dizer que tornou pequeno o mundo, destruindo todo um supramundo de sonhos graciosos e imaginações e de ilusões geográficas” (GERBI, 1960 apud SOUZA, 1986, p. 22).

Na composição do hino nacional encontramos: “gigante pela própria natureza”, verso que anuncia o sublime natural de um país que se diz forte, “impávido colosso”. O colosso é outra imagem do gigantismo e o belo aqui é exacerbado, enquanto o povo encontrado, segundo a narração escrita por Pero Vaz de Caminha ao Rei Dom Manuel, mostra seu corpo nu e suas “vergonhas” sem nenhum problema. Na primeira aparição da mulher nativa aos olhos dos europeus, ela parece ser feia e bonita, simultaneamente. Caminha descreve: “três ou quatro moças bem novinhas e gentis”. Sua descrição narra mulheres de cabelos pretos que chamam a atenção justamente por não conhecer a noção de “vergonha” ou de “pecado”.  Índias belas por desconhecer o feio ou feias por desconhecer o belo? Desde o encontro do europeu com o indígena, o imaginário que se constrói em torno do Brasil revela um discurso que oscila entre o feio e o belo. Ao mundo, mulheres belas, nuas, desconhecedoras de suas “vergonhas”; homens (índios) preguiçosos e ingênuos, não afeitos ao trabalho, pelo menos à noção de trabalho dos europeus; a natureza exuberante que faz crer que “não há pecado do lado de baixo do Equador”.

 

 

2.3.1 Do Imanifestado ao gentio, o indígena como poxi-poranga

 

 

No princípio era o indígena brasileiro e os índios viviam com seus vários deuses, com um imaginário rico em relatos de seres feios e bonitos que viviam em um mesmo ambiente – o Pindorama, “terra das palmeiras”. Em deambulações pelas mitologias indígenas existentes no imaginário brasileiro, notamos que o feio é uma força da natureza. Na teogonia[89] tupi, os mitos são quase todos ligados a algum elemento da natureza (água, sol, terra, lua, trovão). Alguns seres míticos de nossa fauna e flora são demonizados pela cultura invasora, seres que são, também, influenciados e remodelados pelos europeus. Alguns de nossos deuses viraram diabos após a entrada da religião cristã no Brasil, nascemos “sob o signo do Demo e das projeções do imaginário do homem ocidental” (SOUZA, 1986, p. 28).

 Em nossa “mitologia brasílica” [90] são ricas as fontes da fealdade nacional dentro das lendas dos povos indígenas brasileiros. Como fealdade, entendemos o ser “poxi” que revela seu valor (moral) e supera a forma física (estética). Na mitologia indígena existem seres diversos, alguns monstruosos, dispostos ao bem da natureza, lutando pela proteção do espaço que habitam/existem. Também temos os seres de sedução (Boto, Iara) e punição (Curupira, Caipora), lendas de embate entre o humano e o sobrenatural. Para entendermos nossa fealdade brasileira, partimos de uma compreensão sobre nossa origem mítica antes e durante a chegada dos navegadores no século XV.

Antes da chegada dos navegadores, nos séculos XV e XVI, os povos nativos eram conhecidos pelos tupis como: “Filhos da Terra” (Tapuia), “Filhos do Sol” (Tupinambá) e “Filhos da Lua” (Tupy-Guarani). Os “Filhos da Terra”, o povo Tapuia, também eram os “Filhos do Sonho”, segundo Kaka Werá Jecupé (1998, p. 19), na obra A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio

No panteão indígena brasileiro, os deuses[91] mais conhecidos são: o Trovão (Tupã), o Sol (Guaraci/Cuaracy/Coaraci), a Lua (Jaci) e o Amor (Rudá). Porém, existe uma força, uma energia anterior a esses quatros deuses maiores e que é conhecida pelos indígenas brasileiros (tupi) como – Nhanderuvuçú (ou Ñamandu/Nhamandú/Yamandú/Nhandejara). Luiz Carlos Barbosa Lessa relata que a energia primeva (ser antropomórfico) é o primeiro pai/mãe do indígena brasileiro. É de Nhanderuvuçú que sai a atração dos corpos, “o Anhang dos anhangs, a Alma das almas” (LESSA 1993, p. 17). O que conhecemos como Brasil é uma só natureza (sem norte ou sul), quando Ñamandu (o Imanifestado, o Vazio, o Um, a Origem, o Mistério) começa a agir. Representado pela coruja que “produz silêncios” (mistério e sabedoria) Ñamandu tem como símbolo milenar um círculo grande com um círculo menor dentro. O ser humano tem o símbolo para se aproximar da realidade, para interpretá-la, posto que não pode conhecê-la diretamente. O símbolo é ligado ao mito, por isso, arcaico. Ñamandu cria-se por si só na Vazia Noite Iniciada, num processo de abiogênese (geração espontânea) e de si próprio inicia o seu desdobrar (florescer). O papel de Ñamandu é unificar a consciência da gênese do povo indígena. Ñamandu, o mito que é o nada e é tudo, o antes-do-ser que por não ter vindo foi vindo e nos criou, lembrando Fernando Pessoa (1888-1935)[92]. Leremos aqui sobre criação do mundo, segundo a cosmogonia indígena, relatado por Lessa na obra Era de Aré: raízes do Cone Sul:

No princípio havia só Nhanderuvuçú, Nosso Pai Grande. Nosso Pai Criador. O Pai Primeiro. E de Nhanderuvuçú saiu a atração dos corpos, o Anhang dos anhangs, a Alma das almas, que era a força de Si mesmo. Mas viu Nhanderuvuçu que, assim, só de atração, eram os corpos monotonamente imutáveis, previsíveis, formados de um vazio sem nuanças; e que Sua própria eternidade, marcada de isolamento e certeza, jamais conheceria o sobressalto do acaso, o instigar da dúvida e o estímulo da descoberta. Então criou Nhanderuvuçú a repulsão dos corpos, que sai da inquietação da incerteza. E assim surgiu o gêmeo oposto de Si mesmo. Nosso Pai, o outro. O que leva o conhecimento. Nhanderú-Mbaecuaá. O Conhecedor. A cordialidade aproximou o coração de ambos, e da concórdia brotou Quarahy, o Sol, que dá o calor de vida. É no tempo sem fim de Quarahy surgiu o eterno renascer dos dias, marcado por Arací, a Aurora, mão da luz, e por Jací, a Lua, mãe de fagulhas eternas: as estrelas são fogos da lua. Depois da concórdia fez brotar Ivitú, o Ar, que gera os ventos. E nasceu ainda, já consistente, a Terra, que é nossa mãe Nhandecí. (...). Mas, para que as coisas pudessem existir em sua plenitude, foi ainda preciso criar o dom da Palavra, o Kaiuá. Pois uma coisa só vive quando há um nome que lhe dê sentido. (...). Foi Nhanderuvuçu o planejador e criador do universo, mas não o obreiro de seus pormenores. Nem muito menos seu redentor. Quedou-se no alto de Sua inacessível morada – o Ibá –, observando com Mbaecuaá a trajetória dos fatos. Observando e prevendo; mas intervindo, não. (...). Jogadas nesse ambiente, as criaturas. Cada uma trazendo em seu corpo e em seu espírito a síntese do todo. Cada ser pendendo entre a bonança e a tempestade. São dons divinos a Unidade e a Coerência. Dotes humanos: mutação e incoerência. Mas não quis Nhanderuvuçú manter-se eternamente alheio ao ser humano e suas vicissitudes. No ventre de Nhandecí gerou o Herói, Nhanderiquei, e deu-lhe a missão de cuidar bem dos homens. Nhanderuvuçú, o Criador. Mbaecuaá, o Conhecedor. Nhanderiquei, o Transformador.  Nhanderiquei ia explicar aos homens como fazer da pobre terra uma sã Terra-sem-Males (LESSA, 1993, pp.17-22).

A trindade da cosmogonia indígena brasileira é o Vazio (Nhanderuvuçú, o Pai), o Conhecimento (Mbaecuaá, o Conhecer) e a Redenção (Nhanderiquei, o Herói). Junto com o conhecimento vem a redenção dos males. Nhanderuvuçú nos dá a alma (Anhang/añã), então vem Nhanderú-Mbaecuaá – do conhecimento nasce à fala (nheê) – e, finalmente, Nhanderiquei, a unificação dos reinos visíveis e invisíveis.

Segundo Kaká Werá Jekupé, na obra Tupã tenondé: a criação do universo, da terra e do homem segundo a tradição oral Guarani, o Imanifestado continua criando e, então, vem Kuaracy/Coaraci/Coaracy/Guaraci, o Fogo-Mãe, Sol no idioma tupi; coá (este), ara (dia), ci mãe), “mãe deste dia/mãe do dia”. Para Osvaldo Orico (1975, p. 44), na obra Mitos ameríndios e crendices amazônicas, todas as coisas criadas têm mãe e na teogonia tupi, a mãe tem maior importância na expressão de filiação, pois os indígenas prezam a Mãe Terra. Guaraci, segundo Orico, é a “mãe vivente” (guara, vivente; ci, mãe); Jaci é a “mãe vegetal” (ja, vegetal; ci, mãe). Jaci, na cosmogonia indígena, notadamente é considerada uma aparição fantástica. Para Chevalier e Gheerbrant (2007, pp.561-566), a lua é símbolo de conhecimento indireto (por reflexo, conhecimento teórico) discursivo, evocava metaforicamente a beleza e também a luz na imensidade tenebrosa. Jaci é a beleza passiva e a fealdade fúnebre, divindade ctônica dos seres noturnos e subterrâneos ligados à lua. Luís da Câmara Cascudo (1988, p. 233), no Dicionário do Folclore Brasileiro, coloca Coaraci como a origem da luz diurna. Sampaio (1901, p. 122) cita Coaracy como a mãe do mundo, o Sol, o astro do dia. Já Tupã, o desdobramento do Todo; corruptela de tu-ã: tub, é o que jaz, o que reside; am/ã, alto, erguido, superior, o que está no alto (Ibid, p. 154). Para Fernão Cardim, o significado do vocábulo Tupã é ligado ao verbo (bater), que na terceira pessoa do modo permissivo faz to-pã (“ele que bata”), é um composto de tub (pai) e ang (alma), “parecendo-nos que assim o vocábulo satisfaz ao sentido que lhe davam os índios (segundo a tradição) e, além disso, forma antítese com aûãng (o espírito do mal), também conforme a tradição” (CARDIM, 1881, p. 115). Barbosa (1951, p. 153) identifica Tupã como gênio do trovão, do raio. Para o cronista e pastor calvinista Jean de Léry[93] (1961, p. 140), Tupã é designativo de raio, trovão; tu, (golpe, golpear, bater) e ; ao trovão, propriamente, dão o nome de tupãsunu (ronco ou ruído de raio). Tupã é o “Grande Som Primeiro”, o som do Trovão, e tem como animal representativo o colibri (da lenda, “luz veloz que paira no ar”, “voa não voando”), a própria “virilidade radiosa”[94], o mensageiro divino. Tupã possui um reflexo luminoso (tupãberaba, relâmpago) que cria outros seres. Os índios acreditam ser o deus da criação, o deus da luz. Sua morada é o sol. Para os índios Tupinambá, no século XVI, a força geradora de vidas era Tupã Tenondé (tu, “som”; , expansão/fluir; tenondé, primeiro/início). Quando o povo Tupinambá tentou comunicar aos religiosos europeus sobre o conceito indígena de divindade, os estrangeiros somente entenderam a superficialidade de Tupã como “deus do trovão”. Depois de Tupã, deu-se a criação da divindade Ñande-Cy ― “Nossa Mãe”, o mundo material, a encarnação da Terra e de todos os ventres grávidos ― que tem como símbolo a aranha (intercessão e entrelaçamento) e é a palmeira que é a coluna vertebral do mundo. Ñande-Cy gira e dança entre os quatros pontos do espaço (norte-sul-leste-oeste). A cosmogonia indígena, fruto da oralidade dos anciões da raça vermelha que detém o Arandu Arakuaa[95] (“sabedoria dos ciclos dos céus”), é representada pelos símbolos circulares.  

Interessante notar como uma representação semelhante pode ser encontrada na obra Crônica de Nuremberg[96] (1493), em que os dias de trabalho de Deus foram representados com círculos. Do primeiro ao quarto dia, temos criações semelhantes às criações do Imanifestado indígena. No primeiro dia, Deus cria as substâncias da Terra e cria-se a luz; no segundo dia há o estabelecimento do espaço vazio; no terceiro dia são criados a terra seca e os mares; e no quarto momento são criadas as estrelas e os corpos celestes (Gênesis, 1: 1-19). 

A Crônica de Nuremberg foi um livro utilizado pelos missionários nas tarefas de evangelização no século XVI. Há uma interculturalidade de mitos cristãos e indígenas? Apenas podemos afirmar que o mito tranquiliza e reconforta, pois é um meio tanto de defesa quanto de explicação. Jeanne Bernis (1987, pp. 27-40), na obra A imaginação; do sensualismo epicurista à psicanálise, colocou a criação mítica como um esforço para compreender o que se passava na natureza. O primitivo não podendo explicar, imagina; não podendo atingir a causa do fenômeno que o apavora, cria-a. Os indígenas inventam seus deuses para se libertar do medo daquilo que não entendem. Inventar deuses e monstros, o bom e o mau, o belo e o feio era inventar a própria autonomia; “invenção significa libertação” (BERNIS, 1987, p. 27).

Na mitologia indígena não existiam apenas os poderosos deuses, também existiam seres feios. O feio podia surgir como o mais visível, tocável, elemento afetivo de repulsa que dispúnhamos em nossa cultura. Podíamos ver, tocar e repudiar a feiura, mas também achá-la interessante, a independência das formas perfeitas. Na Estética do Feio proposta por Rosenkranz, o vulgar/grosseiro/ordinário é a negação do sublime (aquilo que suscita assombro e êxtase). Contido no elemento vulgar, temos a fraqueza, qualidade dos fracos que revelam a própria finitude diante da impotência, da passividade de suportar e de sofrer (ROSENKRANZ, 1992, p. 207). O ser vil, imperfeito, também atua como elemento vulgar, como uma negação da grandeza. Revelamos, aqui, alguns seres que possuem a feiura ligada ao elemento vulgar (feio e fraco) e o feio ligado ao elemento vil.

Foi preciso, antes de adentrar a fealdade indígena, entendermos a etimologia do feio para que a fealdade deixasse de ser experiência limite para se converter em começo, em origem. O feio se converteu, então, em algo interessante. Sobre a palavra “feio”, etimologicamente, temos o latim foedu como horrível, repugnante, desagradável à vista, disforme. Para José Antônio Tobias, em O Feio, a etimologia da palavra “feio” se une ao que existe de repulsivo e pecaminoso.

No alemão “laipsa” deriva do tocárico “t-lit-k” = ter repugnância; no grego “άλείτης” = atrevido, insolente, de “άλιτεῖν” = pecar. No irlandês, “liuss” (de lit-tus) = horror; raiz indo-germânica “leit” = ter horror, ter insolência. No alemão atual, feio = “hässlich” vem de “hass” = ódio. “Ekel” (adjetivo e substantivo) = repelente, repulsivo (alemão); “ekelig” (adjetivo) no baixo-alemão; “acklig” no sueco e “ugly” em inglês, todos com a mesma significação etimológica de “repelente, repulsivo”. Em polonês, feio = brzudki (c. bridki) = agudo, repulsivo. Pelo menos para o francês e o alemão, o termo “feio” é originário da Ásia, do Turquestão Chinês, onde morava o povo tocárico, que através do comércio da seda e da emigração, trouxe a palavra para a Europa, passando talvez mesmo pela Grécia através de seu “άλιτεῖν” = pecar (TOBIAS, 1960, pp. 77-78).

Há certa ligação entre o feio-pecaminoso relatado por Tobias e o feio no ambiente da família de línguas tupi-guarani[97]. Segundo o Padre Antônio Lemos Barbosa, na obra Pequeno Vocabulário Tupi-Português, “poxy/poxi” (do tupi [98]) é a palavra para feio, mau, ruim, sujo. Existe um peixe chamado “poxim”, palavra que significa sujinho, ruinzinho. “Poxicaba” é feiura. Em guarani, no Paraguai, quando dizem que alguém está poxi, querem dizer que está irado, bravo. Em guarani, usam a palavra vaikue[99] para feio. Segundo o vocabulário Tupi-Guarani[100], a feiura vem ligada à maldade, ao que é ruim:

 

  

Porangaba: beleza (adjetivo)

Porang: bonito

Porã: bonito/bom/belo (Guarani)

Porangatu: bem

Purãnga/porãnga/porãga: bonita

Poranga: belo, bonito

Porãeté (porãgete): belíssima (o)

Poxy/Poxi/Pochy/Puxi: feio (Tupi)

Poxixí: Muito feio

Porangueyma: Feio, o que não era belo

Poxyaíba/Poxiaiba: feio

Vaikue: feio/mal (Guarani)

Ova vaikue: rosto feio

Ité: ruim, feio, estranho, repulsivo

Iba: ruim, feio, imprestável

Aíua: feio

Ypochí: ruim

aib:prefixo com sentido de “mal”.

Aiba: ruim

Aibaba: homem mal

Aiba:nocivo (adjetivo)

Vai, vaikue: mal/ruim

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tabela 1: Feio na linguagem tupi-guarani

 

Na obra Meu destino é ser onça, Alberto Mussa restaura a mitologia Tupinambá (do tupi tubüb-abá, “descendente dos pais principais”) trazendo o elemento “poxi” como um ser feio, mas que emana luminosidade. Segundo Mussa, a mitologia dos tupinambás agrada e provoca emoções ao mesmo tempo em que tenta explicar a natureza e a cultura indígena brasileira. “O mito é necessariamente uma peça estética, cheia de metáforas e processos narrativos que visam entreter e provocar emoções. Ao mesmo tempo é um discurso teórico, que explica ou defende certa tese sobre o homem ou a natureza” (MUSSA, 2009, p. 71). Mussa relata que o ser poxi/feio é um homem especial, um dos grandes feiticeiros [101] que introduz a cultura aos homens. Poxi[102] pode ir ao céu (“terra-sem-mal”) e se comunicar com o grande criador, o Velho Túibae. Os outros feiticeiros são Maíra (em tupi, “Pai”) e Sumé (São Tome/Tupanguaipira). Maíra, Sumé e Poxi são guias da humanidade, como os daemones gregos. Um daemon (do grego daímon, “espírito, gênio bom e/ou mau”) é um ser intermediário que pode atuar entre o humano e o divino, entre o natural e o sobrenatural. A mitologia indígena não possuiu a bipolarização entre o sobrenatural, a infinitude, o Céu, a terra sem males, a existência divina, o imutável; e o natural a finitude, a terra plena de males, a existência inferior, o mutável, o perecível. Um daemon pode agir no entremeio dos mundos extraordinário (dos deuses) e ordinário (do humano), atuando em compartimentos estanques de uma mesma realidade, no oculto e no manifesto. Poxi é como um daemon, pois é familiar do Velho Túibar, o Criador divino; descendente do Pajé do Mel, primeiro dos homens; e parente de Maíra, da linhagem de seres de ensinamento e transformação. O Pajé do Mel é o único homem que sobra após o primeiro incêndio lançado pelo Velho contra a ingrata humanidade que se esquece do Criador Túibar. Maíra, da linhagem do pajé, é um outro daimon que surge entre os homens para organizar a vida humana e ensinar as “coisas que eram boas”. Assim como o Titã Prometeu (do grego, “antevisão”) deu o fogo dos deuses aos homens, Maíra deu o fogo da ave de rapina Guaricuja aos indígenas. “Foi o uso do fogo, o comer carne cozida, que fez os homens serem diferentes dos animais” (MUSSA, 2009, p. 39). Vindo de uma linhagem tão extraordinária, Poxi é o primeiro ser, na mitologia indígena/tupinambá ligado à estética corporal. A lenda de Poxi, relatada por Mussa, é a seguinte:

Entre os descendentes do Pajé do Mel, e parentes de Maíra, surgiu um outro, também muito poderoso, que tinha intimidade com o Velho e podia visitá-lo. Por ser também horrivelmente feio, era chamado de Poxi. Poxi, apesar de feio, desejou se casar com a filha de um grande tuxaua, chamada Cunhã-eté. Seguindo a lei estabelecida por Maíra, Poxi foi residir com o futuro sogro, para caçar e pescar para ele. Poxi daria excelente genro, porque, sendo grande feiticeiro, obtinha imensas quantidades de caça e pesca. Apesar disso, não era querido ― em função do seu aspecto repugnante.  O pai de Cunhã-eté não queria entregá-la a Poxi, preferindo na verdade um genro mais bonito. Certa vez, Poxi trouxe do rio um grande peixe, e Cunhã-eté, cobiçosa, pediu um pedaço. Assim que a moça mastigou o primeiro bocado, sentiu ter ficado grávida. E antes dos nove meses, deu à luz um curumim, chamado Guapicara. Guapicara cresceu num dia o que as crianças comuns cresciam em seis meses. Houve grande espanto na aldeia. A mãe de Cunhã-eté, que vigiava muito a filha, não conseguia compreender como aquilo fora acontecer. Cunhã-eté foi acusada por todos, mas se defendeu, afirmando que nunca um homem tinha encostado nela. O tuxaua, então, mandou reunir todos os homens, que deveriam trazer seus respectivos arcos. Os arcos foram postos no terreiro central da taba e o tuxaua mandou que a criança escolhesse um deles. Guapicara, porém, não escolheu nenhum. O tuxaua, então, decidiu convocar Poxi — embora para todos fosse inimaginável ter sido aquele homem horrendo o amante de Cunhã-eté. Poxi, então, pôs seu arco junto dos demais. E foi o arco de Poxi que Guapicara apanhou. Guapicara escolhera o arco do pai. Poxi, então, foi insultado; e expulso da taba. Mas Poxi sabia como chegar à terra-sem-mal. E levou com ele Guapicara e Cunhã-eté, por um caminho que todos ignoravam, para além das altas montanhas. Enquanto a família de Poxi, na terra-sem-mal, vivia em abundância, na taba do tuxaua as pessoas passavam muita fome. Poxi, então, mandou a mulher visitar os parentes, levando comida. Mandou também que ela os convidasse para virem à terra-sem-mal, desde que — quando chegassem — não tocassem em nada antes de falarem com ele. E ela foi, acompanhada pelo filho, levando milho e batata-doce, e fez o que Poxi determinou. Os parentes de Cunhã-eté tinham fome; e aqueles alimentos desconhecidos deixaram todos eles maravilhados. Assim, embora tivessem ódio de Poxi, decidiram aceitar o convite. Quando chegaram na terra-sem-mal, guiados por Guapicara, viram que havia feijão, abóbora, batata-doce, mandioca, e muitas frutas diferentes. Famintos, começaram a comer tudo, ignorando o perigo em que incorriam. Quando se deram conta, já era tarde: estavam transformados em caititus, maracanãs, canindés e outros tipos de pássaros. Além dos pais de Cunhã-eté, restaram muito poucos sob forma humana. E eles lamentaram, por terem atendido ao convite de Poxi — que nunca haviam deixado de odiar. Poxi, então, apareceu; e disse ao sogro que — para evitar as metamorfoses — deviam se lavar com a água de um pote, que Cunhã-eté traria. O tuxaua, desconfiado, em vez de esperar a filha, foi se lavar num rio. Imediatamente, se transformou num jacaré. A sogra de Poxi também se lavou nesse rio e virou um tracajá. Os demais parentes, apavorados, tentaram fugir e se transformaram em grilos e outros insetos. Poxi, vingado, retornou com a família à antiga aldeia do sogro. Todavia, não conseguiu ser feliz, porque Cunhã-eté continuava sentindo por ele a repugnância de antes, em virtude da sua tremenda feiura. Assim, com ódio da mulher, abandonou tudo e foi para o céu. Antes, porém, transformou a si mesmo no mais belo homem do universo. Guapicara tentou segui-lo, mas virou uma grande pedra que passou a separar o mar da terra. Outros também tentaram seguir Poxi; e foram petrificados, ou foram transformados em várias espécies de peixes e animais. Depois de um tempo, Maíra fez o filho de Poxi voltar à forma humana e se tornar um grande caraíba. Guapicara criou, então, o ornamento de cabeça: o canitar, com plumas de diversas aves. Não satisfeito, Guapicara quis fazer para si um canitar de fogo. [...]. Depois, Guapicara foi para o céu, onde estava seu pai, e fez para ele um outro canitar de fogo, muito maior que o primeiro. Poxi — agora chamado Cuaraci — , quando pôs na cabeça o imenso presente feito pelo filho, passou a ser visto por todos os habitantes da terra em sua profunda beleza. E assim criou-se o dia — porque o canitar de Cuaraci é o próprio Sol. A noite só reaparece quando Cuaraci tira o canitar, para dormir. Guapicara é a estrela que acompanha o Sol de perto (MUSSA, 2009, pp. 47-50).

Do mais feio ao mais belo dos homens, do ser repugnante e rejeitado à divindade solar, Poxi nos mostra que o feio pode ser belo e radiante, o Sol. Essa lenda é semelhante ao mito grego de Hefesto, relatado por Robert Graves (1960, p. 87) no primeiro volume da obra The Greek Myths. Hemero-phaestos, “aquele que brilha de dia”, é o deus manco da forja, inventor da metalurgia, a força por trás do vulcão, o “fabricante” da primeira mulher entre os humanos – Pandora, “a que recebeu dons de todos”, a mulher forjada do barro, moldada à imagem das deusas. Hefesto, expressão do deus faber, aquele que fabrica algo, é um habilidoso artesão. É interessante notar que a palavra alemã schön (“belo”) compartilha a mesma raiz de schein (“brilhar, resplandecer”). Hefesto é radiante pela força de sua forja, pelas criações instigantes, luz que complementa ou contrasta seu corpo feio. Não há aqui a distinção e o afastamento total entre o feio e o belo: “O feio é belo, o belo é feio”[103]. Tal metamorfose alargou as possibilidades de intercâmbio entre o belo e o feio, e é o que aqui chamamos de beleza ampliada. Na mitologia greco-romana a beleza tem como figura representativa a deusa Afrodite/Vênus. Afrodite foi dada, por Zeus/Júpiter, em casamento para Hefesto/Vulcano, ou seja, na mitologia grega a feiura se casa com a beleza, dá-se a habilidade em união com o desejo que forja os objetos da arte e a própria arte. O feio Poxi é rejeitado, mal quisto e mal visto, mas torna-se um belo ser, o Sol. Assim como Hefesto, Poxi também se torna “aquele que brilha de dia” ― Cuaraci. Tanto Poxi como Hefesto são considerados seres repugnantes, pois repelem ao causar desgosto por suas necessidades corpóreas, pela carência na simetria das formas (ROSENKRANZ, 1992, p. 282). Poxi e Hefesto são representações do feio natural que, segundo Rosenkranz (1992), é toda aquela feiura presente na natureza, desde a doença até a deformação, e que pode ser encontrada de forma imediata ou pode ser fruto de uma degradação.

A.S. Franchini (2011, p. 22), na obra As 100 Melhores Lendas do Folclore Brasileiro, relata outra versão da lenda de Poxi, em que temos um ser de nobre ascendência, mas de feia aparência. Maíra-Poxi, “por alguma desgraça do destino, nascera votado à infelicidade. Além de servo do cacique, ele era feio e corcunda”. A versão da lenda de Poxi relatada por Franchini é bem reduzida em detalhes, mas continua mostrando que o feio pode ser belo no mundo mítico. Outra importante lenda para nossa beleza ampliada, nossa cultura do feio no Brasil, vem de um relato que Jean Louis Rodolph Agassiz (1807-1873) nos apresenta, na obra Viagem ao Brasil 1865-1866, e que Câmara Cascudo traz, em Antologia do Folclore Brasileiro sobre a gênese do povo Munduruku/Munducuru[104]; a origem do algodão; o uso da tatuagem e da criação da ave mutum (do tupi mo-tum, corruptela de my-h't/my-tu, “a pele negra”) [105]:

O primeiro homem, Caro Sacaibu, era também Deus; seu poder se achava dividido com seu filho e um ente inferior chamado Rairu. Embora este fosse seu primeiro-ministro, e executor de suas ordens, Caro Sacaibu detestava Rairu. Para dele se desfazer, imaginou, entre outros estratagemas, o seguinte: fabricou uma imagem de tatu e enterrou-a completamente no solo, só deixando de fora a cauda. Besuntou essa mesma cauda em um óleo que adere fortemente às mãos quando nele se pega, e, feito isso, ordenou a Rairu que retirasse o animal do buraco em que estava meio enterrado, e o levasse para ele. Rairu puxou a imagem pela cauda, mas não conseguiu mais retirar a sua mão, e o tatu dotado de repente de vida pelo Deus, afundou na terra carregando Rairu consigo. A lenda não diz como este conseguiu voltar à região superior, mas, como era um espírito de grande imaginação, reapareceu sobre a Terra. Na sua volta, informou a Caro Sacaibu que descobrira nas profundezas uma multidão de mulheres e homens, acrescentando que seria excelente fazer-lhes sair dali para cultivar a terra e retirar os produtos do solo. Essa opinião parece que foi favoravelmente recebida por Caro Sacaibu. Plantou uma semente, e dessa semente saiu o algodoeiro, e foi esta, segundo a fantástica lenda, a origem do algodão. O arbusto cresceu e se foi desenvolvendo; dos pelos macios contidos no seu fruto, Caro Sacaibu fez um longo fio na ponta do qual amarrou Rairu e o fez descer novamente às profundezas subterrâneas pelo mesmo buraco que já servira para nelas entrar. Uma vez aí, o ente inferior apanhou os homens que foram içados para a superfície por meio do fio. O primeiro que saiu do buraco era feio e pequeno, e só aos poucos é que foram aparecendo pessoas mais bem aparentadas; finalmente surgiram homens de formas graciosas e elegantes mulheres dotadas de beleza. Infelizmente quando isso se deu o fio já estava muito usado; muito fraco para suportar um grande peso, rompeu-se, e a maioria dos homens bem constituídos e das mulheres belas caíram no fundo do abismo e se perderam. Por essa razão é que a beleza é coisa tão rara neste mundo. Caro Sacaibu escolheu então a população que tirara das entranhas da Terra, dividiu-a em diferentes tribos, marcando cada uma com a sua cor e com seu desenho diferente, por elas conservadas sempre depois disso, e distribuiu-lhes ocupações diversas. No fim só restou um rebotalho composto dos mais feios, mais fracos e mais miseráveis representantes da raça humana. A estes, disse Deus, traçando-lhes no nariz uma linha vermelha: “Não sois dignos de ser homens ou mulheres; ide e sede animais!” E eles foram mudados em aves, e, desde esses tempos, os mutuns erram com o seu bico vermelho pelas grandes matas soltando gemidos plangentes (AGASSIZ, 2000, pp. 305-307); (CASCUDO, 2002, pp. 128-129).

Homens graciosos, bem constituídos; mulheres elegantes e belas são coisas raras neste mundo, segundo a história do povo mundurucu. Os representantes da raça humana são escolhidos pela gradação da feiura e o refugo: “composto dos mais feios, mais fracos e mais miseráveis”, torna-se animalidade. Ao observar o que tira das entranhas da Terra, como um pai que ajuda em um parto, Caro Sacaibu percebe que a obra é feia e decide organizar a criação. O deus resolve tatuar seu povo, marcar com cor e desenho diferente para dividir as tribos. “A tatuagem dos mundurucus não se relaciona apenas com a ideia confusa duma ordem emanada do primitivo criador, é também o índice de uma aristocracia” (AGASSIZ, 2000, p. 307). Temos, aqui, a tatuagem[106] como elemento estético, como elemento de um discurso simbólico sobre o corpo para denotar a origem ou marcar momentos importantes de passagem da vida, como a puberdade e mudanças de status de meninos para guerreiros; inimigo para escravo. Como sugere Terry Eagleton (1993, p. 17), em A ideologia da estética, “a Estética nasceu como um discurso sobre o corpo”. Tatuar os corpos é como os indígenas se expressavam religiosa e magicamente.

A tatuagem nada tem de arbitrário e não depende do capricho individual; seu modelo é dado para ambos os sexos e não varia na mesma tribo. [...]. O adágio “é preciso sofrer para ser belo”, nunca foi tão verdadeiro como entre esses selvagens [os mundurucus] (AGASSIZ, 2000, pp. 396; 399).

O feio é aquilo o que, conhecido, desagrada. Em todo feio sempre existe: a coisa exterior; o desconhecimento dela; o desagrado resultante. A tatuagem indígena já foi motivo de medo (algo no corpo do outro), estranhamento e feiura, como qualquer tatuagem ao redor do mundo já o foi[107]. Viajantes estrangeiros se surpreendiam com as pigmentações corpóreas nos corpos dos indígenas brasileiros no século XVI. Em 1512, Henri Estienne (1470-1520) ficou impressionado com os índios originários do Novo Mundo. Estienne ficou impressionado com as cicatrizes azuladas, devido ao uso do jenipapo, nos rostos dos nativos. “Algumas iam das orelhas ao queixo. Quando cruzou o Atlântico de volta para casa, levou alguns índios consigo e os exibiu na corte francesa” (MARQUES, 2009, pp. 22-23). Para os índios Suyá do Xingu, a audição e a fala eram órgãos “sociais” e por isso ornamentavam as orelhas e lábios inferiores. Os Suyá afirmam que a orelha é furada para que as pessoas possam ouvir-compreender-saber. Os órgãos associados à visão e ao olfato são “faculdades antissociais”, segundo Anthony Seeger (1980, p. 51), em Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras.

 

Daniel Munduruku (2001, p. 44) afirma que, por pintarem as faces de preto, os mundurucus são conhecidos como “caras-pretas”. Sobre as tatuagens e ornamentos dos mundurucus, Henri-Anatole Coudreau (1859-1899) relata, na obra Voyage au Tapajoz (1897, p. 123), que os mundurucus possuem um “uniforme nacional”, não são “calças de uniforme e jaquetas em várias cores”, mas um uniforme desenhado e pintado sobre a pele. É pelas tatuagens que os integrantes das tribos se reconhecem. O rosto e o peito são decorados com vários losangos perfeitamente desenhados. Na parte posterior do corpo são desenhadas linhas paralelas, de cima para baixo, do pescoço até o alto dos calcanhares. Nas mulheres são ornadas, com vários detalhes, as partes carnudas e abdominais. A operação de pintura é extremamente dolorosa e começa quando a criança atinge a idade de oito anos. Como é de se esperar, a criança não se presta voluntariamente à pintura, então, a criança é levada à força, lançada no chão e privada de todo o movimento. Em seguida, o “índio tatuador”, munido de um pontiagudo dente de cutia, traça desenhos sobre o corpo da criança, que sangra, chora e geme. Sobre os pontinhos vermelhos que constituem a linha aplica-se o suco de jenipapo. O jenipapo é indelével e sua cor azul escura não se apagará jamais. Geralmente as lesões inflamam e ocorre certa febre. As pinturas corpóreas são feitas durante o inverno, pois a ação do calor é menos intensa. O trabalho é lento, deixa-se cicatrizar as primeiras feridas e depois se prossegue com a tatuagem. Somente ao chegar à idade de vinte anos é que o processo de tatuagem chega ao fim.

Esteticamente, as marcas corporais e os ornamentos entre os índios são símbolos de autoridade e poder. Porém, de acordo com a visão caucasiana e burguesa da Europa “civilizada”, a tatuagem é esteticamente deplorável, repleta de primitivismo, paganismo, exotismo e barbárie. “O feio só ocorre historicamente e, com o fluir histórico, muda seu conteúdo. Nem sempre o que foi considerado feio em uma época sobrevive como tal em outras” (VÁZQUEZ, 1999, p. 212). Vemos com o passar de nossa história cultural que o processo de tatuagem entre o Outro colonizado/marginalizado, que habita os interstícios de nossa cultura estética, e o Outro colonizador/dominador da estética passará de algo feio e dolorido para símbolo de dignificação social, para transformação artística do corpo. Para Oscar Canstatt (1842-1912), em Brasil: terra e gente, 1871, os índios guatós são bonitos por serem pacíficos para com os europeus e possuírem uma língua que soa harmoniosa aos ouvintes:

Os índios mais bonitos do Brasil são os guatós, que constituem
um grupo só por si. Na aparência não são muito diferentes das raças
caucasianas e os homens têm mesmo bastante barba. As mulheres usam
cabelos compridos e soltos caídos às costas, os homens, porém, juntam-nos atando-os num topete, e cobrem às vezes a cabeça com um
chapéu de palha. A não ser uma minúscula tanga pendente dos rins, andam completamente nus; enfeitam-se, porém, com uma pequena cavilha no lábio inferior, pequenos molhos de penas nas orelhas, colares de dentes de crocodilo e outras coisas. [...]. Seu relativamente alto desenvolvimento mental, que constitui notável contraste com o modo de viver, levou os brancos que com eles se encontravam a se interessarem, desde o princípio, por essas tribos. Sua língua soa também tão doce e harmoniosa, especialmente na boca das mulheres, que não são feias, mas tristes e concentradas, que se tem vontade de conhecê-la mais a fundo (CANSTATT, 2002, pp. 111-112).

Canstatt, preconceituosamente, nos revela como é a visão do outro sobre os indígenas brasileiros. Chamados de “selvagens”, “bárbaros”; “seres fabulosos” ou “teratológicos” (monstruosos). Para o navegador, era importante conhecer os confins do mundo, ir ao encontro do Novo Mundo, conhecer aquele limiar no qual o homem civilizado acreditava não existir humanidade, apenas “bestialidades”. Canstatt (2002, p. 101), mesmo indicando os guatós como bonitos, coloca o índio brasileiro como alguém com o físico desprivilegiado e possuidor de uma língua rude, simplória: “O corpo curto e entroncado, cara larga com a testa chata, olhos ligeiramente oblíquos, zigomas salientes, nariz achatado e mandíbula inferior muito desenvolvida, são características raciais mais ou menos comuns a todos os índios”. Para José Vieira Couto de Magalhães (1837-1898), na obra O Selvagem (1876), era importante que os indígenas soubessem o português de Portugal. Se não soubessem a língua do homem branco, os indígenas seriam apenas “homens ferozes, e temíveis”, mas se entendessem o idioma dos colonizadores, seriam “de uma docilidade quase infantil”. A “raça bárbara” era forçada a aprender a língua do civilizador ou era exterminada. “[...], por toda a parte onde a civilização da humanidade se colocou em contacto com a barbaria, o problema de sua existência só teve um destes dois instrumentos: ou o derramamento de sangue; ou o interprete” (MAGALHÃES, 1876, p. 32).

Em 1576, Pero de Magalhães Gândavo (?-1579) escreve Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil[108]. Nessa obra, Gândavo escreve sobre as capitanias existentes no Brasil, das fazendas e dos costumes da terra, da condição e costumes indígenas, histórias da província de Santa Cruz e, até, sobre um monstro marinho que foi morto na Capitania de São Vicente, em 1564. Sobre os indígenas, o autor relata:

Estes índios são de cor branca, e cabelo corredio; têm o rosto amassado, [...]. Pela maior parte são bem dispostos, rijos e de boa estatura; gente muito esforçada, e que estima pouco morrer, temerária na guerra, e de muito pouca consideração: são mal agradecidos em grande maneira, e muito desumanos e cruéis, inclinados a pelejar, e vingativos por extremo. Vivem todos muito descansados sem terem outros pensamentos senão de comer, beber, e matar gente, e por isso engordam muito, mas com qualquer desgosto pelo conseguinte tornam a emagrecer, e muitas vezes pode deles tanto a imaginação que se algum deseja a morte, ou alguém lhe mete em cabeça que há de morrer tal dia ou tal noite não passa daquele termo que não morra. São muito inconstantes e mutáveis: [...]. São muito desonestos e dados à sensualidade, e assim se entregam aos vícios como se neles não houvera razão de homens: ainda que, todavia em seu ajuntamento os machos e fêmeas têm o devido resguardo, e nisto mostram ter alguma vergonha (GÂNDAVO, 2008, pp. 133-134).

Gândavo (Ibid., p. 136), sobre a língua dos índios sul-americanos, indica o motivo de tanta desordem entre os “gentios”: “a língua de que usavam, toda pela costa, [...] carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei, [...]”. Para José de Anchieta (1933, p. 41) os indígenas não têm “nenhuma lei, a nenhuma autoridade se submetem, nem ao império de ninguém obedecem”. Gândavo e Anchieta colocam o indígena como um ser que não adora coisa alguma, não teme a morte e nem o post mortem, não tem senso de justiça e possuem uma lei baseada na vingança e na natureza. Visualmente os indígenas não agradam Gândavo, que cita o beiço furado, o rosto todo cheio de buracos e de pedras como algo muito feio e disforme. O que Gândavo não entendia era a liberdade de viver dos povos indígenas. Sem fé, lei ou rei, os povos não precisam seguir a mesma estética dos civilizados. Os indígenas possuem sua visualidade própria, seus ornamentos, pinturas e modos de falar e agir na tribo. Rosenkranz (1992, p. 74) coloca os costumes e a fisionomia feliz dos povos primitivos como algo belo, pois tais povos gozam da liberdade. Liberdade é uma forma de existência indígena perante a estética europeia: simétrica, apolínea, racional e objetiva. A satisfação da beleza dos povos indígenas acontece na multiplicidade de suas manifestações corpóreas. A beleza percebida pelos povos primitivos é uma beleza diferente para o europeu. A experiência do índio é bem diferente da mentalidade do homem civilizado. De acordo com Franz Boas (1858-1942) (2015, p. 15), “até as tribos mais pobres têm produzido obras que proporcionam prazer estético, [...]. De uma forma ou outra o prazer estético é sentido por todos os membros da humanidade. Não importa o quão diverso seja o ideal que se tenha da beleza; [...]”. 

Podemos perceber a transição do desconhecido ao revelado, do maravilhoso remoto ao maravilhoso conquistado por ação do olhar do homem conquistador, com um olhar do homem civilizado sobre algo originário da alteridade gestada na barbárie. Chamado de “selvagem” pelos europeus, o indígena brasileiro viveu o desregramento de sua cultura, sua língua. Era preciso repassar oralmente seus mitos e lendas aos mais jovens e, para tal intento, era necessário usar a “língua de gente” (do guarani, ava nhenhen) ou a “língua boa” (do tupi, nhehengatú). Aquele que fala a língua tupi-guarani é amigo, “é inimigo aquele que a não fala. [...]: a palavra que traduz a ideia de inimigo significa primitivamente: ‘aquele que não fala a nossa língua’”[109] (MAGALHÃES, 1876, p. 38). Quando o “viajante curioso” conheceu o mundo que encontrou seguindo o sol, percebeu que numa terra que acreditava desabitada havia uma vasta fauna, não de seres da natureza comum, mas de seres de natureza fantástico-maravilhosa, bons e ruins, seres repassados de geração em geração entre os indígenas. Assim, deu-se a existência e sobrevivência dos “Entes Sobrenaturais”.

 

 

 2.3.2 O feio entre os Entes Sobrenaturais

 

 

Nos séculos XV e XVI, o imaginário renascentista pinta um mundo a partir do gosto pelo maravilhoso, ligado ao elemento animal e vegetal; a astrologia faz parte do cotidiano do homem europeu, o sol e a lua regem os acontecimentos. Sobre o imaginário do mundo renascentista, segundo Tereza Aline Pereira de Queiroz (1995, pp.57-66), o homem é a medida de todas as coisas e a Terra é composta por quatro elementos/níveis de existência: humano, animal, vegetal e mineral. Os homens são governados por quatros temperamentos: colérico correspondente ao fogo, verão, à bílis, ao orgulho, à bravura; sanguíneo ligado ao ar,  à primavera, ao amor, à felicidade; o fleumático caracteriza-se pela gordura, sonolência, placidez, ligado à água e ao inverno; o melancólico tem sua ligação com a timidez, o engenhoso, a seriedade, Saturno e ao outono. Deus é concebido como arquiteto do universo, eclipses e imagens sacras que choram sangue são sinais de calamidade e profecias. “O poder mágico dos objetos contra o azar e a doença era reconhecido por pessoas cultas e pelo povo” (QUEIROZ, 1995, p. 60).

No período medieval, entre os séculos V e XV, a intensa espiritualidade rege a ordem natural como divina, mas também possui uma face de imagens medonhas, monstruosas. Os navegantes acreditam na existência de raças fabulosas. O imaginário sobre o Novo Mundo traz uma geografia fantástica. A natureza física do Pindorama é motivo de encantamento por parte dos viajantes, geralmente apreendida por estes como fonte de emoções e agindo de forma marcante e eufórica sobre a sensibilidade do observador. Mesmo com uma comunicação difícil entre viajantes e índios, o imaginário indígena se faz presente entre os diferentes povos. Para Mary Del Priore (2000, p.15), na obra Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI- XVIII), os monstros são um fato, concretude, e não um mistério, uma representação imaginária, para nossos antepassados: “Sua materialidade, para nós hoje uma quimera, um sonho, fazia parte daquele senso do possível ou do saber empírico posto em prática por marinheiros e colonos no período das navegações ultramarinas”. Os seres fantásticos descritos pelos nativos são bons e maus. O limite do real, do que conseguiam ver, e do que é imaginário é muito variável para os indígenas. O visto e o não visto tem a mesma força para o silvícola. Jacques Le Goff (1994, p. 16), em O imaginário medieval, afirma que o “imaginário alimenta o homem e fá-lo agir. Uma história sem o imaginário é uma história mutilada e descarnada”. As sensibilidades externas se unem às sensibilidades internas dos indígenas, a força física é regida pela força espiritual. Tupã dá a coragem para a batalha, Guaraci concede a força, Rudá (em tupi, “aquele que recorda”) ajuda na procriação e Jaci coordena os acontecimentos noturnos. Forças da natureza são mirabilis quando narradas pelos silvícolas. Da raiz mir (miror, mirari), mirabilia implica algo visual, mas não apenas ao que pode ser visto, vale também para o imaginado, para as metáforas. Mirari, mirabilia (maravilhoso) e miroir (espelho, do latim speculum) são palavras indicativas de que o mundo mágico, místico do índio é reflexo de seu próprio mundo palpável. A realidade, incluso a natureza e as criaturas, encobre e espelha (speculum) uma verdade divina e transcendental. É na cultura oral dos povos autóctones que o elemento maravilhoso ganha importância. Para Le Goff (1994, p. 48), existem as “maravilhas que ajudam (como certos objetos mágicos) ou maravilhas que é preciso combater (como os monstros)”.

Ao entrarmos na mitologia indígena, percebemos como os elementos mágicos da natureza (animais, ar, fogo, terra, água, astros) coordenam toda a tribo, desde o nascimento até a morte. Na verdade, os acontecimentos pós-morte têm importância para os que continuam vivos, pois existem seres que podem retornar para reclamar uma oferenda não realizada ou uma memória não honrada. O elemento da fealdade, agora, será a monstruosidade fantástica, seres de culto/adoração, entidades temidas e benfazejas. Em nossa mitologia brasílica temos desde raças fabulosas até nascimentos monstruosos. Segundo Michel Foucault (1999, p. 215), “o monstro garante no tempo e para nosso saber teórico uma continuidade que os dilúvios, os vulcões e os continentes desmoronados confundem no espaço para nossa experiência cotidiana”. José Gil (2006, p. 33) coloca os monstros como criações estranhas da Natureza ou de Deus, ou deuses. O próprio selvagem, o indígena para o homem branco europeu, é uma monstruosidade. São homens? Têm alma? Sobre um reconhecimento da subjetividade indígena, Lucy Dias e Roberto Gambini (1999, p. 16) afirmam que “o cristão europeu não foi capaz de reconhecer que havia uma subjetividade, uma história, ou uma alma”. Os cristãos portugueses e espanhóis tentaram “criar” uma alma, mas logo o espelho criado se voltou contra o seu reflexo.

O tema da alma considera como espelho, esboçado por Platão e por Plotino, foi particularmente desenvolvido por Santo Atanásio e por Gregório de Nissa. Segundo Plotino, a imagem de um ser está sujeita a receber a influência de seu modelo, como um espelho. De acordo com a sua orientação, o homem enquanto espelho reflete a beleza ou a feiura. O importante está, acima de tudo, na qualidade do espelho, sua superfície deve estar perfeitamente polida, pura para obter o máximo reflexo. É por isso, segundo Gregório de Nissa, que como um espelho, quando bem feito, recebe em sua superfície polida os traços daquele que lhe é apresentado, assim também a alma, purificada de todas as manchas terrestres, recebe em sua pureza a imagem da beleza incorruptível. É uma participação e não um simples reflexo: assim a alma participa da beleza na medida em que se volta para ela (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, pp. 393-394).

O que o homem civilizado dos séculos XV e XVI não percebeu era que houve uma história indígena, uma grande alma indígena, repleta de misticismo, seres encantatórios, ervas mágicas e almas vagantes. Os navegantes imaginavam águas povoadas por monstros e sereias, criaturas que habitavam os bestiários fabulosos e as geografias imaginárias tão comuns na Idade Média. Nos bestiários existem representações de seres anormais, híbridos, desprovidos de órgãos, gigantes (monstros por excesso) ou reduzidos (monstros por defeitos). O repertório de representações de monstros é vasto, indicando que o corpo é sinal de degenerescência: há seres em que a cabeça está localizada no peito, criaturas sem olhos, sem nariz (amyctyrae), sem ouvidos ou boca (astomi) e os monstros com o rosto no tronco (blemmyae). A falta de um órgão, um membro, caracteriza o monstro, mas o descomedimento também indica uma monstruosidade, como: um pescoço muito longo, orelhas de elefante, enormes lábios e órgãos sexuais avantajados. Há relatos de que, ao sul do mundo, existiam animais (existentes ou não) com formas extremamente absurdas. Seres que, como Luiza, são como fósseis que se desenterraram em nossas mentes, nos reconstituíndo a história das gerações que se sepultaram no passado.

Os “selvagens”, como os indígenas eram chamados pelos navegadores europeus, possuem grande tradição oral para disseminar e perpetuar sua cultura, seus seres míticos. Couto de Magalhães afirma que todo aquele que tratou com homens selvagens, teria conhecido, por própria experiência, como pouco comunicativos eram em tudo que dissesse respeito às suas ideias religiosas, suas tradições e suas lendas didáticas. Os indígenas têm receio de que o branco (o cariua/carahiba)[110] os caçoe, “e, entre os selvagens, assim como entre nós que nos ju1gamos tão superiores a eles, o amor próprio é a força moral preponderante” (MAGALHÃES, 1876, p. 146). Para Magalhães, assim como muitos dos mitos populares do Brasil, os mitos tupis são mitos védicos, ou seja, se fundem e se unem ao sangue dos grandes troncos da humanidade (védicas, avésticas e helênicas), ligando suas ideias morais, por uma lei de conservação confiada ao nosso “operário inconsciente”, à memória, e à tradição do povo iletrado. Sol, Lua, Trovão, Amor, o Grande Pai, a Grande Mãe, são elementos encontrados em todas as mitologias que, possivelmente, formaram nossa base mitológica. Mito solar (Poxi, o amante que perde a forma horrenda), lunar (Jaci), os protetores da natureza, mitos primários ou domésticos ― o “Saci Cererê[111], o Boitatá, o Curupira[112]”, como eram chamados pelos antigos viajantes das províncias de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso; ou o “Curupim”, como era conhecido pelos paraguaios e cubanos ―, representam um importante papel na vida do homem indígena. Para Joaquim Teófilo Fernandes Braga (1843-1924) existem entre os povos mais afastados pelo espaço, temas tradicionais comuns em fábulas e contos que reverberam na religiosidade, na arte e na moral. Em nossos contos populares encontramos elementos indígenas existentes há tempos. “O conto popular é tão importante ou talvez mais do que as inscrições cuneiformes, porque é ele, abaixo do mito, o vestígio mais antigo do pensamento humano” (MAGALHÃES, 1876, p. 154).

Nossas lendas eram descrições simbólicas dos diversos fenômenos meteorológicos que ocorriam com o sol, a lua, com outros astros. Para Mouzar Benedito (2009), a teogonia tupi tem uma estrutura interessante: Guaraci (Sol) protege os animais; Jaci/Jacy/Ia-cí (Lua) protege os vegetais; Rudá/Perudá, deus do amor, guerreiro que reside nas nuvens, privilegia a reprodução e incita a saudade nos amantes. Cada deus maior tem um séquito de seres monstruosos, feios, mas úteis para a vida da fauna e flora. Seguindo a classificação [113] dos deuses superiores e dos entes sobrenaturais, temos: Guaraci e seu séquito, Ipupiara, Caipora, Uirapuru, Jurupari, Uiara e Anhangá; Jaci, deusa Lua e mãe dos frutos, com o Curupira, Boitatá e Saci; finalmente, Rudá regendo Cairé (Lua Cheia) e Catiti (Lua Nova) para prosperidade das reproduções e despertar de saudades nos indígenas ausentes. Segundo Magalhães (1876, p. 71), todos os indígenas têm seu culto a um ser superior, entre os “Brazis” [sic] havia uma verdadeira teogonia e algumas tribos possuíam apenas “um ou outro espírito superior, a quem atribuíam certas qualidades sobrenaturais”.

Para encontrar a fealdade nos seres míticos indígenas, descemos ao fundo de nossa história, buscando personificações dos hábitos dos índios, muitas vezes apresentados como seres abjetos, monstruosos, repletos da “fealdade arcaica”[114] canibalisticamente ameaçadora; o monstruoso como imitação do temor que é difundido à sua volta como expiação do desconhecido. Claro que alguns seres aqui apresentados receberam a visão dos homens civilizados que literariamente descrevem algumas lendas tupi-guarani. Há uma infinidade de delicadezas percebidas em uma narrativa oral feita por um pajé, o que é bem diferente de um texto-original escrito por um jesuíta em um bestiário. Para o indígena que vive o mito não há bondade ou maldade no ser que habita a mata, pois o ser é um elemento da natureza que age em prol do todo, da Mãe Natureza. Alguns seres foram demonizados pelos jesuítas. Vemos que alguns seres são, para os índios, protetores da natureza, mas possuem um medonho aspecto. A monstruosidade é feiura, mas é presença necessária para proteção dos elementos da fauna e flora. Entre os indígenas a monstruosidade atua como um elemento comum, íntimo. O monstro surge como aquilo que é preciso ser negado para que se instaure o reino da representação. “O monstro descentra a representação”, afirma Gil (2006, p. 63). Os viajantes europeus trazem de sua cultura as informações que acabam dando imagem aos monstros da América do Sul. Porém, tais representações quando aportam no Brasil são descontextualizadas pelos saberes locais. Os monstros apresentam diferentes visualidades, com características discordantes entre si, como dois gêneros em um corpo. “[...] o monstro narra a gênese das diferenças” (FOUCAULT, 1999, p. 217). É num grande teatro do feio que se encena, ao longo dos séculos XV e XVI, o estranho cenário de nossa mitologia brasílica, um universo rico em oralidades e imagens do bem/mal, céu e inferno, tão relatado por diferentes tipos de homens “civilizados”.

Para Lessa (1993, p. 19), sobre os mitos indígenas, o Pai Primeiro (Nhanderuvuçú) cria o amor e a fala, mas não tem para quem dar tais dons. O Imanifestado resolve, então, nomear seus múltiplos, as quatro forças em uma, para equilibrar a proteção aos seres ― “Da proteção nasce o amor, e do amor, a compreensão”. Quatro seres sem feição, sem corpo que possuem apenas ouvidos para escutar os cantos mágicos. O primeiro dos quatro é Iyara, o senhor das águas; seguido de Tupã que governa ventos e tempestades; Curupira ou caapora habitante e protetor da mata e bichos; e Ceucí, a domesticadora da mandioca brava em mansa. Com as músicas mágicas e as palavras, as quatro forças dão vida às mulheres e aos homens. Como na abertura presente no primeiro capítulo do Evangelho de João (Bíblia cristã, Novo Testamento, 1:1-4), “no início de tudo era a palavra” a mais importante; Deus é a palavra que faz todas as coisas. O falar é o atrair, o encarnar o ser (fazer carne), encarnar o verbo é dar existência. Nossos seres míticos indígenas pertencem ao universo do encantamento, da sonoridade da fala, do encarnamento.

Se o perigo ronda, se o homem branco mata, o monstro feio surge para defender os seres da floresta, os indígenas. À noite, as almas, os seres das águas, do fogo, os encantados de nossa cultura mesclam oralidades de várias tribos, dos portugueses e espanhóis. Magalhães, ao escrever sobre as lendas dos tupis, explica o aparecimento da noite da seguinte forma:

De onde é que nós viemos? Aqui, como nos Vedas, como no Gênesis, a questão é no fundo resolvida pela mesma forma, isto é: no princípio todos eram felizes; uma desobediência em um episódio de amor, uma fruta proibida trouxe a degradação. A lenda é em resumo a seguinte: no princípio não havia distinção entre animais, o homem e as plantas; tudo falava. Também não havia trevas. Tendo a filha da Cobra Grande se casado, não quis coabitar com o seu marido enquanto não houvesse noite sobre o mundo, assim como havia no fundo das águas. O marido mandou buscar a noite, que lhe foi remetida encerrada dentro de um caroço de tucumã, bem cerrado, com proibição expressa aos condutores de que não o abrissem, sob pena de perderem-se a si e a seus descendentes, e a todas as coisas. A princípio resistiram à tentação, mas depois, a curiosidade de saber o que havia dentro da fruta os fez violar a proibição e assim se perderam (MAGALHÃES, 1876, pp. 162-163).

A curiosidade e a violação do tucumã fazem com que as trevas surjam. A filha do Cobra Grande[115] deseja a noite sobre o mundo. É na noite da mata que os seres agem. No imaginário indígena a noite é poderosa, criadora de microcosmos, situações e criaturas. Nossa lógica cartesiana possivelmente cria um mundo incompleto, um mundo que não sabe conversar com o irracional, o fantasioso, o imaginário. A noite é um grande teatro do imaginário. Dentro de cada cultura vivemos entre o visível, a luz, o raciocínio, a lógica e a consciência; e o invisível, a escuridão, as trevas, o irracional, o desconhecido e a inconsciência. Segundo Câmara Cascudo (1988, p. 527), as pessoas do interior do Brasil acreditam que “as horas das trevas são sinistras, e o mundo se povoa de seres estranhos e poderosos. [...], o ‘pino da meia-noite’, hora horrível, é de universal assombro fantástico”. A presença de um ser noturno pode anunciar uma desgraça, uma vontade divina, uma subversão. “O monstro vem para avisar e encher os homens de angústia” (GIL, 2006, p. 80). A noite, em algumas obras de arte literárias, artísticas e fílmicas, é o momento sinistro em que os animais maléficos e monstros infernais se apoderam dos corpos e das almas. Noite é mistério e, segundo Gilbert Durand (2002, p. 92), “a noite negra aparece assim como a própria substância do tempo. As trevas são sempre caos e ranger de dentes”. E é no silêncio da noite que um ruído se torna medonho gemido. “A obscuridade é amplificadora do barulho, é ressonância” (DURAND, loc. cit.).

A índia que desejou a noite era filha da Cobra Grande (Boia-Uaçú, Mboiaçu), um dos mais complexos mitos das águas amazônicas. Também chamada de Boiúna (mboi, cobra; una, preta), Cobra Grande é um ser mágico, irresistível, polimórfico e aterrador. Para Eduardo Enéas Galvão (1955, p. 98-99), Cobra Grande torna-se “navio encantado”, depois das doze badaladas, carregando as almas dos afogados. Quem vê “o encantado” singrando fica cego, quem o ouve apitar fica surdo e quem o segue fica louco. Câmara Cascudo (1988, pp. 132-134) cita Cobra Grande como ser nascido de mulher com fantasma ou de um ovo de mutum que tem um cabelo dentro. Boiúna ataca para matar, é a Mãe-d’água desprovida de beleza. Em uma versão do mito presente no Acre, a Cobra-Grande é uma linda moça de cabelos compridos que aparece em um festejo junino para deslumbrar a todos. Matar Boiúna pode trazer ruína à tribo. Outro nome da Cobra-Grande é Paranamaia (Paraná, rio; maia, mãe), ser que é “Serpente primordial, símbolo das Águas cósmicas, das trevas, da Noite e da Morte ― numa palavra, do amorfo e do virtual, de tudo o que ainda não tem uma forma” (ELIADE, 1992, p. 29). Outra lenda tupi ligada à imagem mítica da Cobra-Grande tem ligação com o surgimento do rio Oiapoque. Franchinni (2011, p. 38) relata que em um período de muita fome e doença, uma bela índia chamada Tarumã, grávida, decide procurar um lugar livre de penúria para dar cria a uma criança. Quase perto de dar à luz e depois de muito andar solitariamente, Tarumã pede ajuda a Tupã que a transforma em uma enorme cobra. Logo, Tarumã encontra um lugar aprazível e dá à luz a uma bela menina. A Cobra-Grande resolve retornar a sua antiga aldeia para avisar do bom lugar para seu povo. Com a filha na garupa, a cobra-índia chega à tribo e logo é atacada pelo seu próprio povo. Uma flecha acerta a pequena filha e quando a cobra vê a filha morta, lança para o ar um silvo de dor e tristeza muito aterrador. “Um verdadeiro rio de lágrimas brotou das pupilas da cobra, preenchendo todo o sulco que ela abrira durante a sua viagem de ida e de volta. Um rio imenso formou-se, e a cobra mergulhou nas suas águas caudalosas” (FRANCHINNI, loc. cit.). O simbolismo da serpente/cobra revela que todos os animais têm sempre algo a dizer aos homens. No caso da bela índia Tarumã, a metamorfose a fez um ser repulsivo, mas de boa atitude e maternal coração. Na mitologia anímica do povo tupi, a cobra pode encarnar um espírito bom e ruim como nas Escrituras, espaço que cobra encarna o mal (seduzindo Eva no Paraíso) e o bem (a vara de Moisés, símbolo de crença) (HOLANDA, 2000, p. 243).

Boitatá (mboi, cobra; tatá, fogo) é outro nome para o gênio protetor das florestas e campos que é representado como uma cobra, como uma serpente ígnea que reside na água. Mbaetatá (mbae, coisa; “coisa de fogo”) é citada pelo padre Anchieta em seus sermões. Quando Boitatá (a mítica, a ilusão) encontra a ciência, ganha o nome de “fogo-fátuo”, uma chama lendária que aparece na região sul do Brasil. Deixa de ser uma cobra de fogo para ser apenas “enorme quantidade de fósforo existente nas ossadas dos animais dispersos pelo pampa” (ORICO, 1975, p. 83). Mito ligado à Lua, logo ganha uma versão dentro do catolicismo que, segundo Benedito (2009), é o espírito dos não-batizados, uma alma penada.

Nosso imaginário onírico, religioso e artístico é, em grande parte, povoado por figuras monstruosas, deformadas e não-naturais; seres que possuem as raízes simbólicas imersas no mais profundo da nossa psique, das estruturas culturais e míticas mais arcaicas. A monstruosidade é repleta de poderes e valores simbólicos que versam sobre investigações acerca do estranho, do inatural, de um variado repertório iconográfico grotesco. A fealdade da alteridade tem um valor sagrado, profético e estético que reverbera na criação de mitos e na disseminação de lendas. Em nossa mitologia brasílica existem representações nas quais ocorre um processo de humanização do animal e a animalização do humano, uma ideia bastante presente nas religiões antigas. Esteticamente, nossas lendas indígenas humanizavam os seres da natureza e os fazem sedutores, belos e dignos de admiração: o boto rosa virava um belo rapaz sedutor; Cobra Norato, em algumas noites de luar, tornava-se um belo homem que saía das águas e caminhava pela terra; o guaraná já foi um lindo menino; a mandioca já foi uma linda menina, filha de uma índia que engravidou misteriosamente e foi expulsa da tribo; a vitória-régia já foi uma belíssima índia apaixonada por Jaci (a Lua), entre tantos outros belos relatos de seres mágicos da mitologia indígena. O panteão da teratogonia[116] indígena brasileira possui os mais diversos seres com as mais diferentes funções e representações. Vejamos alguns seres míticos indígenas e suas reverberações em nossa cultura:

Anhanga/Anhangá/Ingange (ã-nhã, alma errante, fantasma, visagem) é o deus da caça, protetor de todos os animais terrestres de grande porte contra os índios que querem abusar de seu pendor pela caça; se o indígena persegue uma fêmea que está amamentando, fica cego. Com a chegada dos jesuítas e das catequeses, anhangá torna-se um demônio, o diabo, um mau espírito (anhu). Para Magalhães (1876, p. 136), Anhangá significa “sombra”, “espírito” e é representado como um veado branco com olhos de fogo. Anhangá como numen mentium[117], uma divindade que altera a mente, engana: “Apesar da sua bela aparência, não era muito aconselhável tentar avistar o Anhangá, pois se diz que a simples visão deste cervo fantasma era o bastante para deixar uma pessoa louca” (FRANCHINI, 2011, p. 145). Um lugar que o Anhangá frequenta é mal-assombrado (ORICO, 1975, p. 130).

Ipupiara/Igpupiara/Hypupiara (do tupi, Ypupîara, o que está dentro d'água; y, água, pupé, dentro e ygûara, morador) integra o séquito de Guaraci, é o um dos poucos seres que aparecem em nossa mitologia como já tendo sido morto por um homem. Gândavo (2008, pp. 129-131), ao escrever sobre o monstro que mataram na Capitania de São Vicente, em 1564, narra como foi o encontro de Baltasar Ferreira com o “feroz e espantoso monstro marinho”. Visão diabólica, “uma cousa tão feia, que não podia ser senão o Demônio” é o que relata uma índia ao jovem Baltasar Ferreira que, com uma espada, encontra o monstro conhecido pelos índios da terra como Ipupiara, “demônio d’água”; foi retratado com “quinze palmos de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho tinha umas sedas muito grandes como bigode”. Gândavo ainda completa o corpo monstruoso com uma “cabeça e focinho de cão, seios femininos, mãos e braços humanos e patas de ave de rapina. No meio do corpo, uma cloaca” (GÂNDAVO, loc. cit.). Ipupiara está longe de sugerir a beleza das sereias capazes de seduzir incautos marinheiros. Com três metros de altura, esse homem-marinho vira barcos e canoas para comer apenas os olhos, narizes e pontas dos dedos de suas vítimas. Câmara Cascudo (2002, p. 51) cita o Ipupiara como uma espécie de tritão que mata os homens “apertando-os com o seu braço, não de propósito, mas por afeto”. Gênio das fontes, inimigo de pescadores mariscadores e lavadeiras. Fernão Cardim (2009, p. 151) descreve o monstro em dois gêneros, como parecido com homens de boa estatura, “mas têm os olhos muito encovados. As fêmeas parecem mulheres, têm cabelos compridos e são formosas”. Cardim ainda revela que o modo de matar as vítimas é abraçar a pessoa, tão fortemente, “beijando-a e apertando-a consigo que a deixam feita toda em pedaços, ficando inteira, e como a sentem morta, dão alguns gemidos como de sentimento e, largando-a, fogem”. O mesmo modo de matar a vítima é relatado por Sérgio Buarque de Hollanda (2000, p. 267), no qual “a fantástica ipupiara” chora ao perceber que o abraço e o beijo que deu no humano o mata, não impedindo o monstro de devorar a vítima morta. Porém, se o monstro aquático resolve comer a vítima, além dos olhos, dedos e narizes, devorava também a genitália. Depois de escrever sobre o Curupira e o Boitatá para a Companhia de Jesus, em Roma, o padre José de Anchieta (1900, p. 47) descreve o Ipupiara/Igupiara como um demônio que afoga os índios, como aparições noturnas que atacam nos bosques, açoitando, atormentando e matando os índios. Para Anchieta, os demônios produzem a morte ou ferimentos nos indígenas [118]:

Também há outro [demônio], nos rios, aos quais chamam igupiara, isto é, moradores da água, os quais igualmente matam os índios. Perto de nós há um rio, habitado pelos cristãos o qual antigamente os índios costumavam atravessar em pequenas embarcações, que fabricam de um só tronco de árvore, ou de sua casca, antes de para aí se dirigir os cristãos, e que muitas vezes eram por aqueles [demônios] submergidos (ANCHIETA, 1900, p. 48).

Óbvio que para o padre Anchieta, o demônio era culpado de todas as mazelas que acometiam os não catequizados, os não cristãos. O diabo era terrível e exercia uma terrível tirania sobre os “Bravios” que desconheciam a Deus. A fealdade está na inexistência de batismo, na não cristandade católica, na falta de fé. O Ipupiara foi monstro limitado à época da conquista e início da colonização, tanto que foi dado como morto já no ano de 1564.

Boto[119] é o deus dos abismos, dos mares, um D. Juan da planície amazônica, D. Juan fluvial/lacustre, perigoso sátiro fluvial. Existem dois tipos na Amazônia: o rosado[120] e o preto, conhecido como tucuxi. As primeiras menções ao boto sedutor datam do século XIX[121]. Nos festejos juninos, nos dias de Santo Antônio, São João e São Pedro, nas noites enluaradas com as fogueiras nos quintais, segundo a lenda, o boto rosado aparece transformado em um bonito rapaz, usando um chapéu que nunca tira, pois há um buraco para respirar que fica no topo da cabeça. “Nas primeiras horas da noite transforma-se num bonito rapaz, alto, branco, forte, grande dançador e bebedor [...]. Antes da madrugada pula para a água e volta a ser o boto” (CASCUDO, 1988, p.140). Ao narrar sobre os costumes amazônicos, Raul Bopp escreve versos no qual a beleza do boto é a beleza do homem branco e não do índio ou caboclo amazônico. Bopp narrou sobre um mutirão (em tupi, putirum) de feitura de tapioca no qual as mulheres falam sobre o boto:

– Joaninha Vintém, conte um causo.

– Causo de quê? – Qualquerum.

– Vou contar caso do Boto:

Putirum. Putirum.

Amor chovia

Chuveriscou.

Tava lavando roupa, maninha,

Quando boto me pegou.

– Ó Joaninha Vintém

Boto era feio ou não?

– Ah, era um moço loiro, maninha,

tocador de violão.

Me pegou pela cintura

– Depois o que aconteceu?

–Gentes...

Olha a tapioca embolando nos tachos.

– Mas que boto sabido!Putirum Putirum [122]

 

Mito antropomórfico, o boto encanta, seduz e engravida as jovens bonitas, nunca voltando para vê-las. Ainda hoje, na Amazônia, é comum uma jovem grávida que não sabe quem é o pai do filho (filho natural) falar que é “filho do boto” (PEREIRA, 2007, pp. 55-57). Herculano Marcos Inglês de Sousa (1853-1918) escreveu o conto sobrenatural O Baile do Judeu[123] que faz parte da obra Contos Amazônicos (1893). A narrativa gira em torno de uma festa realizada por um homem chamado apenas “Judeu”, na casa que ficava “a umas dez braças, quando muito, da barranca do rio”. Foram convidadas as famílias mais importantes e abastadas das redondezas, menos “o vigário, o sacristão, o andador das almas, e menos ainda o Juiz de Direito; a este, por medo de se meter com a Justiça, e aqueles, pela certeza de que o mandariam pentear macacos” (SOUSA, 2004, p. 103). Por ser Judeu, o anfitrião é, segundo a crendice popular, inimigo de Cristo, e quem fosse a sua festa teria azar. O baile estava repleto de gente, comida, música e “cerveja Bass”. A rainha do baile é uma moça “alta, gorda, tão rosada que parecia uma portuguesa” (Ibid., p. 106). Dona Mariquinhas tem uns olhos pretos que transtornam a cabeça de muita gente, mas é casada com o tenente-coronel Bento de Arruda, casório de conveniências de moça pobre. O ápice do baile ocorre quando entra um homem estranho:

Às onze horas da noite [...], entrou um sujeito baixo, feio, de casacão comprido e chapéu desabado, que não deixava ver o rosto, escondido também pela gola levantada do casaco. Foi direto a D. Mariquinhas, deu-lhe a mão, tirando-a para uma contradança que ia começar (SOUSA, 2004, p. 107).

Dançando frenética e bizarramente com Dona Mariquinhas, o sujeito dá “guinchos estúrdios” (Ibid., p 108) enquanto a mulher exprime na face “uma angústia suprema, em que alguns maliciosos sonharam ver um êxtase de amor” (Ibid., p. 109). O chapéu do estranho cai no meio da valsa, “o tal sujeito tinha a cabeça furada”. Era um grande boto, “ou o demônio por ele”. Como elemento da fealdade, a revelação do boto segue o que Kayser (2009, p. 158) adverte como parte essencial do grotesco: “o repentino e a surpresa”. Um horror que assalta a todos, pois revela que o mundo do Judeu possui uma segurança que é pura aparência e o mundo saiu fora dos eixos. O monstro arrastou a esposa do Bento Arruda, um nome quase santificado, para a ribanceira do rio e “atirou-se lá de cima com a moça imprudente e com ela se atufou nas águas”. Foi assim o fim dos bailes do Judeu (SOUSA, 2004, p. 110). O boto é animal ambivalente, híbrido, mistura de humano e de animal, vive à margem da sociedade e volta para seduzir as moças. Agassiz (2000, p. 302) relata, quando da captura de um boto, a superstição que o animal gerava entre os indígenas: “um índio cortara-lhe uma nadadeira, soberano remédio contra as doenças; outro lhe arrancara um dos olhos para dele fazer um feitiço que, colocado junto da moça a quem ama, conquistar-lhe-ia irresistivelmente o afeto”. O boto, ainda hoje, é aproveitado para algum fim mágico e/ou medicinal, especialmente afrodisíaco [124]. Em 1987, o cineasta Walter Lima Júnior filma “Ele, o Boto”[125], com roteiro baseado em argumento de Victor Lima Barreto (1906-1982) e Vanja Orico (1931-2015). Para Carlos Alberto Mattos (2002, pp. 289-293), o boto é um elemento expiatório para adultérios, filhos sem paternidade comprovada, crimes passionais, liberdade sexual feminina e licenciosidade masculina. “O boto seria, então, o transgressor que procura realizar o desejo primal, arquetípico, da espécie humana” (MATTOS, loc. cit.). Trazendo o boto como elemento grotesco, Magalhães relata como Uauyará/Boto age sobre o imaginário do povo interiorano:

A sorte dos peixes foi confiada a Uauyará. O animal em que ele se transforma é o boto. Nem um dos seres sobrenaturais dos indígenas forneceu tantas lendas à poesia americana como o Uauyará. Ainda hoje no Pará não há uma só povoação do interior que não tenha para narrar ao viajante uma série de histórias, ora grotescas e extravagantes, ora melancólicas e ternas, em que ele [o boto] figura como herói. O Uauyará é um grande amador das nossas índias; muitas delas atribuem seu primeiro filho a alguma esperteza desse deus, que ora as surpreendeu no banho, ora transformou-se na figura de um mortal para seduzi-las; ora arrebatou-as para debaixo da água, onde a infeliz foi forçada a entregar-se a ele (MAGALHÃES, 1876, p. 137).

O boto é a personificação de Uauiará, o grande amante das caboclas e índias tupi.  Lucy Penna (1989, p. 214-215) relaciona o boto como Uauiará, representando o variante masculino da mãe-d’água ou Iara, dona de igual poder de encantamento e sedução. “[...] o delfim é também associado a Apolo, o deus da Beleza e que carrega o Sol em seu carro. Esta associação deu ao famoso santuário grego desse deus o nome de Delfos”. O boto é a ligação com nosso grotesco-sedutor. O desejo sexual assume a forma fantástica de um ser marinho que habita um “fundo incessante de monstruosidades que aparecem, cintilam, caem em ruína e por vezes se mantêm. [...] a necessidade de fazer intervir os monstros — que são como que o ruído de fundo, o murmúrio ininterrupto da natureza” (FOUCAULT, 1999, p. 213). Para Franchini, o Boto, o mito como conhecemos atualmente, é uma mescla de corrupção das oralidades dos índios, brancos e mestiços, pois se fosse uma lenda autenticamente indígena, o Boto sairia das águas simplesmente para devorar e amedrontar sem recorrer aos estratagemas sensuais importados e típicos das culturas com mais vestimentas. Para o autor, “o Boto, despindo-se de sua aparência aquática, transforma-se magicamente num galante sedutor, trajado de branco e com um chapéu do qual jamais se desfaz”, caracterizando a vestimenta do homem branco (FRANCHINI, 2011, p. 147).

Outro ser da mitologia brasílica que é de beleza ampliada, pois é ser enganador que vive em limiares de lugares, possuindo gêneros diferentes e dupla moralidade é o Curupira/Currupira/Gurupira (do tupi, curu, abreviação de “curumi/curumim” e pora, “corpo” ou “corpo de menino”), ser benéfico/maléfico enviado para terra, por Tupã, para proteger os campos e florestas. O jesuíta português Fernão Cardim (1881, p. 89), na obra Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias, afirma que a palavra “curupira” foi traduzida literalmente por “sarnento” de curub (sarna) e pir (pele), tanto mais quanto “o tinhoso” é sinônimo de “o demo” na linguagem popular do Brasil e não constando que tivesse este sentido em Portugal. Também é um mito ligado à lua (Jaci), protegendo matas e animais; como Anhanga e Caipora. Tem origem na mitologia indígena, porém, assim como o boto, tornou-se um híbrido de duende europeu com mito brasílico. Ora representado com um curumim de pés invertidos e cabeleira de fogo/vermelha, ora como, segundo Mouzar Benedito (2009), um ser com dentes vermelhos, peludo, forte, com o corpo de um moleque atarracado. Osvaldo Orico (1975, p. 73) cita o curupira como ser privado de órgãos sexuais. Para Câmara Cascudo, o curupira tem os pés virados para enganar os caçadores e deixá-los perdidos na floresta tropical.  O curumim bate com os calcanhares no tronco das árvores para avisar os animais da aproximação de tempestades e para confundir caçadores, tirando-lhes o rumo de casa. Se um caçador mata um animal da floresta por necessidade de alimento, o curupira não interfere, mas se o caçador mata por prazer, o ser mítico ligado à Jaci torna-se hostil. Assim como Anhangá, Curupira é numen mentium [126] (gênio enganador).

Para Magalhães (1975, p. 138), Curupira é um pequeno tapuio, não falante da língua tupi, com os pés voltados para traz e sem os orifícios necessários para as secreções indispensáveis à vida. Também Franchini (2011, p. 160) cita que o curupira não possui nenhum orifício no corpo, e tem os pés virados, que “é uma característica clássica extraída dos bestiários europeus, que os padres portugueses trouxeram na bagagem juntamente com Tomás de Aquino e Santo Agostinho”. Quando Anchieta chegou ao Brasil (30 de maio de 1560), o “corupira” já era tido como o terror dos índios (nunca foi muito amigo dos silvícolas, que lhe devotavam grande medo). Os indígenas precisavam fazer oferendas para o curumim: penas de aves, abanadores, flechas e outras ofertas (CASCUDO, 1988, p. 273). Demônio, ser informe e sinistro para Anchieta, figurava na obra Crônica de Nuremberg como o “Opistópodos” (anomalia podálica; Figuras 23, 24 e 25). Em peregrinação fluvial pelo Amazonas, o militar Pedro Teixeira conduziu o padre Cristóvão D’Acunã, que foi incumbido de redigir o Nuevo Descubrimiento del grande Rio de las Amazonas (1641). Maravilhado, o jesuíta escreve sobre um rio grandioso (Rio de las Amazonas), peculiaridades reais e as criações da fantasia. Padre D’Acuña chama o curupira de “Mutaiú” [127]. Na obra Soldados da Borracha: (...), Gary Neeleman (2015) escreve, seguindo relatos de seringueiros, que o curupira é vermelho, assume a forma de um macaco com os pés invertidos, um mítico macaco demoníaco, e pode se transformar em uma bela jovem para deixar caçadores perdidos na floresta. Curupira pode ser feminino, masculino ou ter uma aparência andrógina. Em relatos encontrados no Alto Amazonas, Orico afirma que o curupira faz os estrondos na floresta batendo os calcanhares nas árvores. Já em Óbidos (Portugal) são encontrados relatos indicando que o curupira batia o próprio pênis, “que dizem de tamanho extraordinário”, nos troncos da floresta. Para Orico (1975, p. 75) pode existir ligação com fotografias existentes em muitos museus indígenas, nos quais imagens dos parintintins usando, como tangas, canudos de taquara de aproximadamente 25 centímetros no pênis. Curupira, ligado à Lua, aparece como representante fálico e protetor das matas. Príapo, ser mítico do mundo grego e latino na época helenística, era fálico e um elemento da estética da desmesura, dotado de um enorme órgão genital. Como filho de Afrodite, protetor da fertilidade, tinha sua imagem colocada em campos para proteger colheitas; “acreditava-se também que tinha o poder de afastar os ladrões ameaçando sodomizá-los”, segundo Umberto Eco (2007, p. 132), Príapo definido como amorphos, aischron (feio) por ser desprovido de uma forma justa. Príapo e Curupira possuem, em sua base imagética, certa ligação pitoresca estabelecida entre feiura, inconveniência e comicidade. “Em cada região aparece com um feitio, variando de atitude quando varia de localidade” (ORICO, 1975, p. 75)[128]. As imagens do curupira são bem contraditórias; ora é imperioso, esquisito, brutal, pois não admite desrespeito; ora é delicado, tolo e compassivo.

Em Cuiabá chamam-se Curupiras a anõezinhos nus, claros, quase louros, que vivem em colinas ou em barrancos. Uns os descrevem como indivíduos bonitos, ao passo que outros os dão como feios; aparecem no tempo de lua cheia ou de dia, em número de 2, 3 ou 5, e raptam crianças. [...]. As crianças que conseguem voltar têm a mente turvada e não sabem contar nada (CASCUDO, 2002, p. 159).

 

Uma variação interessante do Curupira (Ligado à Lua) é o Caapora/Caipora[129] (Ligado ao Sol). Os Tupinambás temiam Kaagerre/Kaaguára ou, mais corretamente, Kaaiguára, o morador do mato, o mateiro, o silvestre, a modos do Kaapóra, nosso conhecido Caapóra (LÉRY, 1961, p. 165). Caipora também existe nos gêneros masculino e feminino. Caapora (caá, mato; pora, habitante) tinha a mesma raiz da palavra “caipira” (do tupi, morador do mato). Na Paraíba, a caipora fêmea é conhecida como Flor-do-Mato. A caipora é uma mulher ciumenta, feroz, e quando traída tornava-se debochada e vingativa. Caipora, defensor dos bichos de pequeno porte, é um grande homem coberto de pelos negros por todo o corpo e face que aparece montado em um porco, um caititu, com dimensões exageradas. Outra versão do mito, segundo Câmara Cascudo (1988, pp. 177-178) é a de que o caipora é um pequeno indígena escuro, ágil, nu ou usando uma tanga, fumando cachimbo, fascinado pela cachaça e pelo fumo de corda, reinando sobre animais e fazendo pacto com caçadores. No nordeste do Brasil, o termo “fumar como caipora” é fumar com exagero. Caapora engana caçadores que não lhe dão ofertas de fumo e cachaça, também costuma bater nos cães de caça. Em Pernambuco, o mito primário apresenta apenas um pé (pé-de-garrafa)[130], não ataca ninguém, mas grita muito próximo às pessoas das quais não gosta, deixando-as doidas. Na Bahia, caapora é uma cabocla quase negra ou um negro velho. Ao longo do rio São Francisco é um caboclinho encantado, com o rosto redondo e um olho no meio da testa. Para afastar Caipora, devia-se mastigar alho e jamais caçar nas sextas-feiras, referência católica da catequese; dia da caça, não do caçador. Para Benedito (2009), ver Caipora dá azar, tendo como termo “caiporismo” para indicar alguém azarado, infeliz. No Ceará, Caapora tem os cabelos hirtos, dentes afiados, olhos como brasas e aparece montado num catitu. Quando avista um caçador, Caapora começa a cantar: “Currupá Papaco”. Para Orico (1975, p. 77), a cantiga era comum entre os degredados açorianos, que aqui chegaram a partir de 1564: “Algum dia já cantei/Hoje em dia não canto mais/Pacos pacos papacos/Rupa pacos/ Pacos pacos papacos/Rupas pacos”. E quem no Brasil nunca ouviu um dono de papagaio ensinar o animal a dizer “curupáco, loiro”? No sertão do Ceará, os sertanejos ensinavam os papagaios a dizer: “Curruá papaco/Currupá papaco/ No me pegue no tabaco”. O fumo do sertanejo é chamado “tabaco”. Porém, maliciosamente, tabaco é a variante usada para a parte genital das mulheres: “Currupacos papacos/Currupacos papacos/Sinhá velha tem tabaco”. O fumo/tabaco figura como a parte baixa feminina, pois uma “mulher tabacuda” é a que possui grande genital, o grotesco assume sua espécie escatológica. “Em cada imagem ou em cada texto há uma ponte direta entre a expressão criadora e a existência cotidiana” (SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 72). Por sua falta de distinção, o banal, o cotidiano, torna-se insignificante, vulgar e dessa maneira transforma-se em feio. A ambiguidade ocupa, ao mesmo tempo, nossa fantasia e nosso entendimento, criando o humor através da vulgaridade, da indecência ― é o cômico baixo (ROSEKRANZ, 1992).

Seguidor do séquito lunar é o Saci[131] (çaacy, olho mau/ruim; perereng, saltitante), um mito etiológico[132]. Nasce curumim (menino índio) com duas pernas, protetor da floresta. Carrega uma urupemba, uma peneira feita de finas talas de bambu, na cabeça e depois passa a usar uma carapuça. As tradições representam Saci com a figura de um pequeno tapuio, manco de um pé, com um barrete vermelho e com uma ferida em cada joelho (MAGALHÃES, 1876, p. 138). Ser que ajuda pessoas perdidas a encontrarem saída das matas. Foi mito demonizado pelos jesuítas, ganhando chifres e cheiro de enxofre (BENEDITO, 2009). Para Orico (1975, pp. 97), na lenda tupi, o Saci tem forma de pássaro que canta com duas sílabas, em notas melancólicas, ora graves ora agudas: “sa-cim” ou “ma-ti”. O som que o pássaro faz parece longe e perto, para a direita ou esquerda, é um pássaro enganador. Para espantar o pássaro que parece ser agourento, os mais velhos espalham fumo pelas cercas dos quintais e umbrais das portas. Saci é pássaro endemoninhado e fumador, acreditam os supersticiosos. A superstição popular deu vida ao Saci cheio de traquinagens que conhecemos atualmente. Quando a ave vira moço vagabundo pelas estradas, canta: “Saci-pererê minha perna me dói”. Sua diversão é causar sustos às pessoas.  Em contato com elementos europeus e africanos, o Saci indígena perde seu estado primitivo. Foram as mulheres africanas, contadoras de causos, que assumiram o Saci como um negrinho matreiro que pitava fumo, um costume típico de pretos velhos e pajés. Saci é uma forma de resistência, mito libertário contra a opressão da Casa Grande. Se tivesse sal demais na comida do “Sinhô”, bastava colocar a culpa no Saci. Assim como o boto sedutor, o Saci tem uma versão don-juanesca que encanta as moças, deixando-as pálidas, magras e tristes. Uma trova popular/quadrinha do Saci é cantada pelos sertanejos do seguinte modo: “[...]. Os amores do Saci trazem a morte a seu bem. Reza à Nossa Senhora que te livre do mal: amém” (ORICO,1975, p. 88).

Saci foi ente que sofre mutações e diferentes aparições em nosso imaginário. Hoje, o Saci é conhecido por ter uma perna só, olhos de fogo, gorrinho/carapuça/barrete[133] vermelho, ar brejeiro, andar pinoteante, cheiro de enxofre e aspecto de meninote. “A carapuça do Saci Pererê é justamente o Pileus Romano. Significa que o pretinho é livre para importunar a paciência alheia e ligado à ideia do encantamento, da força misteriosa dos talismãs” (CASCUDO, 2001, p. 48). Como negro, o Saci é ainda mais demonizado. Orico (1975, pp. 91-92) nos dá uma visão monstruosa do “irrequieto demônio” como um grande devorador de sangue de cavalo, sua principal vítima, ficando o dente numa veia do pescoço e chupando gostosamente o sangue até enjoar. Segundo Mouzar Benedito (2009), os três tipos mais conhecidos do Saci são: Pererê; o Saçura com olhos vermelhos e mais travesso que o Pererê; e o Trique, um Saci mais comportado. O Saci Trique é um trickster (do inglês trick, enganar) ou seja, uma sombra que engana e que prolifera em múltiplos, mas não faz mal ao homem. O Saci-Pererê também é conhecido como: Saci-Perê, Saci-Tapereré, Saci-Cererê, Saci-Saderê, Saci-Jerê, Seperê, Saci-Mofera e Matinta Pereira/Matintapereira/Mati-Taperê/Mati. Segundo a lenda, Matinta Pereira[134] é o Saci-Saçura (h-ã/h-ang e cy, mãe das almas) que vira um pássaro de canto melancólico/agourento e difícil de ser visto, pois vive em matas muito fechadas. Segundo a crença indígena, feiticeiros e pajés se transformam em Mati para concluir vinganças. Matinta Pereira, a assombradora de memórias, pode ser uma velha ou um velho de uma perna só que anda aos pulos e pita cachimbo (CASCUDO, 1988, p. 484). Para espantar Saci é preciso usar rosário feito de capiá (capim-de-Nossa-Senhora/lágrima-de-Nossa-Senhora/capim-miçanga) e olho de cabra. Um dos mitos mais conhecidos do Brasil, um símbolo de resistência, foi descrito por Monteiro Lobato (2008, pp. 16-17; 34; 61; 267) como:

Preto. Nariz de socó, língua de palmo, “pincésinho” no queixo, barriga de maleiteiro, umbigo de chorão, uma perna só, rasto de criança, espora de galo que dá para empoleirar dois pintos. Quando trepa em barranco deixa três riscos, sinal de que tem três dedos. Mão furada, orelha de morcego, carapuça vermelha na cuia, com barbicacho de sedenho. Acompanha os cavaleiros em viagem por dentro do mato, arrancando cipós. Quando vê gente, assobia, põe língua e “curisca”. Deita fumaça pelos olhos. [...] o saci-pererê, ou saci-cererê, ou ainda saci-saperê, saci-sai-Teresa, como também é conhecido, apresenta-se sob aspecto dum molequinho retinto, muito vivaz, maldoso, capacete vermelho na cabeça, olhos em brasa, uma perna só, capenga, sempre a pitar num pitinho preto. [...]. O Saci é um tipo mignon preto, lustroso e brilhante como o piche, não tem pelo no corpo e nem à cabeça; dois olhinhos vivos como os da cobra e vermelhos como os de um rato-branco; a sua altura não passa de meio metro. Híbrido e mutante, peão e cavaleiro, com o tempo mudou a coloração da pele e foi perdendo os atributos demoníacos como rabo, chifres e cheiro de enxofre. Ganhou o pito e um gorro vermelho, [...] sua estirpe africana permeia a maioria das declarações.

Em 26 de janeiro do ano de 1917, Monteiro Lobato, usando o título “Mitologia Brasílica”, publica no Jornal O Estado de São Paulo, na seção Estadinho (edição vespertina, página 15), o início de uma pioneira pesquisa de opinião pública (inquérito ou enquete), de abrangência nacional, sobre o Saci. Reunindo e organizando respostas de leitores e textos de sua autoria, Lobato organiza a obra O Saci-Pererê: resultado de um inquérito, lançado no início de 1918. Vários leitores do Estadinho participaram contando suas experiências, com conteúdos lendários e comportamentais, descrevendo como era o Çaa cy perereg e quais suas diabruras. Para ajudar no orçamento da edição de dois mil exemplares, Lobato vendeu espaço para anúncios, utilizando o saci como garoto-propaganda. Com a pesquisa de coletas de dados sobre o Saci, Lobato revitaliza a cultura popular e diminui a importância que a intelectualidade da época dava às mitologias europeias. Lobato (2008, p. 15) recebia cartas de vários estados do Brasil com descrições do “ser notívago, conhecido como filho da sombra”, que “ao raiar do dia esconde-se nos grotões, no fundo dos poços, na toca dos tatus, nos ocos das árvores ou em qualquer lugar onde não penetra luz, sua inimiga mortal”. O livro possui mais de cinquenta depoimentos sobre o Pererê, produto da imaginação coletiva que o povo diz que existe, e se “exeste é verdade” [135]. Saci também é filho dos ventos e anda em redemoinhos, é numen viarum (divindade das estradas), para pegá-lo basta jogar uma urupemba cruzeta [136] no meio do rodamoinho, ou um rosário bento, e depois engarrafar o diabinho e fechar com uma rolha virgem. O capuz deve ser retirado e escondido do Saci. Capturar um Saci é como capturar a infância, pois o diabinho é um ser mais brejeiro e matreiro do que malvado (LOBATO, 2008b, p. 160). Menotti Del Picchia (1892-1988), divulgador de uma tendência estética literária que roçava pela cultura de massa[137]e com uma comunicabilidade fácil, escreve obras que utilizam elementos míticos nacionais, como: A Outra Perna do Saci (1926) e O Curupira e o Carão (1927). Curupira como símbolo da arte nova e nacional e Carão representando as quinquilharias importadas; lembrando que o texto foi escrito na década do Movimento Modernista de 1922. Já em [138] nos revela uma interessante visão da superstição do povo rural sobre o mítico Saci: “Tudo isso é superstição... Basta examinar o Saci: é apenas a humanização de um espectro, isto é, uma refração fantasmal das astúcias e crendices caipiras. No fundo um ingênuo inofensivo, um gaiato fazedor de pirracinhas. Grotesco e simpático”.

Temos um grande exemplo de Saci como beleza ampliada, pois é grotesco, uma “mistura do animalesco e do humano, o monstruoso como a característica mais importante do grotesco” (KAYSER, 2009, p. 24), um ser com ausência de forma, um perneta de jeito ridículo, afetado e, de certo modo, assustador. Um mito simpático que viola regras e hierarquias, resistindo perante os dominadores; debocha e troça das ordens e costumes. “O monstruoso, constituído justamente da mistura dos domínios” (KAYSER, loc. cit.). Saci é ser de mutações e analogias que se transformou no tempo e espaço, indo, em sua gênese, de gênio indígena à crendice caipira de um povo rural. Saci é fruto de sincretismo de várias míticas que se fundem pela força do contato. A representação do mito com uma perna e gorro vermelho é a imagem de um corpo grotesco que não está separado do resto do mundo, não está isolado, acabado ou perfeito. O corpo do Saci, assim como o do Boto, do Curupira, do Caipora, é um corpo que ultrapassa a si mesmo, eternamente criado e criador, “aberto e incompleto, [...] não está nitidamente delimitado do mundo: está misturado ao mundo, confundido com os animais e as coisas. É um corpo cósmico [...]” (BAKHTIN, 1993, p. 23). Os seres míticos possuem um corpo grotesco que parece monstruoso, horrível e disforme e que tem uma enorme presença na estética do feio.

Uirapuru/Ouirapuru/Guirapuru é uma ave amazônica e possui um mito ligado à beleza. Em uma das versões da mitologia indígena sobre Uirapuru, uma jovem perde uma disputa e torna-se pássaro de belo canto. Duas moças, Moema e Juçara, apaixonadas pelo mais belo índio da aldeia, o jovem Peri, resolvem disputar com o arco e flecha o amor do índio. A tarefa é matar uma ave apontada por Peri. Juçara consegue o feito, tornando-se esposa do belo índio. Moema, sofrendo por amor, foge para a mata:

Tupã, apiedado da moça, decidiu, então, transformá-la numa ave de canto maravilhoso. – O seu canto será tão belo que terá o dom de curar a sua própria tristeza – disse o deus. Moema, convertida no uirapuru – que em tupi significa “pássaro que não é pássaro” –, passou a morar na floresta, e desde então toda ela silencia sempre que seu canto começa a soar (FRANCHINNI, 2011, p. 29).

Entre os indígenas, ouvir o canto do uirapuru é indicador de sorte, o pássaro de belo canto é o guia dos pássaros, “o líder que leva seus seguidores a lugares desconhecidos onde todos receiam ir sozinhos” (ASSAYAG, 1995, p. 76). Para os tupis, uirapuru é um deus das aves que quando canta todos os outros pássaros se calam, como citado na canção Uirapuru, composta por Waldemar Henrique da Costa Pereira[139]: “A mata inteira fica muda ao seu cantar/Tudo se cala para ouvir sua canção/E vai ao céu numa sentida melodia/Vai a Deus em forma triste de oração”. Heitor Villa-Lobos (1887-1959) compôs, em 1917[140], o poema sinfônico e bailado Uirapuru, que trouxe no argumento[141] da obra a presença de um índio feio, um índio bonito, uma índia caçadora, jovens índias e o pássaro encantado.

Uirapurú (“Le petit oiseau enchanté”) (Lenda do Pássaro Encantado) (Bailado Brasileiro) (Conta uma lenda que a magia do canto noturno do Uirapurú era tão atraente que as índias à noite se reuniam à procura do trovador mágico das florestas brasileiras, porque os feiticeiros lhes contaram que o Uirapuru era o mais belo cacique que existia sobre a terra e era o rei do amor).

Noite tropical e enluarada. Numa floresta, calma e silenciosa, aparece um índio feio, tocando uma flauta de osso pelo nariz, querendo desafiar o pássaro encantado da floresta, que, com o seu canto mágico, atrai as jovens índias. Ao ouvirem o som da flauta, surgem em grupo alegre as mais belas silvícolas da região do Pará. Decepcionam-se, porém, ao descobrirem aquele índio feio e, indignadas, enxotam-no brutalmente com pancadas, empurrões e pontapés. Ansiosas, procuram pelas folhagens das árvores o Uirapurú, certas de encontrarem um lindo jovem. São testemunhas desta ansiedade os vagalumes, os grilos, as corujas, os bacuraus, os sapos, as intanhas, os morcegos e toda a fauna noturna. De quando em vez, ouvem-se ao longe alguns trilos suaves, que, anunciando o Uirapurú, irradiam o contentamento de todo aquele ambiente. Seduzida pelo mavioso canto do Uirapuru, surge uma linda e robusta índia de flecha e bodoque em punho, como uma adestrada caçadora de pássaros noturnos. Ao ver o pássaro encantado, lança-lhe a flecha, prostrando-o por terra. Surpreende-se, porém, ao vê-lo transformado num belo indígena. É ele disputado por todas as índias, que também ansiosas o esperavam, saindo vitoriosa, no entanto, a caçadora que o ferira. No auge da disputa, ouve-se o toque fanhoso e agourento da flauta de osso do índio feio. Temendo uma vingança do índio feio e mau, as índias procuram esconder o belo índio, que é ainda surpreendido pelo temido índio, que, feroz e vingativo, atira-lhe uma flecha, ferindo-o mortalmente. Pressurosas, as índias carregam-no em seus braços à beira de um poço, onde ele, subitamente se transforma num pássaro invisível, deixando-as tristes e apaixonadas, ouvindo apenas o seu canto maravilhoso, que se vai sumindo no silêncio da floresta [142].

O feio, o índio primitivo, é associado ao ruim; o belo, o bom selvagem, impera no campo do maravilhoso no qual a natureza, repleta de mistérios e significações veladas, mostra uma mitologia brasílica cheia de metamorfoses entre o mundo natural e humano do pássaro-homem, o índio feio/bonito é o ambiente, é “a representação do mundo mágico e primevo do indígena, da natureza ‘maravilhosa’, integrando o motivo metamórfico, da ‘Amazônia imaginária’, do éden mítico” (VOLPE, 2009, p. 36).

Jurupari/Iurupari, filho do Sol, é um espírito legislador, no qual Magalhães (1876, p. 177) cita como um demônio, um espírito que “entre os selvagens corresponde mais ou menos ao nosso demônio judaico” com menos perversidade. Jurupari é como as índias amas-de-leite chama de “pesadelo”. “A palavra Jurupari parece-me corruptela da palavra Jurupoari que ao pé da letra traduziríamos: boca (iuru), mão, sobre; tirar da boca [...]: ser que vem a nossa rede, isto é: ao lugar em que dormimos” (Ibid., p. 126). Alguns relatos citam o ser como totalmente maligno, um ente sobrenatural que ataca os indígenas enquanto dormem, causando aflições e dando visões de perigos horríveis, impendindo os índios de gritar. Jurupari é a instituição do segredo, “Senhor dos Segredos” (CASCUDO, 1988, p. 420). Porém, para a maioria das tribos tupi-guarani, Jurupari era um legislador divinizado que trouxe oito mandamentos para os indígenas, afirma Câmara Cascudo (op. cit.): 1º) A mulher deve conservar-se virgem até a puberdade; 2º) Nunca deve prostituir-se e ser sempre fiel ao seu marido; 3º) Após o parto da mulher, deve o marido abster-se de todo trabalho e de toda a comida, pelo espaço de uma lua, a fim de que a força dessa lua tivesse sido passada para a criança; 4º) O chefe fraco é substituído pelo mais valente da tribo; 5º) O tuxaua (chefe) poderia ter tantas mulheres quantas pode sustentar; 6º) A mulher estéril do tuxaua deve ser abandonada e desprezada; 7º) O homem deve sustentar-se com o trabalho de suas mãos; 8º) Nunca a mulher pode ver Jurupari a fim de castigá-la de algum dos três defeitos nela dominantes: incontinência, curiosidade e facilidade em revelar segredos. Jurupari é filho da virgem Ceuci que engravidou comendo a fruta cucura/kukúra/pouroma/purumã[143], fruta da família da jaca e do figo. Cucura/Kukúra é chamada de uva-da-Amazônia, a fruta do bem e do mal, comida por Ceuci que não notou que o sumo escorria-lhe voluptuosamente dos lábios e descia pelos seios, barriga e ventre, fecundando-a. O ente desaparece ao nascer, mas Ceuci o sente mamando durante a noite. Jurupari reaparece quinze anos depois, já um rapaz bonito e forte. É eleito tuxaua e acaba com o poder das mulheres que governam. Os pajés são intermediários entre Jurupari e os homens. Os jesuítas chamavam Jurupari de “Senhor dos Pesadelos” e “diabo”. Contra Jurupari, os catequistas “inventaram” Tupã; designação guarani para trovão, Tupana para os tupis. De simples trovão, Tupã passou a um deus único e verdadeiro (versão adaptada do deus hebraico) (BENEDITO, 2009). Jurupari não tem uma forma definida, é ser invisível.

Uiara/Iara (em tupi, “senhora das águas”) é, como afirma Franchinni (2011, p.162), “deturpação pseudoindigenista que se fez à figura da Cobra-Grande, um dos mitos fluviais mais importantes da Amazônia”. Conhecida como Mãe-d’Água, Iara assume quase todas as características de uma sereia narrada pelos navegantes europeus. “[...], é bela, porém é a morte (munusaua)... é a Iara” (CASCUDO, 2002, p. 224). O mito do Ipupiara, um homem-marinho que matava indígenas e as mouras encantadas tão populares em Portugal, exerceu alguma influência no surgimento de Iara. Outra importante influência foi a de raiz africana: Iemanjá[144] e Oxum[145], divindades aquáticas, não raro se apresentam sob a figura de mulheres de cor branca e vestes vaporosas, que remetem, de uma forma ou de outra, à figura obsessiva da sereia. Iara é deidade fluvial ligado à lua (Jaci), protetora dos animais que vivem nas águas.

O artista plástico Walmor Corrêa[146] realiza um trabalho visual inspirado em lendas indígenas. Produzindo arte ligada à ciência, Corrêa cria a série Unheimlichdas unheimliche é o termo alemão para inquietante, o estranho-familiar ou a inquietante estranheza − no qual o artista disseca cinco seres míticos do imaginário popular brasileiro: o Curupira (Figura 27), o Ipupiara (Figura 28), a Ondina (Figura 29), a Cachorra da Palmeira (Anexo B) e o Capelobo (Anexo C). São cinco seres híbridos de humanos e animais que Corrêa disseca e usa com termos científicos, fazendo uma mescla entre real e fantasia na arte. Para Italo Calvino (1990, p. 123), na obra Seis propostas para o próximo milênio, “conhecer é inserir algo no real; é, portanto, deformar o real”, como faz Walmor em sua arte, alterando a realidade do mito, transformando o que é desconhecido em familiar, uma nova forma de ver os seres míticos. Assim como faziam os navegadores ao desenhar, nos bestiários, seres que acreditavam existir, Corrêa desenha e nomeia as partes orgânicas dos seres míticos como se fossem animais de nossa fauna “real”; não fantasiosa, não extinta, animais encontrados em nosso cotidiano palpável e biológico. O trabalho de Corrêa é um atlas anatômico de seres mágicos e extraordinários, uma releitura do exótico.

 

 O maravilhoso, o monstruoso e o grotesco acompanham a história da humanidade desde os primeiros registros encontrados em cavernas, desde Luzia, nosso mais antigo fóssil, e o homem fálico. Porém, é no período medieval, rico na religiosidade do monoteísmo cristão; nos embates da fé das cruzadas e das inquisições; e misticismo dos alquimistas e hereges que o universo do fantástico era interligado ao cotidiano, aos mares navegados, aos povos “selvagens/exóticos” e às raças fabulosas. Durante o período medieval imperava o reino da zoologia fantástica, do rumor, do mal-entendido e da credulidade, em narrações de viajantes do maravilhoso. Os descobrimentos geográficos trouxeram nova visualidade às velhas lendas europeias. Os navegadores, talvez confundidos pelas alucinações causadas pelos dias de fome, narravam encontros com animais desconhecidos e mitológicos monstros marinhos, escrevendo e desenhando em seus diários os avistamentos de diferentes entes sobrenaturais. Cristóvão Colombo (apud SOUZA, 1986, p. 50), em seu diário de navegação, registrou ter visto, quando estava perto de chegar ao Haiti, três sereias circundando a ilha: “Em 8 de janeiro de 1492, viu três sereias pularem fora do mar, decepcionando-se com seu rosto: não eram tão belas como pensara”. Cada autor-viajante contava sua versão da história e quem ouvia também contava outra versão, exagerando, de certa forma. Aqueles incapazes de ler, apenas olhavam para os números e para as figuras. As ilustrações impressas, copiadas,  retrabalhadas, formavam uma verdadeira cultura visual da monstruosidade.

 

 

 

2.4 O fado tropical, as cores, a indolência e o futuro

 

 

Não fomos descobertos, não estávamos perdidos, apenas não tínhamos sido noticiados aos outros impérios antes do final do século XV. Nem fomos, segundo apontam alguns livros de história, descobertos em 1500, pois aqui já era habitado por nossos antepassados.  Antônio Carlos Olivieri e Marco Antônio Villa (2000), que organizaram os textos de onze cronistas[147] que no Brasil estiveram, afirmam que, além dos indígenas que povoaram o Brasil por volta do ano 20.000 a.C., tinha estado em terras brasilis, em 1498, o navegador português Duarte Pacheco Pereira (1460-1533), que havia assinado o Tratado das Tordesilhas[148] e fez uma expedição a oeste do Atlântico Sul, chegando a explorar as adjacências de regiões hoje conhecidas como Amazonas e Maranhão.

Foi no dia 22 e abril de 1500 que o português Pedro Álvares Cabral aportou na terra que foi chamada de Vera Cruz (Verdadeira Cruz; Ilha de Vera Cruz; Terra de Vera Cruz; Terra da Santa Cruz). Terra rica em gente vermelha e pau vermelho (Paubrasilia echinata; antiga Caesalpinia echinata)[149]. Éramos inicialmente apenas uma Colônia para Portugal, um fornecedor de matéria-prima e metais preciosos, logo também seríamos, de certo modo, uma vera cruz que a Coroa portuguesa deveria carregar − “carregar a cruz”, em grego stauron bastazein[150] − quando entraram em confronto com índios, espanhóis, franceses e holandeses. Além de nascer sob o “signo do Demo”, éramos o castigo que a Coroa deveria carregar se desejasse manter seu domínio econômico mundial. Nosso complexo de inferioridade possivelmente começou quando fomos encontrados. Não nos tornamos um imenso Portugal, pois éramos considerados muito vermelhos (do tupi, piranga), selvagens e feios. Tornamo-nos apenas um império colonial e herdamos do sangue lusitano uma “boa dosagem de lirismo, além da sífilis, é claro”[151]. Tornamo-nos um “fado tropical”, um povo híbrido, múltiplo. Somos o Brasil dos desfavorecidos que resiste a qualquer ordem estabelecida.

Sobre a cor vermelha dos indígenas, Magalhães (1876, pp. 03-05), na segunda parte da obra O Selvagem, afirma que nas terras americanas, incluso o Brasil, havia uma “terceira raça”[152] composta por homens vermelhos, “os selvagens”: “Tudo nos induz a crer que, ao tempo da descoberta, havia aqui na América duas raças [153], e uma era a vermelha”. Dentro do tronco vermelho brasileiro, Magalhães (1876, p. 68) distingue três tipos de índios, ou tonalidades do vermelho (?): 1º) o índio escuro (do tupi abaúna; abá + una “homem preto”), grande; 2º) o índio mais claro, de estatura mediana; e 3º) o índio mais claro, de estatura pequena, peculiar a bacia propriamente do Amazonas. Interessante notar as especulações que Magalhães escreve simplesmente ao observar os indígenas presentes ao redor, no “grande livro da natureza”:

 

O índio da raça primitiva, de que para mim são tipos o Guaicuru em Mato Grosso, o Xavante em Goiás, o Mundurucu no Pará, é cor de cobre tirando para o escuro (cor de chocolate), estatura ordinariamente acima da mediana até verdadeira corpulência, cabelos sempre duros, o molar e a órbita salientes, quase reto o ângulo do maxilar inferior, o diâmetro transversal entre os dois ângulos posteriores do maxilar inferior é igual ao diâmetro transversal do crânio de um a outro parietal, o calcâneo grosso, o torso largo, dando em resultado um pé sólido, se bem que algumas vezes de uma pureza admirável de desenho. Estes caracteres físicos, que ressaltam logo aos olhos do observador, os distinguem dos outros, cuja cor do amarelo tirando para a da canela, estatura mediana, e às vezes abaixo disso, cabelos muitas vezes finos e anelados, menos pronunciadas as saliências das órbitas e do molar, face menos quadrada, o dedo grande do pé muito separado do índex, pés e mãos de uma delicadeza que faria o desespero dos mais elegantes da raça branca; mulheres de formas delicadas, regulares, e às vezes de grande beleza, quando as outras são verdadeiros colossos, grosseiros e tão solidamente musculadas como um homem robusto, são outras tantas diferenças que não deixam confundir uma raça com outra. Na raça primitiva e escura, há uma variedade que se distingue pelo exagerado desenvolvimento do pênis, que os mesmos selvagens a caracterizam por esse sinal (MAGALHÃES, 1876, pp. 68-70).

 

Entre os indígenas do vale do Amazonas, os tupis eram designados tupiuna (“tupis pretos”) e tupitinga (“tupis brancos”). Magalhães intitula os indivíduos mestiços com ascendência indígena e branca de “mamelucos” ou abaju; tipos com boas qualidades morais, como: excelente energia, coragem, sobriedade, espírito de iniciativa, resignados em sofrer trabalhos e privações, porém, são sujeitos despreocupados e indiferentes pelo futuro. Não poupar, não ser capitalista, não pensar no amanhã, era grande sinal de corrupção moral, devido à ascendência indígena, que afeta os mamelucos. Já os cafuzos, chamados cafuz no Norte e caboré no Sul, são bem vistos por Magalhães (1876, p. 75), pois “do cruzamento” do índio com o negro o resultado foi fascinante: “uma linda raça mestiça, cor de azeitona, cabelos corridos” e pessoas inteligentes, porém, têm os mesmos defeitos dos mamelucos. A estética corporal parece dizer muito sobre a moral dos indígenas e a formação do povo brasileiro. Até o “exagerado desenvolvimento do pênis” indígena é digno de espanto. “A feiura evocada pelo sexo, isso que aí nos fere, é a ameaça de perder a face humana, de se animalizar, de se tornar monstruoso”, afirmou Charles Feitosa (2004, p. 33), no texto Alteridade na Estética: reflexões sobre a feiura.

O indígena, para os colonizadores, precisava ser melhorado, miscigenado com o branco europeu, ou eliminado, pois sua feiura estava ligada à sua má índole, ao seu não espírito capitalista, afirma Magalhães sobre os indígenas/silvícolas/aborígenes/gentios que viviam no Brasil. O indígena é feio por não estar conforme as regras da sociedade que se ergue ao redor, na colônia. A pele, a cor, a estrutura óssea, elementos para uma estética indígena, são referenciais de identificação. Para os indígenas, a pele branca é sinal de saúde ruim ou resguardo ritualístico. Um indígena com a pele “esbranquiçada” indica exclusão, reclusão, doença ou deslocamento geográfico forçado. Para os Wayana[154], a pele indígena, depois de prolongada doença ou reclusão na puberdade, fica como a epiderme “embranquecida” (tikorokem) do branco europeu de alteridade maléfica. Já os negros escravizados que fogem para as florestas e se unem aos índios, genética e socialmente, são conhecidos pelos wayana como taririman (“como preta”), assim também são chamados os wayana que viajam expostos ao sol e sem adornos. O não adornamento corporal é algo estranho, pois no convívio tribal, os wayana vivem ataviados em grande parte do tempo. Segundo Lúcia Hussak van Velthem (2002, p. 66), “a coloração de um wayana socialmente ativo e integrado é classificada como ‘vermelha’, tapkiren, a tonalidade da tinta do urucum que normalmente a recobre”. Ter a tonalidade branca ou negra, a pele sardenta (timiririhen, “providas de muitos pontos” ou “muito pintadas”), pode levar à exclusão do convívio da tribo e da vida social wayana. A pele sardenta lembra a doença que os brancos disseminaram entre os indígenas (catapora, sarampo), que é algo repulsivo. A pele branca é algo marginal e associado com a sobrenaturalidade. O homem branco com barba (ixiimé katip, “semelhante a macaco cuxiú”) e cabelos loiros (alauatá katip, “semelhante a macaco guariba”) é comparado aos símios, mas entre os wayana, aquele que está desprovido de adornos, considerado nu, é chamado ofensivamente de mekú katip (“semelhante a macaco prego”) (VELTHEM, 2002, p. 67). Para o povo wayana, o branco europeu é o feio, o indesejável, o eliminável da proximidade da tribo. A tonalidade não-vermelha, as sardas, entre outros fatores estéticos, eram algo desagradável e repulsivo, o outro é esteticamente feio por ser diferente e deve ser evitado.

Qual a cor do brasileiro? Para Marcelo Paixão e Luiz M. Carvano, em A variável cor ou raça no interior dos sistemas censitários brasileiros (2008), uma das primeiras pesquisas acadêmicas sobre os diversos termos classificatórios raciais (ou de cor) foi realizada no Brasil por Donald Pierson (1900-1995), nas décadas de 1930 e 1940, sobre os negros na Bahia[155]. Na década de 1970, tivemos um levantamento sobre os termos classificatórios de raça/cor, enquadramentos antes sociais que biológicos usados no Brasil com as variáveis pré-codificadas ou quesitos fechados de cor como: Branco, Preto, Amarelo e Pardo. No PNAD/IBGE[156] de 1976, além dos quatro quesitos fechados de classificação de cor, tínhamos também três designações: clara, morena clara e morena. Já no censo realizado pelo IBGE no ano de 2000, havia cinco opções de resposta de autoidentificação de cor/raça: Branca, Preta, Parda, Amarela e Indígena. Mas o que é um brasileiro pardo? O termo “pardo” agrega pessoas de origens distintas: africanas, indígenas, caboclos, certos tipos de árabes (PAIXÃO; CARVANO, 2008, pp. 48-49). Pardo[157] ou mestiço era também a designação dada aos filhos de pretos com brancos, usada desde o período colonial. Os mestiços e mulatos também eram chamados como “cariuóca”, palavra tupi composta por cariúa “branco” e oc “tirar”; ou seja, tirado do branco, parte do branco, mestiço (MAGALHÃES, 1876, p. 88). No lugar de negro ou preto, as pessoas se autodenominavam pardas, morenas, marrom, cor de chocolate, revelando como o “racismo à brasileira” também opera por gradações (PAIXÃO; CARVANO, 2008).

Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2008, pp. 63-82), ao escrever sobre Raça, cor e outros conceitos analíticos, afirma que “na mais longínqua antiguidade, essa metáfora das cores já se aplicava à classificação dos seres humanos”. A “cor” pode ser pensada como termo analítico na pintura, na estética, na fotografia; e nativo, em que ninguém tem raça nativamente, mas sim cor. “Os povos europeus se definem e foram definidos como brancos, no contato com os outros, considerados negros, amarelos, vermelhos” (Ibid., p 68). O povo brasileiro, composto de uma comunidade imaginária de origem ou de destino, se define como mestiço, pardo, mas não como uma nação negra, apesar de sermos uma nação que se formou com a escravidão.

 

A ciência das cores, entretanto, nada nos ensina sobre a hierarquia social das cores, ou seja, por que ao negro foi associado ao demônio e ao mal, enquanto o branco à virtude e ao bem, na tradição greco-romana e europeia. Sabemos, ademais, que as primeiras classificações hierárquicas dos povos humanos, feitas por viajantes como Bernier (2004), no século XVI, ou filósofos como Kaldoun (2004), no século XV, tomam a cor como marcador das diferenças, ainda que de modo não sistemático. Ou seja, ainda que o branco não apareça necessariamente como superior, o negro sempre aparece como inferior, ainda que não designasse o mais inferior de todos (GUIMARÃES, 2008, p. 69).

 

Para Guimarães (2008, p.70), a sociedade brasileira era uma sociedade de castas[158]·, “fechada pela cor – negro –, que sinalizava seja a ideia de raça, seja a ideia de cultura e civilização, seja a ideia religiosa de uma descendência divina”. Porém, a divisão entre “senhores” e “escravos” era como uma divisão de classes. Com o fim da escravidão brasileira, tivemos uma classe de homens livres (pretos, mulatos, pardos) que precisaram conquistar um lugar na sociedade. “[...], em algum momento da história, possivelmente pressionada pelo avanço social dos ex-libertos e de seus descendentes, a categoria predominante em termos de classificação social passou a ser ‘cor’ e não ‘raça’” (Ibid. p. 71). Em 1950, pensavam alguns intelectuais que a cor era apenas um acidente, pois somos todos brasileiros e por um acidente temos diferentes cores; “cor não é uma coisa importante; ‘raça’, então, nem se fala, esta não existe, quem fala em raça é racista” (GUIMARÃES, 2008, pp.72-73). E também:

 

Inventa-se, portanto, um povo para o Brasil, que passa a ter samba, passa a ter um pouco da cultura negra, que até aqui não existia, pois se, no Império, predominou a mística do índio, e na República a mística do imigrante europeu, somente na Segunda República o negro vai dar coloração à nação, à ideia de uma nação mestiça. (GUIMARÃES, 2008, p. 75).

 

Vermelho, branco, negro, índio, mameluco, cafuzo, todos somos produto da natureza e de uma cultura que moldou nossa brasilidade e nossa estética nacional. É no corpo, nosso território de fronteira, o local de encontro da natureza e cultura, mundo interno e mundo externo, eu e outro.  O corpo é nossa assinatura imagética no mundo, “afirmação de uma existência singular e marca de pertencimento ao grupo” (CUNHA, 2004, p. 70). O corpo brasileiro, em diferentes olhares, revela estranhamentos ou acolhimentos, recusa ou reconhecimento.

 

Tomar o corpo como lugar de identidade significa tomá-lo como registro, como arquivo das diversas marcas identitárias que, ao longo da vida de cada um de nós, permitem afirmar uma singularidade, uma diferença, ao mesmo tempo em que reconhecemos laços de familiaridade e de intimidade com determinado grupo. (CUNHA, op. cit.).

 

Mais do que uma mistura de cores e povos, firmamos-nos como seres complexus − o que é tecido junto − constituídos de elementos do indígena, do português e do negro.  Magalhães afirma que nossos mestiços não tinham preocupação com o futuro. Já na década de 1970, José Honório Rodrigues (1970, p.07) observa que “nós não somos o país dos coitadinhos”, pois temos esperança em demasia. Esperança iludida, pois o brasileiro parece estar condenado a viver de esperas, de que um dia as “coisas” (fatos ou situações) vão melhorar. Para Hélcion Ribeiro (1994, p. 39), na obra A identidade do brasileiro, o povo brasileiro, mesmo “capado e sangrado”[159], ainda é festeiro, pois nossa indolência é primeva. “Somos um povo do futuro, porém de um futuro que jamais chegará”. O escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942), sobre sua vida[160] no Brasil, escreveu a obra “Brasil, país do futuro” (Brasilien ein Land der Zukunft, 1941).  Para o escritor, o Brasil era um dos países mais amáveis do mundo. Nélson Jahr Garcia (1947-2002), ao apresentar a obra de Zweig, afirma que o estrangeiro viu beleza na feiura, pois “colocou os óculos vermelhos de Kant [161] e viu um Brasil róseo, viu beleza na miséria, riqueza no triste, alegria na dor”[162]. A posição kantiana apresentada no problema do “espaço e do tempo” figura nas lentes de percepção das coisas, nas formas de intuição do homem como instituições puras, condições ou formas a priori da sensibilidade. Para Kant, na obra Crítica da Razão Pura, em Estética Transcendental, nós nos iludimos pensando que as coisas se encontram no espaço ou que os fatos se desenrolam no tempo. Tempo e espaço existem e são formas em nossa sensibilidade interna ou externa, são condições do conhecimento humano. O homem não pode perceber as coisas senão no espaço e no tempo, que são, assim, de ordem transcendental. As lentes vermelhas ou azuis, segundo Kant, dão uma visão especial do mundo para quem as usa. Conforme Kant, qualquer observação de um fato já está subordinada a condições que são próprias do sujeito cognoscente. Porém, Albert Einstein (1879-1955) provou a impossibilidade da teoria kantiana do espaço e do tempo absoluto como “formas a priori da subjetividade”. Para o cientista da relatividade, “os dados espaciotemporais dos acontecimentos físicos têm sempre um caráter real, e não fictício” (EINSTEIN, 2003, p. 38). Ainda sobre a percepção de Brasil que Zweig teve sobre o Brasil, Afrânio Peixoto (1876-1947), em julho de 1941, ao escrever o prefácio brasileiro para a obra de Zweig afirma que o escritor austríaco possuía um “amor de caboclo supercivilizado” pelo Brasil. As impressões dos sentidos que Zweig teve do Brasil foram interessantes, mas, ainda assim, eram premissas eurocêntricas.

É um namorado de nossa terra e de nossa gente. O Brasil é como as mulheres bonitas: têm apaixonados de toda a sorte, até os desinteressados. Não querem nada, nem um olhar, nem um sorriso, nada. Basta-lhes amar. Chamam a isso “namoro de caboclo”: até a namorada o ignora... Era assim o amor cavalheiresco. Goethe resumiu-o, numa frase: “Se te amo, que t’importa?” Zweig é assim (ZWEIG, 2013, prefácio).

 

Em outro prefácio escrito em julho de 2006, para a mesma obra de Zweig, Alberto Dines (1932) afirma que o título “Brasil, um país do futuro transformou-se em cognome, sobrenome, estigma e vaticínio. País-promessa, terra do nunca, nação do amanhã”. Para Dines, Zweig era fascinado pelo Brasil, pela “sociedade multicolorida, generosa, pacata, alegre, porém tocada por uma certa melancolia” (ZWEIG, 2013).

 O corpo do brasileiro é uma espécie de assinatura que passa pela percepção do outro, pode ser do estrangeiro sobre nós ou de um brasileiro para o outro. Nossa materialidade corporal pode ser moldada pela nossa percepção de beleza, pelo momento cultural no qual vivemos, pelo nosso imaginário. Engendramos tantas tonalidades dentro de nossas matrizes indígena, africana e europeia com o intuito de (re)conhecer uma outra forma de beleza presente em nós. Nossa estética é de matizes, desejosa em expor suas várias nuances para ser reconhecida como uma beleza que se amplia e absorve diferentes facetas, diferentes tonalidades. Como Alberto Dines afirma, nosso estigma é ser um povo alegre e melancólico habitando um país-promessa, visão não muito diferente da percepção de brasilidade de Magalhães, em 1876, que acredita que os indígenas e mestiços (feios e bonitos) são indiferentes em relação ao futuro. Ligamos felicidade à melancolia, criamos zonas estéticas de imperfeita beleza. Segundo Roberto DaMatta (1993, p. 121), temos “capacidade de sintetizar, conciliar, criando zonas e valores ligados à alegria, ao futuro e à esperança”. Conseguimos manter nossa fé no sujeito brasileiro e em nossa sociedade. “Deus é brasileiro”, afirma o provérbio popular. Acreditamos na benção do Senhor e também na proteção de outras entidades. Somos um povo de identidade híbrida e mestiça. Nossa mestiçagem é da ordem do heterogêneo, pois acolhe diferentes elementos em permanente diversidade, enquanto nosso hibridismo é homogêneo, pois visa “fundir os diversos elementos num todo único [...]”, afirma Icleia Borsa Cattani (2007, p. 28). Somos um povo que se “condói”, faminto e festeiro. Nossas atitudes são explicadas pela emoção. “Há um quê de fascínio misterioso e/ou visionário onde a miséria veste-se de rei no carnaval, onde a morte espera um milagre, e o ‘ser enganado pelo governo outra vez’ aponta para o dia em que as coisas vão mudar” (RIBEIRO, 1994, p. 75). Nosso vaticínio é o de sermos constantemente felizes e esperançosos, como diz o samba composto por Martinho da Vila: “Canta Canta, minha Gente/Deixa a tristeza pra lá/Canta forte, canta alto/ Que a vida vai melhorar”[163].

 

 

2.5 Colonização e alteridade: o corpo e os costumes dos índios brasileiros

 

Os viajantes do Maravilhoso[164] escreviam sobre o Novo Mundo com a finalidade de apresentar aos compatriotas um panorama das terras desconhecidas e, às vezes, assombradas por demônios, monstros e selvagens canibais. Era o período medieval da história mundial no qual o maravilhoso construiu-se de anomalias, desde monstros pavorosos até paraísos fantásticos. Tais relatos se movimentavam fluidamente, entre a realidade e o mito, apropriando-se de ambos. A generalizada desinformação, os relatos da existência de seres diferentes, exuberantes e da abundância de madeira vermelha, fez com que as narrações, em forma de cartas, diários, tratados ou crônicas, pululassem entre o Brasil e Portugal; Portugal e o mundo.

 A “carta do achamento do Brasil”[165] é o primeiro texto de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, D. Manuel I, escrita entre abril e maio de 1500. Caminha deseja nem “aformosentar nem afear” (nem tornar formosa ou feia) a terra que vê. No dia 22 de abril de 1500, Caminha vê, junto com toda a armada de Cabral, uns setes ou oito homens pardos que andam nus pela praia, sem coisa alguma que lhes cubra as vergonhas (a genitália). Homens que trazem arcos nas mãos e suas setas. O navegador português Nicolau Coelho (1460-1504), integrante da frota de Cabral, lança um barrete vermelho, uma carapuça de linho que leva na cabeça e um sombreiro preto para os indígenas. O barrete vermelho aparece pela primeira vez na história do Brasil e depois se revela acessório essencial de uma personagem mística de nosso folclore que, primeiramente, foi um ente da crença indígena – o Saci. Os indígenas são mancebos e de bons corpos, ao que Caminha descreve:

 

A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. [...] traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber. Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira era muito redonda e muito basta, e muito igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar (CAMINHA, 1963, s.p.).

 

 

Inocente e diferente, assim nascia nosso imaginário exótico. O encontro do branco com o indígena logo se transforma em conquista. Na Europa renascentista, o selvagem se torna tema de discussões filosóficas. Os silvícolas são bons ou maus? Os navegantes ainda não sabiam. Apenas sabiam que os indígenas tinham medo de galinhas e que, quando as índias dormiam, não encobriam as vergonhas, “as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas”. Interessante notar que desde o descobrimento, nossas “vergonhas” sem pelos causam admiração. Existem dois tipos de “depilação à brasileira”[166] muito conhecidas no exterior: Brazilian Wax (com a “pista de pouso”) e Brazilian wax (full wax, totalmente sem pelos) ou Hollywood. 

As índias do período do “achamento” do Brasil exibem “a nudez natural”, a genitália, as “vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras” que quando os portugueses as olham, percebem que as indígenas não demonstram vergonha. Vergonha com/perante a genitália é concepção cultural europeia. Os indígenas não têm o sentimento de vergonha (do latim verecundia, medo respeitoso, reserva), pois não estão atrelados ao controle religioso, político, judicial e social que são reguladores dos comportamentos dos homens civilizados. Os portugueses, como os demais europeus, não estão acostumados à exposição de tanta genitália sem pelo algum. A genitália das índias é algo tão gracioso que até as portuguesas “vendo-lhe tais feições” ficam envergonhadas, afirma Caminha na carta ao rei de Portugal. O corpo das índias não parece grotesco, possivelmente é algo belo, tanto que é motivo de admiração entre os portugueses viajantes. Já o corpo dos índios não é circuncidado, fanado, atraindo a atenção dos viajantes.

Durante diferentes períodos da história mundial, da Antiguidade clássica até o século XXI, o corpo é visto como templo, prisão, morada da alma imortal, atormentador, jardim de prazeres terrenos, envelope biológico, uma máquina e um lar (ETCOFF, 1999). No século XVI, as tecnologias de impressão, no período do Renascimento, aumentam a produção de livros e gravuras obscenas, segundo Leite Júnior (2006, p. 45). As representações obscenas, entre os séculos XVI e XVIII, são uma forma de crítica social e política, em que as descrições e ilustrações de corpos, desejos e atos sexuais são minuciosamente apresentadas. O obsceno está ligado ao universo popular e as representações sexuais possuem enorme aceitação entre a população europeia ainda iletrada. A ilustração “realista” de órgãos sexuais e o mercado da obscenidade têm um caráter extremamente anticlerical e corrosivo contra aqueles que detêm qualquer forma de poder. A genitália é considerada local de vergonha, sujeira ou excitação. Os homens são fascinados pela genitália feminina, talvez por isso a pornografia envolva tanto a imaginação masculina. Pele e pelo podem ser algo excitante e glorioso quando saudáveis e repelentes quando não o são. As imperfeições da pele constituem a maior parte da substância do feio e do monstruoso. A ausência ou a presença exagerada de pelos causa estranhamento no observador, pois é no corpo que primeiramente percebemos nossas diferenças. A ausência de pilosidade pode indicar doença e o excesso pode indicar falta de higiene. Pelos: tê-los ou não tê-los? O homem, para Desmond Morris (2006, p. 09), é o único “macaco nu”. “Existem cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas têm o corpo coberto de pelos. A única exceção é um símio pelado que a si próprio se cognominou Homo Sapiens”. Por que exibimos a pele lisa, sem pelos? Nosso desnudamento veio de nosso bipedismo ancestral e das longas corridas. “A pele desprovida de pelos, resfriada pelos milhões de glândulas exócrinas, mantinha-nos frescos para a longa corrida ao sol” (ETCOFF, 1999, p. 112). Como corredores de clima quente, o pelo era desnecessário aos “macacos pelados”.

Para Caminha, os índios tão tosados também eram estranhos pelas alterações que faziam no corpo; objetos inseridos nos lábios e o uso de jenipapo[167] e urucum para mudar a cor corporal era algo que os portugueses observavam com estranhamento. Diferente dos cabelos loiros das europeias, as índias exibem cabelos muito pretos e compridos pelas costas. Os índios usam “carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes”. As tinturas corporais indígenas distinguem as tribos. O uso de urucum (do tupi uru-ku, “vermelho”), o fruto do urucuzeiro, indica acontecimentos na vida cotidiana da tribo, algo que não é apenas para enfeite, pois as tinturas transmitem avisos, costume que os portugueses não compreendiam inicialmente. Caminha narra a surpresa que o uso das tinturas corporais causava nos navegadores:

 

Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. [...] galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma (CAMINHA, 1963, s.p.).

 

Há uma sequência para o uso das tinturas indígenas, que são inseridas no corpo, segundo as condições cotidianas e sociais da tribo: restrições e tabus, grupos domésticos, gênero, idade, entre outros[168]. Primeiro é inserido o urucum (parte vermelha) no corpo, seguido de mais uma camada de urucum e carvão, então é feita uma pintura de desenhos geométricos com tintura do jenipapo (tinta preta). Cada grafismo tem uma função dentro das tribos, é um sistema de comunicação visual estético-ético, elaborado e repleto de informações capazes de simbolizar eventos, processos, categorias e status. “Aplicada no corpo, a pintura possui função essencialmente social e mágico-religiosa, mas também é a maneira reconhecidamente estética (mei) e correta (kumrem) de se apresentar”, afirma Lux Vidal (1992, p. 144), em A pintura corporal e a arte gráfica entre os Kayapó-Xikrin do Cateté. A relação entre o comportamento e a cultura de ornamentação corporal indígena é gerada por uma intricada rede de mecanismos que processam informações sociais da tribo. Para o homem branco europeu há, como podemos perceber pelas narrações de Caminha, uma ideia de beleza na visualidade dos índios brasileiros. Do encontro do europeu com o indígena brasileiro dá-se um exótico espetáculo para ambos os lados.

Há beleza na corporalidade indígena? Ao menos em uma “estética do nu”, os nossos “selvagens” atraem o olhar do estrangeiro de uma forma, ao que parece, positiva, mas erotizada.  Entendemos “erótico” como algo que tende ao sublime, ao espiritual, ao delicado, sentimental e sugestivo, um sentimento que lembra a sutileza, a tensão sexual implícita, mas não abertamente exibida. O erotismo é uma intenção da alma e não da carne, é uma insinuação do desejo de corpos treinados pela cultura, como o corpo do navegador civilizado nos moldes europeus do século XVI (LEITE JÚNIOR, 2006, p. 32).

Não é somente a genitália que chama a atenção de Caminha. O escrivão fica impressionado com a saúde, a higiene, o corpo gordo e formoso dos índios. Se por um lado Caminha elogia o indígena, por outro afirma ser “gente bestial”, “esquiva”, “animais monteses”, “pardais do cevadouro”, “aves” ou “alimárias montesinhas” que necessitam ser praticamente domesticados − “para os bem amansarmos”. Aos olhos dos navegadores, os indígenas não têm religião, “nenhuma idolatria nem adoração”, seres aptos para serem convertidos ao desejo do rei de Portugal, aptos a serem “civilizados” pelo homem branco. Há uma negação da língua, dos costumes, da tradição e das oralidades. Veem os índios, mas não observam o indígena; veem o “bom selvagem”[169], mas não respeitam a alteridade.

Na narrativa de um piloto anônimo[170] sobre a viagem de Pedro Álvares Cabral, os indígenas são relatados como uma “gente parda, bem disposta, com cabelos compridos; andam todos nus sem vergonha alguma”. Os homens naturais são “baços” (morenos) e com “a barba pelada; as pálpebras e sobrancelhas são pintadas de branco, negro, azul ou vermelho”, o “beiço” inferior é furado e colocam um osso grande. O indígena imberbe causa estranheza ao piloto e, por consequência, ao homem branco. Em 1500, os portugueses que aqui aportaram possuíam barba escura e longa, diferente da face sem pelo dos indígenas. “Barba, bigode, costeleta e cavanhaque ressaltavam a maturidade e masculinidade de um rosto, já que o pelo facial surge apenas depois da puberdade” (ETCOFF, 1999, p. 183).

Outro relato[171] que faz referência às belezas das mulheres indígenas é feito, entre março e setembro de 1532, por Pero Lopes de Sousa (1497-1539). Lopes encontra no Brasil gente muito branca, “gente desta terra é toda alva”; as mulheres muito formosas “que não tem nenhuma inveja às da Rua Nova Lisboa”, principal rua de comércio português na época. O chefe da primeira missão jesuítica à América, outro cronista do descobrimento, o padre Manuel da Nóbrega[172] (1517-1570), não vê os gentios tão amistosamente quanto Lopes de Sousa. João Adolfo Hansen, na obra Manuel da Nóbrega (2010), nos revela a leitura de mundo e as narrativas do jesuíta que escreveu O Diálogo sobre a conversão do gentio (1556-1557)[173]. Nos textos de Manuel da Nóbrega, o indígena é chamado de: “gentio”; “índio”, para “homem da natureza”, bom ou mal, homem sem história; “negro” por oposição aos brancos, mas trata-se de índios; “negro da terra”; “selvagem” como pressuposto político das sociedades; ser que anda “nu”, roupa é decência civil para a sociedade e os religiosos portugueses [174]; “bárbaro”, “não civilizado”[175]; “animal”; “cão”; “perro” e “porco”. Ao chamar o indígena de “negro” / “negro da terra”, Nóbrega faz alusão à narrativa bíblica sobre os filhos de Noé [176] (Genesis, 9: 18-27): Quando Noé, cultivador de uvas e “inventor” do vinho, ficou bêbado e nu, foi visto pelo filho caçula, Cam/Cã, enquanto os outros, Sem e Jafé, o cobriram com um manto. A lei proibia ao filho ver a nudez do pai, pois era um ato de despudor. Quando ficou sóbrio, Noé amaldiçoou Cam[177]: “será escravo dos irmãos e a escravidão será passada adiante, hereditariamente, na cor escura da pele de seus filhos”. Os filhos de Noé, que saíram da arca, foram Sem, Cam e Jafé; Cam foi pai de Canaã[178]. Dos três filhos de Noé se fez o povoamento de toda a terra. Tal narrativa foi usada pelos dominadores, escravagistas e simpatizantes para justificar a escravização de índios e negros. Alfredo Bosi tenta compreender a maldição de Cam, quando a expansão ultramarina portuguesa faz ressurgir a figura do escravo a partir do século XV:

 

O fato é que se consumou em plena cultura moderna a explicação do escravismo como resultado de uma culpa exemplarmente punida pelo patriarca salvo do dilúvio para perpetuar a espécie humana. A referência à sina de Cam circulou reiteradamente nos séculos XVI, XVII e XVIII, quando a teologia católica ou protestante se viu confrontada com a generalização do trabalho forçado nas economias coloniais. O velho mito serviu então ao novo pensamento mercantil, que o alegava para justificar o tráfico negreiro, e ao discurso salvacionista, que via na escravidão um meio de catequizar populações antes entregues ao fetichismo ou ao domínio do Islão. Mercadores e ideólogos religiosos do sistema conceberam o pecado de Cam e a sua punição como o evento fundador de uma situação imutável (BOSI, 1992, p. 258).

 

 Para Léry (1961, p. 175), os selvagens são um “povo maldito e desamparado de Deus”, com noções imperfeitas da vida futura, nada apegados aos bens humanos, parece mais provável que sejam descendentes de Cam. Para os jesuítas, os indígenas descendem de Adão, trazendo o pecado na carne e poussindo uma natureza semper prona ad malum (“natureza sempre inclinada ao mal”), pois praticam costumes abomináveis, depravados, como: o xamanismo, a nudez, a poligamia, a guerra por vingança, a cauinagem e a antropofagia ritual. Os índios devem evitar a beberagem de caxiri, licor extraído de mandioca fermentada, e do cauim, espécie de cachaça, uma bebida fermentada à base de mandioca, milho e frutas para não atentar a ordem da colônia.

Para Hansen (2010, pp.121-122), as cartas de Nóbrega tinham quatro recortes temáticos principais: 1º) O tema do índio, com os subtemas: as beberagens, a inconstância, a poligamia, a falta de Deus (cristão), nudez, guerras intertribais, escravidão, feiticeiros, catequeses, entre outros subtemas; 2º) O tema do colono, os subtemas da imoralidade sexual, a mancebia dos brancos com índias e político-econômica dos portugueses; 3º) O tema do governo e os subtemas das medidas administrativas, econômicas, beneficentes e militares dos governadores gerais; e 4º) O tema do clero com as práticas dos jesuítas no cotidiano da missão. Para conter o índio em seus subtemas, em um momento de desânimo dos jesuítas, Nóbrega compõe o Diálogo sobre a conversão do gentio, no qual substitui o programa inicial da catequese, “pedagodia do amor”, pela chamada “pedagogia do medo”. No diálogo, ou “ficção de existência”, temos uma conversa imaginária de dois padres: um padre letrado e um padre não-letrado. Segundo Hansen (2010, p. 127), cada um dos padres sintetiza procedimentos adotados pela missão brasileira: “o trabalho com palavras, pregando e ensinando a Palavra de Deus, e o trabalho com obras, dando exemplos e persuadindo com boas ações”. Um padre é Gonçalo Alvarez (“trombeta” da palavra de Deus na Capitania de Spiritu Sancto) o outro é o padre ferreiro, Matheus Nuguera[179] (NOBREGA, 1955, pp. 219- 234). Para Gonçalo, os índios são tão “bestiais” que pregar para eles é pregar para pedras no deserto. Para Nogueira, os índios não são convertidos facilmente por não terem um Deus para adorar, pois “o gentio não adora nada”. Os indígenas são inconstantes, uma caracterização negativa dos primeiros brasileiros. Gonçalo critica a falta de opinião, a volubilidade do indígena quando afirma que com a mesma facilidade que dizem pâ/pa (“sim”), dizem aani (“não”) e quando chamados dizem neim tia (“já vou”). Ao inquirir ao Irmão Nogueira se “esta gente são próximos?”, Gonçalo introduz a tese da não-humanidade do indígena. Deviam ser amados como próximos, segundo o ensinamento do primeiro mandamento (de dez, decálogo) das leis dadas por Deus ao povo de Israel – “Amar a Deus sobre todas as coisas”, amar a Deus no próximo, através do nosso irmão? Nogueira afirmou que “sim”, que os indígenas devem ser amados como próximos. Já Gonçalo duvida que os indígenas sejam homens como ele ou Nogueira. Se não são homens de fé, os índios estão aptos para a conversão via sujeição e medo. Para Nogueira, todos os jesuítas estavam dispostos a “morrer na demanda” convertendo o máximo possível de gentios “Para a maior glória de Deus” (Ad maiorem Dei gloriam, lema dos jesuítas). Gonçalves quer saber se os índios têm alma: “Estes tem alma como nós?”.  Nogueira afirma que todos possuem, pois a alma tem três potências: “entendimento, memória e vontade”, e os indígenas possuem as três, ao que Nogueira continua:

Depois que nosso pai Adão pecou, [...], não conhecendo a honra que tinha, foi tornado semelhante à besta, de maneira que todos, assim Portugueses, Castelhanos, Tamoios, Aimorés, ficamos semelhantes a bestas por natureza corrupta, e nisso todos somos iguais, [...]. Todas as gerações tiveram tão bem suas bestialidades: adoravam pedras e paus, dos homens faziam deuses, tinham crédito em feitiçarias do diabo; outros adoravam os bois e vacas, e outros adoravam por deus aos ratos e outras imundícies; e os judeus, que eram a gente que de mais razão que no mundo havia, e que tinha conta com Deus, e tinham as escrituras desde o começo do mundo, adoraram um  bezerro de metal, e não os podia Deus ter que não adorassem os ídolos e lhes sacrificavam seus próprios filhos, não olhando as tantas maravilhas que Deus fizera por eles, tirando-os do cativeiro do Faraó.[...]. Os romanos, os gregos, e todos os outros gentios, pintam e tem por deus um ídolo uma vaca, um galo, estes [indígenas] tem um deus e dizem que é o trovão, porque é coisa que eles acham muito temerosa, e nisto têm mais razão que os que adoram as rãs e os galos. [...], tudo achareis mentiras que procede do pai da mentira, mentiroso desde o começo do mundo (NÓBREGA, 1955, pp. 235-239).

 

 

Para Nogueira, os indígenas sofriam da “maldição dos avós”, era culpa da descendência em Cam. Nóbrega, falando através da personagem de Nogueira, acreditava que o índio era bestial, sua bem-aventurança era matar e receber nomes dos inimigos mortos; não guardando a lei natural, porque comia outros; eram muito luxuriosos e mentirosos; nenhuma coisa aborrecia por má, nenhuma louvava por boa e acreditava em feiticeiros. “Os gentios são uns e outros tudo ferro frio” que podiam ser convertidos na forja de Deus.

Para Nóbrega, em seu Diálogo, somos descendentes do pecado de ver a nudez paterna, escravos por causa de Cam, por isso vivíamos sob o “signo do demo”; em pura animalidade, rudes, bestiais, como na carta de Caminha: “gente bestial e de pouco saber”. Laura de Mello e Souza (1986, p.61) cita os naturais da terra como “humanidade anti-humana” ainda no estado de pecado para o europeu católico. A colônia era o “lugar por excelência do pecado”, lugar de vícios da carne: incesto, poligamia, concubinatos, nudez, preguiça, cobiça, paganismo e canibalismo. Uma “sociedade informe e tumultuária” que vivia numa terra radiosa[180], segundo Paulo Prado (1981, p. 43). O Brasil recém-descoberto é um lugar radioso, porém é também uma terra “compacta, sombria, silenciosa, monótona na umidade pesada, abafa, sufoca e asfixia o invasor que se perde no claro-escuro esverdeado de suas profundezas”. Nossa terra brasilis não é só “paraíso terreal”, é também um “inferno atlântico”[181], repleto de animais estranhos, com homens inconstantes.

Para o francês André Thévet (1502-1590), na obra Singularidades da França Antártica [182], os indígenas são pobre gente, dados a muitas fantasias, e, sobretudo, à perseguição do diabo, possuindo defeitos bem perceptíveis. Para Thèvet (1944), os índios são melindrosos e cheios de superstição alimentar, pois não comem tartaruga ou carne salgada[183]. Para o religioso francês, o povo é, em geral, bem estranho (“sem fé, sem lei, sem religião”), sem civilização alguma, vivendo à maneira dos animais irracionais (índio-bicho), alimentando-se, sobretudo, de raízes e andando, homens e mulheres, inteiramente nus, pois como selvagens peludos não passam de lendas. A nudez é motivada pela crença de que as vestes lhes tiram a destreza necessária aos seus movimentos livres, sobretudo na guerra contra as tribos rivais. Um povo carnal e luxurioso que tem na vingança, uma virtude; e na pena de talião, um fato. “Mas, como não existe criatura humana, por mais bruta possível, que não possua sentimentos religiosos, os selvagens brasileiros fazem menção de um “grande senhor”, que, lá no alto do céu, troveja e faz chover”. Fisicamente, são os índios “bem conformados e alegres”. Thèvet relata os “olhos tortos” dos indígenas como algo que lhes dá um aspecto “quase selvagem”. Mesmo relatando os defeitos dos indígenas, Thèvet reconhece que os índios são leais entre eles e acreditam na imortalidade da alma, devolvendo aos mortos, publicamente, os objetos que lhe pertenciam em vida.

Para os religiosos europeus que aportaram na Terra de Santa Cruz, os indígenas eram idólatras, agentes de Satã, e “o império do diabo era muito mais vasto do que haviam imaginado antes de 1492”, afirmou Jean Delumeau (2009, pp. 386-389). Satã reinava na América, lugar repleto de deuses e agentes sobrenaturais, como “mestre absoluto”. A idolatria era um pecado contra a natureza, pois era acompanhada da “antropofagia, dos sacrifícios humanos, sodomia e bestidalidade”. Tais “costumes bárbaros” horrorizaram os europeus e lhes forneceram um cômodo pretexto para a escravização dos indígenas. Segundo Delumeau, os navegadores tropeçavam por toda a parte no “poder multiforme do Maligno”, sem desconfiar que fosse seu próprio Lúcifer que o haviam levado do Velho Mundo nos porões de seus navios.

Para Jean de Léry (1961, p. 71), que chega à “índia Ocidental ou terra do Brasil, quarta parte do mundo, desconhecida dos antigos e também chamada América”, no dia 26 de fevereiro de 1557, os primeiros indígenas vistos − seis homens e uma mulher − não são “selvagens peludos”, pelo contrário, vivem todos nus “como ao saírem do ventre materno”, com o corpo todo pintado e manchado de preto. O que mais maravilha os religiosos e os homens europeus é o fato de que as brasileiras não cobrem o corpo de penas e não pintam os braços e as coxas como os homens, “nunca pudemos conseguir que se vestissem, embora muitas vezes lhes déssemos vestidos de chita e camisas. [...] elas não queriam nada sobre o corpo” (Léry, 1961, pp. 99-100). A convivência com as “selvagens nuas” não incitava à lascívia e à luxúria, pois “a nudez grosseira das mulheres é muito menos atraente do que comumente imaginam” (Ibid. p. 111). Para o religioso, pior é o vício oposto – superfluidade de vestuário. Para as gentis, o não uso de roupas auxilia na entrada em rios e fontes; “metiam-se na água, molham a cabeça e mergulham o corpo todo como caniços, não raro mais de doze vezes por dia”. Para Gilberto Freyre (1900-1987) (2004, pp. 162-163), na obra Casa Grande e Senzala, foi por intermédio da mulher gentia, e seus “processos de higiene tropical”, que “o banho frequente ou pelo menos diário, que tanto deve ter escandalizado o europeu porcalhão do século XVI” tornou-se elemento da cultura brasileira.

 Sobre a capilaridade do indígena, os homens usam o cabelo cortado na frente à maneira de coroa de frade e comprido atrás, aparado em torno do pescoço, todos têm o lábio inferior furado com uma pedra polida[184] verde no beiço, algo que os deixa feios, segundo Léry. A mulher (cunhã ou kunãm, fêmea) tem os cabelos compridos e o lábio e orelhas com lóbulos furados e nelas [orelhas] carregam penduricalhos de osso que lhes tocam os ombros. É uma boa gente “não avara”, que, quer, ao despedir-se, que lhes olhemos ainda o traseiro, assim revelam a “magnificência de sua hospedagem mostrando-nos as nádegas”.

 

[...] os selvagens do Brasil, habitantes da América, chamados Tupinambás, [...], não são maiores nem mais gordos do que os europeus; são, porém mais fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a moléstias, havendo entre eles muito poucos coxos, disformes, aleijados ou doentios. Apesar de chegarem muitos a 120 anos (sabem contar a idade pela lunação), poucos são os que na velhice têm os cabelos brancos ou grisalhos (LÉRY, 1961, pp. 91-92).

 

 

Léry atribui à longevidade indígena a falta de preocupações com o clima e o com o “saneamento” [185], pois bebem água pura e não “lodosa e pestilenta” como as águas das cidades europeias. Sobre a cor dos índios, o calvinista afirma que não são negros, apesar da região quente que habitam. “São apenas morenos como os espanhóis ou os provençais”. Não possuem o menor sinal de pudor ou vergonha, arrancam os pelos das pálpebras e sobrancelhas com as unhas, o que faz com que a vista pareça zarolha e a face feroz. Para o médico francês Jean-Joseph Sue (1760-1830), as percepções anatômicas possuem efeitos estéticos, sensíveis à alma. “Tudo o que causa a alma alguma emoção comunica ao rosto formas características produzidas pelos músculos” (SUE, 1797, p. 11). A dor da retirada de forma grosseira, com as unhas, e a ausência dos pelos deixa os índios com a face feroz. Outro detalhe sobre a anatomia indígena é o achatamento do nariz. Para os indígenas, segundo Léry, belo é o nariz achatado:

 

Quanto ao nariz, em vez de fazerem como as nossas parteiras que por ocasião do nascimento das crianças apertam-lhes as ventas com os dedos a fim de tornar-lhes o nariz afilado, os nossos americanos o esmagam com o dedo polegar logo ao saírem os filhos do ventre materno, pois a formosura se mede entre eles pela chateza do nariz (LÉRY, 1961, p. 93).

 

 

O esmagar ou afinar o nariz para dar-lhe uma forma desejada é algo transmitido de geração em geração. São costumes diferentes, bizarros e até bárbaros, os efeitos que cada civilização imprime ao corpo. “Uns esmagam o nariz dos filhos, outros esticam prodigiosamente suas abas com anéis bem pesados de metal. Outros portam anéis bem mais pesados nas orelhas, alargando-os de forma espantosa” (SUE, 1791, p. 07).

Para guerrear, os indígenas enfeitam-se com vestes, máscaras, braceletes e outros ornatos de penas verdes, vermelhas ou azuis, de incomparável beleza natural, a fim de mostrarem-se mais belos e mais bravos. O rosto é embelezado com um pequeno pincel no qual traça uma roda no centro da face e a prolonga em espiral, azul, amarela ou verde, mosqueando e sarapintando o rosto inteiro. Segundo Jean-Jacqus Courtine e Claudine Haroche (2016, p. 133), o rosto, tomado como uma textualidade, exprime e cala emoções, o rosto e o corpo carregam traços da educação recebida, podendo ser mais belos, mas também mais feio quando se trata dos costumes bárbaros dos povos selvagens. As partes inferiores são “vergonhosas”, segundo cronistas dos séculos XVI- XVII sobre os indígenas brasileiros. Entre tais navegantes cronistas, temos Hans Staden [186] (1525-1576) que, ao escrever sobre suas Duas viagens do Brasil[187], acaba revelando um Brasil inspirador para artistas. Eduardo Bueno (2013, p. 11), no prefácio da obra de Staden, afirma que foi Paulo Prado [188] quem apresentou a obra de Staden aos poetas Raul Bopp e Oswald de Andrade (1890-1954), e à pintora Tarsila do Amaral (1886-1973). Foi a partir da obra de Staden que Tarsila, sobre a comida que chega aos pulos[189], decide pintar o Abaporu (do tupi aba, “homem”; poru, “que come” – “o comedor de gente”) e Oswald encontra inspiração para incitar o Movimento Antropofágico[190]. Monteiro Lobato escreve uma versão infantil da obra de Staden com o título Meu cativeiro entre os selvagens (1925). Em 1927, Lobato lança uma mera adaptação da obra e Staden em Aventuras de Hans Staden. Em 1941, o pintor Cândido Portinari (1903-1962) realiza uma série de desenhos inspirados nas xilogravuras originais do livro de Hans Staden em seu cativeiro entre os Tupinambás. São 24 gravuras[191] que somente foram apresentadas ao público em 1998, no livro Portinari devora Hans Staden. As gravuras de Portinari foram feitas no período da Segunda Guerra Mundial e incorporam o trágico bélico com o cativeiro macabro de Staden. As imagens revelam toda a feiura da morte e da decomposição das vítimas. Em uma das ilustrações, Portinari retrata Staden sentado de perfil, ao lado de um guerreiro moribundo, estirado no chão, cujo olhar fixo se dirige ao espectador da obra “Índio e Hans” (1941, Figura 38). 

No cinema brasileiro, Nelson Pereira dos Santos, no ano de 1971, apresenta sua obra, de livre inspiração no livro de Staden, com o jocoso título de Como Era Gostoso o Meu Francês. Em 1971, estamos sob uma Ditadura Militar (1964-1985) que censura as obras artísticas. Alegando “exploração do sexo e dos tóxicos”, exibição desnecessária do nu masculino, “contrário aos princípios morais e de pudor do povo brasileiro”, a apresentação do filme é interditada pelo Serviço de Diversões Públicas do Departamento da Polícia Federal em todo o território nacional, liberando-o apenas para o exterior, afirma Juliana Barreto Farias, no artigo Os índios tupinambás sob a ótica feminina (2012).

 

No Jornal do Brasil, dia 16 de outubro de 1971, Clarice Lispector escreve a crônica De como evitar um homem nu, para entender o porquê da censura[192] ao longa de Nelson P. dos Santos, “filme de muita beleza”, mas considerado “atentatório ao pudor, aos costumes e à moral” brasileira:

 

Trata-se de um filme que não escandaliza ninguém. […]. Só não gosto do título – Como Era Gostoso o Meu Francês – que dá uma ideia jocosa de um filme nada jocoso. [...]. Os diálogos foram escritos em tupi-guarani por Humberto Mauro. O Francês quinhentista (lindo), por especialistas franceses. Foram quatro meses de filmagem intensa. Os locais eram nas praias e matas entre Parati e Angra dos Reis. [...]. Mais de 500 figurantes apareceram no filme. Este foi realizado com a colaboração do Exército brasileiro, cidade de Parati, Funai, Museu da Policia Militar do Rio de Janeiro, Forte de São João. Todo o elenco foi depilado completamente. [...]. Mas a Censura implicou verdadeiramente com o nu masculino. Depois de alguma discussão deixaram passar o nu masculino dos índios – mas disseram que o nu do homem branco (o francês que viveu entre os índios e adotou-lhes o modo de viver) não seria permitido em hipótese nenhuma. Talvez seja inocência minha, mas, por favor, me respondam: qual é a diferença entre o corpo nu de um índio e o corpo nu de um homem branco? Assisti ao filme em salinha de projeção particular. Havia outras pessoas assistindo também. Duas delas eram freiras de alto nível eclesiástico. A opinião delas: filme belíssimo, de uma “grande pureza”, de um valor histórico inestimável por causa de toda a reconstituição. Disseram que era um filme poético. [...] no filme não há um só gesto ou intenção obscenos ou simples sugestão maliciosa. Será que daqui a pouco nos escandalizaremos se virmos um menino branco nu? Porque em menino pode e em adulto não pode? […] Melhor, por via das dúvidas, pôr terno e gravata nos tupinambás (LISPECTOR, 1971, p. 02, Caderno B, Jornal do Brasil).

 

No ano de 1999, outro cineasta brasileiro, Luiz Alberto Pereira, lança nova obra intitulada Hans Staden, baseado mais fielmente no livro Duas viagens do Brasil (Staden). Filme luso-brasileiro que melhor representa a história do mercenário alemão. Hans Staden, natural de Homberg (Efze, Hessen, Alemanha), descreve o Brasil − Novo Mundo da América − como uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, os Tupinambás [193], inimigos dos Tupiniquins, os amigos dos portugueses. Tribo que mata, esquarteja e distribui pedaços dos corpos aos prisioneiros (Figura 45, Figura 48), os Tupinambás são bebedores de cauim feito de milho maduro, o abati, odeiam portugueses, os peró; fazem festas e comem os prisioneiros, também chamados de reimbaba indé, “animal aprisionado”. Staden é obrigado pelos indígenas a gritar “Estou chegando, sou a vossa comida” (Aju ne xe pee remiurama), têm as sobrancelhas  e a barba retirada, e quando relata sobre Deus, os autóctones dizem que Deus é uma imundície. O alemão é levado como prisioneiro para um “festim canibal”, no qual vê a muçurana (Figura 47), uma corda de algodão para amarrar prisioneiros. O “alimento” em questão é um índio de outra tribo selvagem, um Carijó, que teve a cabeça cortada fora por ter um olho apenas, o outro olho foi acometido por doença e o deixou com péssima aparência. Beleza é ligada ao apetite, pois se prisioneiro é feio, a parte horrenda, ou enferma, é jogada fora. 

Interessante perceber como, mesmo horrorizado com os canibais tupinambás, Staden (2013, p. 140) afirma que os indígenas de ambos os sexos são bonitos de corpo e de estatura. Andam todos nus, bronzeados pelo sol, não trazem nem pelo nem roupa por todo o corpo, incluso nas partes pubianas. Ornam-se com penas e pedras (Figura 48). Sobre o penteado indígena, Staden (2013, pp. 147-149) afirma que é raspado no alto da cabeça, mas deixa uma “coroa de cabelos como monges”. O corte vem dos antepassados, por causa de um homem milagroso, um “profeta ou apóstolo”, chamado Meire Humane. Como ornamentos, usam um cocar vermelho (acangatara) que é atado ao redor da cabeça, um colar de concha de caracóis marinhos (boceji), penas grudadas pelo corpo, pintam um braço de preto e outro de vermelho e amarram penas de ema em formato redondo (enduape) sobre o traseiro, ornamento usado em festas ou batalhas.

Para Staden (2013, 156), os tupinambás transformam as índias em feiticeiras. Em um ritual feito em uma cabana, com muita fumaça, o feiticeiro “transforma” as indígenas em mulheres que adivinham o futuro. Já sobre o processo de “morte do prisioneiro”, o aventureiro nos dá detalhes bizarros e fascinantes sobre o costume dos autóctones canibais:

 

[...] o algoz golpeia o prisioneiro na nuca, de forma que jorre o cérebro. Imediatamente as mulheres pegam o morto, arrastam-no para cima da fogueira, arrancam toda a sua pele, deixam-no inteiramente branco e tapam seu traseiro para que nada lhe escape. Depois que a pele foi limpa, um homem o segura e lhe corta as pernas acima dos joelhos e os braços rente ao tronco. [...]. As mulheres comem as vísceras, da mesma forma que a carne da cabeça. O cérebro, a língua e o que mais as crianças puderem apreciar, elas comem (Ibid., pp.164-166).

 

O guerreiro que mata o inimigo ganha mais um nome e uma incisão, uma honrosa ornamentação, feita com dente de animal selvagem na parte superior dos braços. A ornamentação e o corpo nu do selvagem parecem não chocar o observador europeu, mas a forma como os prisioneiros são tratados até o momento da morte é algo que o alemão Staden descreve em detalhes.

 A representação do corpo ligado ao Novo Mundo, no período do Renascimento, demonstra o processo no qual a pregação religiosa cede à estética, ou seja, o artista rompe com os principais aspectos das artes plásticas e literatura da Idade Média. Com o Quattrocento [194] há uma presença mais forte de aspectos da cultura greco-romana, com elementos do paganismo, como demônios na mitologia, busca pela perfeição estética, certo realismo nas esculturas e pinturas.  O corpo humano e a figura humana tornam-se o foco do artista realista. No século XVI o foco está na descoberta do indivíduo, o uomo singulare, o uomo universale, mesmo que o outro seja considerado selvagem. Como mostrar ao ocidente a imagem do homem selvagem? Usando os detalhes, os ornamentos e as cores. “O gosto do mundo sensível é decisivo. O universo material passou a ser estimado por si mesmo e não como uma língua simbólica” (BAYER, 1995, pp. 101-103). A beleza do Renascimento é a fusão do sagrado com o profano, possuindo sensualidade; “o homem já não despedaça sua sensualidade”. Os temas estéticos para a arte estão no mundo, basta ouvir os relatos dos cronistas que encontram povos autóctones, estão nos animais estranhos e entes sobrenaturais em terras distantes (Ibid., p. 104).

Com José de Anchieta[195] (1534-1597), o povo autóctone brasileiro sofre “todos os modos e maneiras para receber a lei evangélica” através de uma catequese acessível e aculturada, na qual o disperso foi reunido e o escondido foi descoberto através da conversão do povo autóctone que habita a terra recém-descoberta do Brasil. Anchieta, aprende a língua tupi, compõe a primeira gramática nacional para navegar na mente do povo gentio, local no qual o jesuíta deseja ansiosamente desbravar. Nas cartas jesuíticas de Anchieta são “abertos os olhos do espírito à luz da razão, os Brasis iriam ser o Brasil” [196], para entender o Deus e o Demônio dentro de nós, brasileiros (PEIXOTO, 1933, p. 25). Ao falar das indígenas, Anchieta (1933, p. 68) narra sobre a luxúria das mulheres que andam nuas e não sabem se negar a ninguém.  “Até elas mesmas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir com os Cristãos”:

 

Non fornicaberis, Meretrix ut stercus conculcabitur in via transeuntibus; a mulher, desonesta e desavergonhada, não há dúvida, que é senão um vaso de sujidade posto no caminho para ser sujado e enxovalhado de todos os que passam, e a alma de um luxurioso e sem vergonha é outra tal, vaso é de estéreo posto no caminho deste mundo, onde os porcos infernais se revolvem, deleitam-se e fazem sua morada (ANCHIETA, 1993, p. 533).

 

Fornicadores e “tábulas rasas”[197]para Anchieta, os indígenas possuem um vazio de saber em relação à doutrina cristã. É preciso imprimir-lhes todo o bem possível, “nem há dificuldade em tirar-lhes rito nem adoração de Ídolos porque não os têm e os costumes depravados de matar homens e comê-los, ter muitas mulheres e embriagar-se de ordinário com os vinhos e outros semelhantes” (ANCHIETA, 1993, p. 435). Para Baêta-Neves (1978, pp. 92-95), os traços indígenas são reprováveis perante a cultura cristã europeia, pois o indígena é uma criança, a “infância da humanidade” que carece de educação jesuítica. Os jesuítas, segundo Baêta-Neves, para obter sucesso com a educação dos índios precisam conquistar os feiticeiros [198], os “pajés”. O jesuíta precisa conquistar e desmascarar o detentor de toda a magia e do saber tribal para “salvar” as almas selvagens.

Para o padre jesuíta Fernão Cardim (1549-1625), o Brasil é outro Portugal com um clima bem mais temperado e sadio, “sem calmas grandes, nem frios, e donde os homens vivem em muito poucas doenças” (CARDIM, 1997, p 157). Os índios, ora tratados como adorno da paisagem ora como objeto principal das viagens e narrações de Cardim, são fascinantes para o humanista português. Em Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias (1881) e em Tratados da terra e gente do Brasil (1939), Cardim nos apresenta os índios como seres ingênuos e místicos, mas sem conhecimento do Criador cristão.

 

Este gentio parece que não tem conhecimento do princípio do Mundo, do dilúvio parece que tem alguma notícia, mas como não tem escrituras, nem caracteres, a tal noticia é escura e confusa; porque dizem que as águas afogarão e matarão todos os homens, e que somente um escapou em riba de um Jampaba, com sua irmã que estava prenhe, e que destes dois têm seu princípio, e que dali começou sua multiplicação. Este gentio não tem conhecimento algum de seu Criador, nem de coisa do céu, nem si há pena nem glória depois desta vida, e, portanto não tem adoração nenhuma nem cerimônias, ou culto divino, mas sabem que tem alma e que esta não morre e depois da morte vão a uns campos onde há muitas figueiras ‘ao longo de um formoso rio, e todas juntas não fazem outra cousa senão bailar; e tem grande medo do demônio, ao qual chamam Curupira, Taguàigba [199], Macachera[200], Anhanga, e é tanto o medo que lhe tem que só de imaginarem nele morrem, como aconteceu já muitas vezes; não adoram, nem a alguma outra criatura, nem tem ídolos de nenhuma sorte, somente dizem alguns antigos que em alguns caminhos tem certos postos, aonde lhe oferecem algumas coisas pelo medo que tem deles, e por não morrerem. Algumas vezes lhe aparecem os diabos ainda que raramente, e entre eles há poucos endemoniados. Entre eles se levantam alguns feiticeiros, a que chamam Caraíba, Santo ou Santidade, [...]. Não têm nome próprio com que expliquem a Deus, mas dizem que Tupã é o que faz os trovões, os relâmpagos, e que este é o que lhes deu as enxadas, e mantimentos, e por não terem outro nome mais próprio e natural, chamam a Deus Tupã (CARDIM, 1939, p. 142).

 

Cardim narra que os índios são melancólicos, amigáveis, afetuosos (“maviosos”), respeitáveis [201]; andam nus, não possuem vestidos ou vergonha, vivendo em estado de inocência e modéstia. Como todos os outros cronistas aqui citados, o jesuíta cita que os indígenas se pintam de preto, usam adornos de pedra, pau e penas, não possuem pelos, as mulheres possuem negro cabelo comprido “e corredio” e os homens usam um cabelo tosquiado na parte superior “que parecem frades”, “é tanta a variedade que tem em se tosquiarem, que pela cabeça se conhecem as nações”; o cabelo como local de identidade para os grupos indígenas (CARDIM, 1939, p. 148). Cardim jocosamente faz uma analogia entre o bicho-preguiça e a mulher, possivelmente as indígenas que andam com os filhos pendurados a cintura:

 

[...] é animal para ver, parece-se com cães felpudos, os perdigueiros; são muito feios, e o rosto parece de mulher mal toucada; têm as mãos e pés compridos, e grandes unhas, e cruéis, andam com o peito pelo chão, e os filhos abraçados na barriga. (Ibid., p. 45).

 

Menos humanista e jocoso é o português Gabriel Soares de Sousa (1540-1591) em sua detalhada obra Tratado Descritivo do Brasil em 1587, rica em descrições de vários grupos indígenas. Para Sousa (1938, pp. 23-24), o gentil potiguar (“gentil Pitiguar”) era de “má estatura, baços de cor, como todo o outro gentio; não deixam crescer nenhuns cabelos no corpo senão os da cabeça, porque em eles nascendo os arrancam logo”; gentio belicoso, guerreiro amigo dos franceses, inimigos dos portugueses, ótimo flecheiros, grandes pescadores com linha, “bailam, comem e bebem” como todo gentil da costa brasileira. Pela costa de Pernambuco vive o gentio povo caeté, também inimigo dos portugueses, vive em “guerra cruel com os potiguares, se matam e comem uns aos outros em vingança de seus ódios”. Os caetés são belicosos guerreiros, sem nenhuma fé, traiçoeiros; gentios “da mesma cor baça, e tem a vida e costumes dos potiguares”. São grandes músicos, “amigo de bailar”, pescadores de linha, nadadores; “também são mui cruéis uns para os outros para se venderem, o pai aos filhos, os irmãos e parentes uns aos outros” (SOUSA, 1939, pp. 33-34). Os aimorés, que descendem dos Tapuias são muito selvagens e bárbaros que vivem pelos matos, não são tão baços como potiguares e caetés, são “de maiores corpos e mais robustos e forçosos”, sem barbas e pelos “porque os arrancam todos; pelejam com arcos e flechas muito grandes, e são tamanhos flecheiros, que não erram nunca tiro; são mui ligeiros à maravilha e grandes corredores”, com uma voz rouca, são bárbaros salteadores que não sabem nadar, comem carne humana por mantimento, não por vingança ou ódio de inimigos (Ibid., pp. 58-60). Sobre o gentio tupiniquim, Sousa (1939, pp. 71-72) declara que são fiéis aos portugueses, são gentios de cor baça, mais domésticos; dançam, pescam, caçam, cantam. Já os goitacases são mais brancos que os gentios anteriormente citados, são muito bárbaros, matam tubarões com paus para utilizar os dentes nas flechas, também sem pelos e pintados de jenipapo. Os papaneses vivem ao longo do mar, entre a capitania de Porto Seguro e a do Espírito Santo, e não consentem cabelo nenhum no corpo, senão os da cabeça (SOUSA, 1939, p. 83). O gentio tamoio, amigo dos franceses, é grande de corpo e muito robusto, valentes homens e muito belicosos, “grades músicos e bailadores entre todo o gentio”, “grandes componedores de cantigas de improviso”; usam beiços furados e enfeitam-se com capas e carapuças de penas de cores de pássaro (Ibid., p. 102). Os guaianases (ou goianazes) são povo pouco belicoso “facílimos de crer em qualquer coisa”, gente de pouco trabalho, não gostam de carne humana, “é gente folgazã de natureza e não sabe trabalhar. Não costuma este gentio fazer guerra a seus contrários”; vivem em covas pelo campo, debaixo do chão e são, segundo Sousa (1939, pp. 110-111), povo mais gentil[202] da costa brasileira. O povo carijó era gentio doméstico, pouco belicoso, de boa razão; segundo seu costume, não comem carne humana, nem matam homens brancos; “gente de bom corpo” que costuma, no inverno, usar peles da caça que matam, “uma por diante, outra por detrás” (Ibid., p. 115). Os tupináes são mais traiçoeiros que os tupinambás e gostam de comer carne humana, tanto que quando as índias da tribo engravidam do inimigo, comem a criança, “a mãe ajuda logo a comer filho que pariu”. Os índios tupinaés usam os cabelos compridos até lhes cobrirem as orelhas. Sousa (1939, p. 412-418) relata, também, sobre os índios ubirajaras (“senhores dos paus”), povo que no ano de 1587 não tinham visto ou ouvido falar de gente branca. É gente muito bárbara e com os cabelos muito compridos em ambos os sexos. Os tapuias também têm por costume trazer os cabelos da cabeça “tão compridos que lhe dão pela cinta, e às vezes os trazem entrançados ou enastrados com fitas de fio de algodão, que são como passamanes, mas muito largas”; e as índias tapuias usam um tipo de saia de franjas de fios de algodão que tampam as “vergonhas”.  Sousa (1939, p. 360) dedica uma grande parte de suas narrações sobre o Brasil para descrever os índios tupinambás (Capítulo CXLVII), considerados os “primeiros povoadores da Bahia”:

 

[...] homens de meia estatura, de cor muito baça, bem feitos e bem dispostos, muito alegres do rosto, e bem assombrados; todos têm bons dentes, alvos, miúdos, sem lhes nunca apodrecerem; têm as pernas bem feitas, os pés pequenos; trazem o cabelo da cabeça sempre aparado; em todas as outras partes do corpo os não consentem e os arrancam como lhes nascem; são homens de grandes forças e de muito trabalho; são muito belicosos, e em sua maneira esforçados, e para muito, ainda que atraiçoados; são muito amigos de novidades, e demasiadamente luxuriosos, e grandes caçadores e pescadores, e amigos de lavouras. [...]; não adoram nenhuma coisa, nem têm nenhum conhecimento da verdade, nem sabem mais que há morrer e viver; e qualquer coisa que lhes digam, se lhes mete na cabeça, e são mais bárbaros que quantas criaturas Deus criou (SOUSA, 1939, pp. 361-364).

 

Os índios tupinambás podem se “agasalhar” (metáfora sexual) com várias índias, mas todas respeitam a primeira mulher. Índios também sem pelos se tosquiam com pedaços de canas, usam jenipapo e penas amarelas. As moças solteiras são pintadas pelas mães, casadas são pintadas pelo marido, se lhes querem bem. Para ter os cabelos compridos, grossos e pretos, as índias tupinambás os unta com “óleo de cocos bravos”. As índias dão à luz em qualquer lugar da mata e depois lavam a criança em rio ou fonte; o marido fica deitado na rede até o umbigo do rebento secar. “Como nascem os filhos aos tupinambás, logo lhes põem o nome que lhe parece; os quais nomes que usam entre si são de alimárias, peixes, aves, árvores, mantimentos, peças de armas, e doutras coisas diversas” (Ibid., p. 370). Sousa acredita que os tupinambás são bizarros, pois usam muitas bestialidades estranhas:

 

[...] como é fazerem depois de homens três e quatro buracos nos beiços de baixo, onde metem pedras, com grandes pontas para fora; e outros furar os beiços de cima, também como os de baixo, onde também metem pedras redondas, verdes e pardas, que ficam inseridas nas faces, como espelhos de borracha; nas quais há alguns que têm nas faces dois e três buracos, em que metem pedras, com pontas para fora; e há alguns que têm todos estes buracos, que com as pedras neles, parecem os demônios; os quais sofrem estas dores por parecerem temerosos a seus contrários. Usam também entre si umas carapuças de penas amarelas e vermelhas, que põem na cabeça, que lha cobre até as orelhas; os quais fazem colares para o pescoço de dentes dos contrários, onde trazem logo juntos dois, três mil dentes, e nos pés uns cascavéis de certas ervas da feição da castanha, cujo tinido se ouve muito longe. Ornam-se mais estes índios, para suas bizarrices, de uma roda de penas de ema, que atam sobre as ancas, que lhes faz tamanho vulto que lhes cobre as costas todas de alto abaixo; e para se fazerem mais feios se tingem todos de jenipapo, que parecem negros da Guiné, e tingem os pés de uma tinta vermelha muito fina, e as faces; e põem sobraçadas muitas contas de búzios, e outras pequenas de penas nos braços; e quando se ataviam com todas estas peças, levam uma espada de pau marchetada com cascas de ovos de pássaros de cores diversas, e na empunhadura umas penas grandes de pássaros, e certas campainhas de penas amarelas, a qual espada lançam, atada ao pescoço, por detrás; e levam na mão esquerda seu arco e flechas, com dentes de tubarão; e na direita um maracá, que é um cabaço cheio de pedrinhas, com seu cabo, com que vai tangendo e cantando; e fazem estas bizarrices para quando na sua aldeia há grandes vinhos, ou em outra, onde vão folgar; pelas quais andam cantando e tangendo sós, e depois misturados com outros; com os quais atavios se fazem temidos e estimados (SOUSA, 1939, pp. 371-372).

 

 

Os modos de se enfeitar dos tupinambás chocam aos homens civilizados, mas a luxúria também choca; índias mais velhas aliciam os jovens índios da tribo, ocorrem casos de incesto e “em conversação não sabem falar senão nestas sujidades” cometidas todo o tempo; se acham as mulheres com outros “espancam as mulheres pelo caso” (Ibid., p. 316). Entre os tupinambás há grandes feiticeiros (“pajés”): “Muitas vezes acontece aparecer o diabo a este gentio, em lugares escuros, e os espanca de que correm de pasmo; mas a outros não faz mal, e lhes dá novas de coisas sabidas” (SOUZA, 1939, p. 323). Se um tupinambá tem um desgosto, “se anojam de maneira que determinam de morrer” comendo um pouco de terra todo dia até que os olhos e o rosto fiquem inchados e morra (SOUZA, loc. cit.). Os homens tupinambás não choram nem por alguém querido que morra. Povo muito sujeito à doença das boubas[203] no qual a única solução é secar a ferida com tintura de jenipapo. Em 1586, nasceu um albino entre os tupinambás que era, segundo relato de Sousa (op. cit., p. 404), um menino que tinha entre dez e doze anos de idade, “tão alvo, que de o ser muito não podia olhar para a claridade e tinha os cabelos da cabeça, pestanas e sobrancelhas tão alvas como algodão”, filho de um pai que “não era muito preto” e uma mãe “muito preta”, os outros tupinambás não entendiam como o “menino era assim branco” e, mesmo tão claro, “era muito feio”.

 

 

 

 

 

 

3.  LAIDARACULTUROGRAFIA BRASILEIRA

 

 

 

De quem falo, ele é feio e bonito.

É o homem da cor brasileira[204]

 

 

 

3.1 O imaginário da estética afro-brasileira

 

No começo da década de 1980, uma mulher negra canta “você ri da minha roupa, você ri do meu cabelo, você ri da minha pele, você ri do meu sorriso. A verdade é que você tem sangue crioulo, tem cabelo duro, Sarará crioulo”[205].  Canção-hino de valorização da beleza negra, canção-protesto que afirma que quem ri do negro também tem sangue crioulo, música-elogio à mestiçagem. A laidaraculturografia (laidara, palavra iorubá/ioruba/yorubá/yoruba para “feio”)[206] traz o universo afro-brasileiro para a estética, para a cultura brasileira do feio, revelando mais uma face de nossa beleza ampliada.

Brasil, século XVI, escravos africanos são trazidos à força para um mundo estranho e hostil, as terras brasileiras, para trabalhar em lavouras de cana-de-açúcar, pois os “negros da terra”, os indígenas, não trabalham conforme o desejo dos portugueses na colônia. Transportados em tumbeiros[207], apenas com a roupa do corpo, são alocados no porão de forma amontoada, acorrentados uns aos outros para que não ocorra rebelião. Quanto mais negros nos tumbeiros, mais lucro nas vendas. É uma viagem de trinta a sessenta dias, na qual cada negro fala uma língua, pois são de etnias diferentes; os aprisionados africanos defecam, vomitam e urinam no mesmo local que estão amontoados. A comida é jogada duas vezes ao dia no porão, são as sobras da tripulação branca. Os escravizados tomam apenas dois banhos durante toda a viagem. Algumas negras são abusadas sexualmente pelos homens brancos e alguns negros são forçados a cantar e dançar para a tripulação. Além da enorme sujeira e forte odor, há corpos mortos no meio dos escravos que teimam em viver. Quando os escravizadores têm problemas com o navio, abrem o porão para jogar os mortos ao mar. Vivos e mortos no mesmo ambiente fétido; o nome “tumbeiro”, alusão às tumbas, para os navios de transporte de escravizados não pode ser mais adequado (BUENO, 2003, pp. 112-116).

A escravidão no Brasil é cruel. Desde trabalhar quase 24 horas, até apanhar com um “bacalhau”, um chicote de cinco pontas, por causa de um sorriso esquisito para o senhor da casa grande. Amarrados ao tronco apanham até ficar com as costas em carne viva, depois é passada uma mistura de sal, limão, vinagre e urina sobre as feridas. Se fogem, são marcados com ferro em brasa com a letra “F”, de fujão, no rosto ou no ombro. É costume, além da marcação com ferro quente; quebrar dentes, amputar seios, vazar olhos; cortar orelhas, nariz, tendões do pé e até o pênis. Apanhar com palmatórias, amarrados ao “pau da paciência” (pelourinho), aos troncos; usando gargalheira, um colar de ferro com vários ganchos, relatou Eduardo Bueno (2003, pp. 116-117).

Plantadores, moedores de cana, derrubadores de mata, semeadores de mudas, vaqueiros, remeiros, pescadores, mineiros, lavradores, caldeireiros, marceneiros, ferreiros, pedreiros, oleiros, pajés, guarda-costas, capangas, capitães do mato, feitores, capatazes, carrascos; carregadores de baú, caixas, cestas, caixotes, lenha, cana, quitutes, ouro, pedras, terras, dejetos e pessoas brancas. Os escravos negros são o corpo da nação brasileira durante três séculos de regime escravocrata. O corpo negro é o nosso corpo, é o corpo que dá origem ao nosso corpo sociocultural, juntamente com o corpo do indígena e do português. Negros brasileiros, filhos da “Mama África”, considerados a carne mais barata do mercado, que fez e faz constantemente nossa história. Negros bons para o trabalho, para o sexo, para o entretenimento, para a luta, para a resistência. Vamos falar da estética do corpo negro, corpo de embate que resiste, insite e persiste na grande nação brasileira. Usamos composições musicais, elementos da história nacional; personagens da mídia, da arte, da mitologia, da religiosidade, da literatura, para revelar a beleza ampliada no universo afro-brasileiro que habita o microcosmo em cada um de nós. Somos, a sociedade brasileira, filha da miscigenação afetiva, irracional e passional. Dos indígenas herdamos a psicologia dos banhos e dos cafunés, dos negros herdamos uma “suavidade dengosa e açucarada” (HOLANDA, 1995, p. 61).

Nossa “plasticidade social” começa em Portugal com uma ausência praticamente completa de qualquer orgulho da raça. Os homens brancos portugueses que navegam e encontram o Brasil já são, em parte, “um povo de mestiços”, segundo Sérgio Buarque de Holanda (1995, p. 53), “o Brasil não foi teatro de nenhuma grande novidade. A mistura com gente de cor tinha começado amplamente na própria metrópole”. Já em 1500, não há casa portuguesa que não tenha uma negra, pois os escravos pululam em Portugal. “Todo o serviço era feito por negros e mouros cativos, que não se distinguiam de bestas de carga, senão na figura” (HOLANDA, 1995, p. 54). Por volta de 1728, boa parte dos portugueses possui a cor trigueira a efeito do clima e mais ainda da mistura com os negros, muito ordinária no povo baixo. “Vítima submissa ou rebelde”, o fato é que os negros, em uma pirâmide sociocultural, estavam abaixo do branco e do índio (Ibid. p. 56). O indígena que se casa com negra, suja o sangue.

Nos domínios da literatura, entre 1501 e 1600, o Brasil, com o “Quinhentismo”, vive as manifestações literárias correspondentes à introdução da cultura europeia em terras brasileiras. Não é uma literatura, de fato, brasileira, pois temos uma escrita plena da cosmovisão do homem europeu, com ideias relacionadas ao Renascimento. Os escritos do quinhentismo são documentos informativos de mapas, relatos de viagens, de aventuras e de cartas sobre o Brasil. Temos a literatura de viagem e a literatura jesuítica, com textos de ordem religiosa, espécie de escritos paraliterários. Sob o olhar do estrangeiro, existem relatos dos mais estranhos seres na Terra de Vera Cruz: “uma fera que vivia de vento” (THEVET, 1555), índios canibais, mulheres sem pelos nas “vergonhas”, entre outros exotismos. Nos séculos XVI e XVII, o relato é sobre o exótico e o erótico do mundo tropical. Para os jesuítas, a catequese salvaria o povo vermelho do Brasil.

Para Arnold Hausser (1892-1978), na obra História Social da Arte e da Literatura, no século XVII, o barroco (verúcia/barroque/barrueco; algo áspero, rude, tosco, mal polido) ganha força com as missões jesuíticas para emocionar e estimular a piedade e devoção do povo. Com uma estética extravagante, confusa, bizarra, irregular e inconstante, o barroco abre uma nova visão do mundo pautada na cinemática dos corpos que atuam do óbvio para o escondido e o velado, pois exigia um desejo de concentração e subordinação do observador. A arte barroca revela as afinidades de todos os seres, a fim de criar uma “arte popular” para a propagação da fé católica, mas permite um rumo mais liberal, mais sensual, com amor à antítese, ao contraste, à expressão obscura, ao misticismo, a angústia, pessimismo, humanização do sobrenatural; a bivalência do homem: santo versus libertino, blasfemo versus contrito; aos dilemas éticos e estéticos da vida: bem/mal, céu/inferno, arrependimento/pecado. O significado atribuído a “belo”, “bom”, “inteligente”, “refinado”, “elegante” depende do que a corte considera ter tais qualidades. Com o barroco, além do cristianismo, a corte (francesa, italiana, espanhola, portuguesa) dita as questões de gosto (HAUSSER, 1998, pp. 442-477).

 

 

3.2 O Barroco, os mestiços e o Boca do Inferno

 

 

A uberdade do local narrado por navegadores e cronistas do século XVI aos homens civilizados de países europeus, logo atrai pessoas que anseiam conhecer um novo mundo, uma nova terra, uma nação repleta de papagaios, uma nação com indícios de liberdade para todos, menos os indígenas e os negros, claro. Os homens estrangeiros que no Brasil ancoram, logo estranham as pessoas que aqui vivem... São mestiços.

Para José Antônio Tobias, na obra História das ideias estéticas no Brasil (1967), a estética brasileira do século XVI possui quatro tipos: 1) primitiva, feita por selvagens ou “pessoas de alma sincera e virgem”, segundo os religiosos do século XVI; 2) clássica, pois toma a natureza como modelo; 3) barroca com influências vindas da Espanha, com Inácio de Loiola e os jesuítas; e 4) cristã, pois nasce em um país pagão no qual cresce o pensamento cristão de jesuítas, o teatro dos jesuítas, as poesias de Anchieta, a arquitetura barroca das igrejas, estilo colonial dos antigos colégios e a conversão de caciques. É nessa uberdade de pessoas e elementos estéticos brasileiros que, no século XVII, estamos em processo de colonização e os centros econômicos são a Capitania de Pernambuco e a Capitania da Baía, centros econômicos de cana-de-açúcar. As histórias das pessoas que vivem no Brasil, ou que aqui chegam para “tentar a sorte”, é o que cria nossa cultura, nosso senso estético e, por consequência, nossa criação artística para elevar nossa resistência.

Na arte ouvimos os ecos do Barroco. Lúcia Lippi Oliveira (1945, p. 15), na obra Cultura é patrimônio: um guia, afirma que o barroco é um “estilo de arte, uma visão de mundo e uma forma de vida” que busca “integrar a natureza pagã ao universo da fé católica”, em que até a dor se torna espetáculo e festa. “O barroco é o reino da festa perpétua” (BASTIDE, 2006, p. 134). Affonso Romano de Sant’Anna, autor das obras Barroco, alma do Brasil (1997) e Barroco: do quadrado à elipse (2000), relata que o nome “barroco” tinha ligação com perólas defeituosas[208]:

Uma pérola. Uma pérola defeituosa. Não redonda. Não perfeita. Mas uma pérola com reentrâncias e concavidades. De uma pérola assim é que veio a palavra Barroco. Aliás, não da pérola em si, como ensinam os manuais, mas do lugar na índia, onde esse tipo de pérola era encontrado facilmente. Lá os navegantes portugueses desembarcaram em 1510 e começaram um lucrativo comércio de pérolas. As pérolas meio retorcidas vinham de Broakti, cidade cujo nome os portugueses pronunciavam como “Baroquia”. Não tardou muito para que “Baroquia” virasse “Barroca”. E todas as perólas que não fossem perfeitas passaram a ser chamadas de “pérolas barrocas”. Tais pérolas, bem mais baratas que as “pérolas redondas”, logo começaram a ser mencionadas em diversos documentos (SANT’ANNA, 2000, pp. 84-85).

Massaud Moisés, em A literatura portuguesa (2006), acredita que o movimento Barroco é de instável contorno, cheio de jogos de paradoxos em que o humano está dividido entre os apelos do corpo e os da alma. “O belo-feio, a linha torta, o excesso de pormenor, o desenho que foge do ponderado, do ‘razoável’, o jogo do claro-escuro em que a sombra ocupa lugar prepoderante” tornam-se elementos do Barroco (MOISÉS, 2006, p. 74). No Brasil, o termo Barroco abrange duas grandes manifestações: o Barroco Literário e Arquitetônico do século XVII, em especial na Bahia; e o Barroco mineiro do século XVIII, conhecido como Barroco tardio, contemporâneo do Arcadismo[209].

Nossas manifestações literárias são isoladas, não homogêneas, não há uma literatura como sistema. Em 1601 a obra Prosopopeia [210], do misterioso autor Bento Teixeira Pinto (1561?-1600?)[211], torna-se um primeiro e desajeitado texto imitação da obra Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões (1524?-1580?). Gilberto Vilar de Carvalho narra Bento Teixeira como “O primeiro brasileiro” em um texto onde se conta a história do autor como um cristão-novo, instruído, desbocado e livre[212], primeiro poeta do Brasil, perseguido e preso pela Inquisição. Interessante notar que o primeiro poeta do Brasil tenha nascido e morrido em Portugal.

Traição, um fato curioso em nossa história cultural, que entra para nossa estética da feiura como algo que é historicamente tratado como repúdio a um homem, acaba, devido ao nosso senso de resistência, sendo usada como metáfora para a Ditadura Militar no Brasil. Estamos falando de um dos maiores traidores da história brasileira, o mameluco (ou mulato?) Domingos Fernandes Calabar (1609-1635), conhecedor do interior nordestino, que luta ao lado dos portugueses contra os holandeses, mas muda de lado e resolve auxiliar os holandeses. Os motivos que levam Calabar a trair a coroa real portuguesa são escusos. O que nos desperta atenção é o fato de um traidor ser usado quase heroicamente, e sua traição ser elogiada por Chico Buarque de Holanda e Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira na década de 1970. A história de Domingos Calabar, na opereta Calabar: o elogio da traição (1973), serve de mote para questionar as versões oficiais dos fatos. São os portugueses tão melhores que os holandeses ao explorar o povo brasileiro. Na peça teatral, Calabar é “um mulato alto pelo ruivo, sarará”, uma figura perigosa amancebado com Bárbara. Os holandeses trazem vícios e pecados para o Brasil, presentes na figura da prostituta Anna de Amsterdã. A história é cheia de traidores... Quem trai a quem? A traição depende das necessidades. Cada um tem seu motivo para trair na peça de Buarque e Guerra. “Terra engraçada, esta. Em nenhuma outra parte verás tantos sorrisos e tantas trapaças. Muito engraçada, esta guerra, tantas raças, tantos idiomas, mas só entendem claramente as palavras de traição” (BUARQUE; GUERRA, 1995, p. 43). Calabar é morto e tudo que lembrasse o traidor deveria ser queimado e salgado, seus descendentes declarados infames até a quinta geração. “[...]. Que seja morto de morte natural para sempre na forca... por traidor e aleivoso à Pátria e ao seu Rei Senhor... e seu corpo esquartejado, salgado e jogado aos quatro cantos” (Ibid., p. 56). Traidor esperto é aquele que sabe dizer “sim” – “Vence na vida quem diz sim”– aos dominadores, aos senhores de poder. O negro Henrique Dias e o índio tapuia Felipa Camarão ajudam o branco europeu a matar o mestiço. No segundo ato da peça, temos a figura de João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679), conde cognominado “o Brasileiro”, que ao chegar o Brasil beija o solo e fez elogios rasgados à beleza do país. Nassau quer provar que a colonização holandesa[213] é mais benéfica que a portuguesa. Nassau quer saber quais as aflições do povo de Recife e recebe como respostas várias reivindicações, desde escravos até mulheres. Em uma fala que vale para o século XVII ou para o período ditatorial no Brasil (1964-1985), o representante da Igreja católica afirma:

Calabar é um assunto encerrado. Apenas um nome, um verbete. E quem disser o contrário atenta contra a segurança do Estado e contra as suas razões. [...]. Porque o que importa não é a verdade intríseca das coisas, mas a maneira como elas vão ser contadas ao povo (BUARQUE; GUERRA, 1995, p. 106).

As falas finais do Consultor de Nassau e de Bárbara dizem mais ao atual período nacional do que ao século XVII. No Brasil, parece que a única certeza é que mordemos constantemente a própria cauda, ou seja, de traição em traição a nação é feita. Somos rebeldes que dizem “sim” para quem manda? O escritor baiano Agrário de Souza Menezes (1834-1863) escreve Calabar (1858), um drama em verso com cinco atos. No drama de Menezes, a figura do traidor é “byronianamente identificada com a do rebelde, por ser mestiço” resolve vingar as humilhações sofridas, segundo Alfredo Bosi (2006, p. 153). Drama sobre o complexo de inferioridade dos mulatos e sua difícil inserção na sociedade do século XVII ou XIX, uma inferioridade que é histórica para o mestiço.

 

 Homens que me enxotastes atrevidos

 Da lauta mesa, em que vos assentáveis,

 Mulheres que zombastes do mulato,

Porque ousou mostrar-vos sua alma

Em êxtases de amor: sede malditos.

Estou cansado já de tanta lida...

Morrer, sim, é melhor. Que val o mundo?

Quem não provou nenhum dos seus prazeres

Não pode ter saudades dos seus males...

(MENEZES apud REVISTA Ilustração Brasileira, 1923, p. 26).

 

Se Calabar de Menezes é um mestiço rebelde, o de Buarque e Guerra parece prenunciar uma constante ligada aos acontecimentos nacionais (século XVII, anos 1970 ou 2016) – o conformismo. A fala final do Consultor das Companhias das índias e de Nassau deixa bem clara qual o papel do povo, que é obedecer: “De agora em diante, neste Brasil, escrivão escreve. Assim como estudante estuda, censor censura, ator atua” (BUARQUE; GUERRA, 1995, p. 107). A personagem Bárbara, “uma paixão vadia/maravilhosa e transbordante/feito uma hemorragia”, fecha o elogio da traição com uma cortante fala: “[...]: odeio ouvinte de memória fiel demais. Por isso, sede sãos, aplaudi, vivei, bebei, traí, oh celebérrimos iniciados nos mistérios da traição”.  Calabar, um louco, um guerreiro, um pecador, um desertor, o bode expiatório, não aparece em momento algum na peça, confunde-se com a ideia de traição. Elogiar o traidor é elogiar a traição. A única personagem que não trai ninguém é Anna de Holanda, a prostituta, pois já tem preço e dorme com todos. Anna é aquela que se vende por dinheiro e não por ideais. “Calabar não morre. Calabar é cobra de vidro”. Uma cobra de vidro[214] é animal que autotomiza-se, que perde e regenera parte do corpo, “[...], quando se corta em dois, três, mil pedaços, facilmente se refaz” (Ibid., p. 47; 59; 109). O texto de Buarque e Guerra nos revela a resistência através de várias formas de luta: política, armada e intelectual. A obra de Buarque e Guerra é rica em superposições de textos – ditos populares, passagens bíblicas, decretos, provérbios adaptados – uma simbiose entre política e sátira. Calabar é uma figura grotesca crítica, pois dá margem a um “discernimento formativo”, é o desvelamento público e reeducativo do que nele tenta se ocultar, é um recurso estético para desmascarar convenções e ideais, rebaixando identidades poderosas e pretensiosas e expondo de modo tragicômico os mecanismos do poder abusivo (SODRÉ; PAIVA, 2002, pp. 69-70).

Brasil Barroco no qual um judeu desbocado (Bento Teixeira), um mestiço traído e traidor (Calabar) e um conde estrangeiro cognominado “o Brasileiro” parecem representar as identidades de uma nação em formação; um Brasil irônico, grotesco, extravagante, feio, incongruente. Entre 1600 e 1700, vive no Brasil uma figura de grande valor para a visão do grotesco na cultura brasileira, o jurista e boêmio[215] Gregório de Matos Guerra (1636-1696). Conhecido como “Boca do Inferno” ou “Boca de Brasa”, Gregório de Matos é autor que abusa de figuras de linguagem, com poemas repletos de contradições: sagrado e profano, sublime e grotesco, amor e pecado, Deus e os prazeres. “Eu sou aquele, que os passados anos/cantei na minha lira maldizente/torpezas do Brasil, vícios, e enganos” [216]. Suas sátiras usam palavras ofensivas e de baixo calão - por satirizar seus desafetos e criticar a sociedade baiana do século XVII, recebe o apelido de “Boca do Inferno”. Os poemas de Gregório também possuem certo ressentimento e “insatisfação diante da existência em si, tal estado de desilusão e pessimismo é o cenário para a segunda categoria do grotesco, que não disfarça o elemento demoníaco: decadência, caos, corrupção”, segundo Bento Itamar Borges (2002, s.p.), fazendo o foco pairar sobre as partes baixas, rebaixamento do corpo[217]. Em um realismo grotesco e pornográfico na poesia sotádica[218], Gregório cria musas praguejadoras, caluniosas e maledicentes. Como poeta erótico e profano, exalta a sensualidade e a volúpia das amantes baianas com as quais vive envolvido em escândalos sexuais. No poema Necessidades Forçosas da Natureza Humana, nem as freiras escapam da poesia licenciosa de Gregório de Matos: “Descarto-me da tronga, que me chupa/Corro por um conchego todo o mapa/O ar da feia me arrebata a capa/ [...] / Busco uma freira, que me desentupa/A via, que o desuso às vezes tapa/ [...].” (AMADO; MATOS, 1999, p. 910). Nas obras satíricas e eróticas de Gregório de Matos, o riso grotesco, um riso mesclado à dor de Ser, adquire os traços do riso burlador, cínico e satânico (BAKHTIN, 1993, p. 44). O amor nas poesias de Gregório é um amor brejeiro, prático, aventureiro e voluptuoso; suas musas são mulatas, mestiças, mulheres belas e feias:

 

 Mote

A mais formosa que Deus.

 

Glosa

Eu com duas Damas vim

de uma certa romaria,

uma feia em demasia,

sendo a outra um Serafim:

e vendo-as eu ir assim

sós, sem amantes seus,

lhes perguntei, Anjos meus,

que vos pôs em tal estado?

A feia diz, que o pecado,

a mais formosa, que Deus.

(MATOS, 2004, p. 14).

 

 

 Gregório foi considerado o “Homero do lundu”; o lundu é dança de origem conguesa ou quibunda que foi condenada pela Inquisição e pelos jesuítas, mas sobrevive pelas margens da sociedade; é “dança dengosa, cantada e executada com ritmos e voluptuosidades da coreografia”. O lundu é uma forma de manifestação do tropicalismo dos mestiços, “a expressão mais viva do sensualismo das mulatas eróticas e ciosas” (SPINA, 1995, p. 50-51). Em E pois coronista [sic] sou, Gregório é a personificação da sátira para quem calar é morrer: “Se souberas falar também falaras/ também satirizaras, se souberas,/e se foras poeta, poetaras” (MATOS, 1930, p. 43). Com o “Boca do Inferno”, seu gosto pelo lundu, pela sensualidade brejeira, pela comida, pela Bahia, a cultura africana e a mestiça brasileira encontram meios de exprimir-se.

 

 

3.2.1 A feiura de Aleijadinho

 

 

No Brasil, a arte barroca é importada da Espanha e Portugal, atuando nas zonas de produção açucareira, nas arquiteturas e esculturas. No fim do século XVIII, o possível ápice da arte barroca brasileira se dá com Antonio Francisco Lisboa, ou Aleijadinho (1738? -1814), uma figura com uma biografia misteriosa; um mulato admirado por brasileiros e estrangeiros. Segundo Eduardo Galeano (2008a, p. 160; 2008b, 155, tradução nossa), “o homem mais feio do Brasil, criou as mais alta beleza da arte colonial americana” [219]. Considerado o primeiro biógrafo de Aleijadinho, Rodrigo José Ferreira Bretas (1815-1866), em Traços biográficos relativos ao finado Antonio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho (1858), escreve:

[...] pardo escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada, e o gênio agastado: a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, e esta volumosa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto, a testa larga, o nariz regular e algum tanto pontiagudo, os beiços grossos, as orelhas grandes, e o pescoço curto. (BRETAS, 1858 apud PEDROSA, 1940, p. 27).

 

Mulato, filho e escravo do arquiteto português, Manuel Francisco Lisboa, e da escrava Isabel, é alforriado no batismo. No fim do século XVII, os portugueses estão em busca febril por ouro em Minas Gerais. O Brasil é o novo Eldorado e Minas Gerais é um grande garimpo para portugueses e brasileiros de outras localidades. Núcleos urbanos se formam nas serras de Minas, atraindo também religiosos. Em 1750 os veios se esgotam e a mineração entra em declínio. Nesse conturbado momento, entre fortunas e misérias extremas, surge a figura de Aleijadinho. Artista de rico conhecimento na arte torêutica, a arte de esculpir em metal/madeira/marfim[220], mas que é difamado por outros artistas. Rui Oliveira (2011, pp. 13-14) afirma que as acusações são sem fundamento:

[...] é inacreditável alguém com problemas físicos ter realizado obra tão gigantesca; que lhe são atribuídas obras sem comprovação; que continuou a produzir depois de morto; que sua assinatura de 1802 não condiz com alguém de mão mutilada; que os rostos dos soldados romanos são deformados; que os profetas têm elefantíase... .

 

Os problemas físicos atraem a atenção dos observadores de suas obras e de sua biografia. Aleijadinho é ajudado pelo escravo africano Maurício [221], com quem divide metade do que recebe para trabalhar com os entalhes. Maurício prende as ferramentas, o ferro e o macete, com tiras de pano nos poucos dedos que restam nas mãos de Aleijadinho. Trabalhando com dores lancinantes, o escultor produz nossa mais expressiva e, atualmente desvalorizada, arte barroca brasileira. Aleijadinho começa a sentir os males da doença, desconhecida em diferentes diagnósticos, a partir de 1777. Em 1965, o cirurgião e escritor Alípio Correia Neto (1898-1988), na obra A Doença do Aleijadinho (1965), afirma que o mestre barroco sofria de “zamparina”, um surto gripal que houve no Rio de Janeiro em 1780, caracterizado por alteração grave do sistema nervoso e locomotor. Sabe-se hoje que a causa mais provável das lesões apresentadas por Aleijadinho são a hanseníase virchowiana ou então a porfiria, segundo o professor Paulo da Silva Lacaz (1915-2002). A doença que se manifesta no artista ainda guarda seus mistérios; nem as exumações de seus restos mortais são capazes de identificar a moléstia que o acometeu. Em 1948, uma exumação clandestina é realizada pelo historiador inglês Jonh Bury, com a ajuda do zelador da Matriz de Antônio Dias, Manuel de Paiva, conforme relata a pesquisadora Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira no prefácio do livro Aleijadinho, o Teatro da Fé (2007), de José de Monterroso Teixeira. “Zamparina” aparece na obra Macunaíma (1928), de Mario de Andrade (2016, p. 142) como a doença da princesa que foi um caramboleiro.

O mestre arrasta-se de joelhos. A face contrai-se, a dor é muita. A doença destruiu seus dentes. Inchou-lhe pálpebras. Entortou-lhe a boca, fez recair o lábio e o queixo. Doem as mãos e os pés... O couro atado aos joelhos não esconde a carne viva. Mas é preciso trabalhar. Prosseguir. À frente, o cedro e a pedra-sabão à espera que ele lhes dê uma forma. De anjo. Profeta. Ou da Virgem Mãe (OLIVEIRA, 2011, p. 12).

 

Figura misteriosa e interessante de nossa história cultural. Aos vinte anos recebe formação franciscana e aos vinte e nove anos se desliga dos franciscanos, mas continua trajando roupas simples como os frades esmoleres: chapéu de feltro escuro, copa alta e aba larga; estamenha marrom de tecido rústico, porém, nem sempre é tão contido. Aleijadinho, antes da misteriosa doença, é “alegre e extrovertido, amante da boa mesa, gostando de festas e do sexo feminino [...], suspirava provavelmente pelas mulheres brancas, que tomou por modelos de todas as figuras femininas, pois nunca representou mulatas [...]”[222]. Tem a imagem associada ao “herói romântico” devido à origem bastarda, por ser filho de uma escrava; ser alforriado; um artista mulato, reflexo das misturas raciais “típicas” do Brasil; ter uma doença desconhecida; e a falta de recursos financeiros. Mas por outro lado, no Modernismo brasileiro, ganha a condição de “herói nacional”, um mito da nacionalidade no século XX, quando é lembrado pela originalidade dentro do Barroco brasileiro. É lembrado quando a identidade nacional torna-se assunto entre diferentes artistas, intelectuais e políticos. Roger Bastide, em O mito do Aleijadinho (1941), relata que a figura de Aleijadinho é igualada a um mensageiro dos deuses ou um ente demoníaco:

Assim como em torno do santo, flutua em torno do artista uma auréola de legenda. Analisando-se os mitos diversos que se formaram em torno dos grandes mestres das artes, deparamos sempre com mais ou menos os mesmos temas. E, portanto, tais lendas não passam de um conjunto de representações coletivas e, por conseguinte participam da sociologia. [...] O artista não é um homem como os outros: escapa à condição humana porque é um mensageiro dos deuses ou um ente demoníaco [...]. Assim como Homero é cego, Beethoven é surdo, o Aleijadinho é leproso, de pés e mãos estropiados, forçado a arrastar-se nos joelhos e a trabalhar com o martelo amarrado ao coto disforme, sem dentes nem pálpebras, objeto de pavor para seus próprios escravos (um dos quais tenta suicidar-se de nojo), escondendo-se sob um manto negro para ir à igreja, esculpindo debaixo de uma tenda e dissimulando-se aos olhos curiosos com chuvas de lascas de pedras (BASTIDE, 1941, pp. 13-17).

Artista que vive no sofrimento de dupla determinação, física e espiritual, segundo Guiomar de Grammont (2008), pois a lepra deforma seu corpo e a mulatice tortura sua psicologia. Em Arquitetura e Arte no Brasil Colonial, John Bury (2006, p. 91) afirma que Aleijadinho é um homem/artista tipicamente brasileiro no sangue, misto de português e africano, uma verdadeira figura nacional. Um homem disforme, pequeno com o “rosto medonho e repulsivo”; consciente do horror de sua aparência tinha medo de ser visto. Pode ser considerado o pioneiro da emancipação do Novo Mundo em relação ao Velho. Um homem feio, como escreveu Galeano, que faz belíssimas obras. Bury (2006, pp. 93-94) relata a ida do conde Francis de Castelnau[223] ao Brasil, em visita a Sabará em 1843, e ao olhar para a igreja de Nossa Senhora do Carmo, discorreu: le portail est orne aux parties extérieures et superiéures d’une sculpture assez bien executée par um manchot[224]. Bretas narra as atitudes antissociais do artista disforme de forma dramática:

 

A curiosidade e os olhares indiscretos provocados pela sua aparência humilhavam e mortificavam sua natureza orgulhosa e sensível. Tornou-se amargo, desconfiado e sujeito a violentos acessos de raiva mesmo quando recebia as maiores cortesias dos admiradores de seu trabalho, manifestava uma perversa argúcia em descobrir intenções de zombaria e desprezo nos elogios, chegando a extremas precauções para evitar que o observassem. Depois da doença fatal, passou a usar um comprido casacão de grosso pano azul que lhe cobria os joelhos, calças e colete feitos de qualquer outro tecido adequado, e adaptava sapatos pretos aos pés, para que parecessem normais. Ao andar a cavalo, também trajava uma ampla capa de manto negro, com mangas longas. Usava a gola virada para cima, assim como um capuz e um chapéu de feltro marrom braguez, com as largas abas atadas no alto por duas fitas. Saía de casa ao raiar do dia e só voltava depois de escurecer. Quando trabalhava, mandava colocar biombos e toldos a sua volta, de modo a ficar totalmente oculto à visão. Afastado de todas as relações sociais, exceto alguns amigos íntimos com quem ainda conseguia se alegrar, encontrava alguma compensação na leitura. Informa Bretas que “sua leitura favorita era a Bíblia”, e também, segundo consta, “obras de Medicina em especial de Química” (BRETAS apud BURY, 2006, p. 31).

Mesmo realizando exuberantes trabalhos, as pessoas não conseguiam desvencilhar a imagem grosteca; quase hugoliana, que nos faz lembrar a personagem Quasímodo da obra O Corcunda de Notre-Dame (1831, Victor Hugo)[225]: um homem deformado; um sineiro surdo, coxo e corcunda habitando uma Catedral, um ventre religioso, um santuário; cercado por religiosos, a fidalguia, órfãos e mendigos, mas que vive recluso. Tanto Quasímodo, o quase formado, quanto Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, são uma espécie do grotesco, segundo definição de Sodré e Paiva (2002, p. 68), com “referencias risíveis a monstruosidades, aberrações, deformações, bestialismos”, pois associam feiura e delicadeza de sentimentos, feiura e talento para criação de belos objetos.

Aleijadinho é um grotesco sério, veículo de uma nova beleza, que busca alargar as fronteiras do belo através de suas obras de arte. Francisco Lisboa é nosso Hefesto, nosso deus da forja, dos artesãos, dos escultores. “O talento de Hefesto era tão grande quanto sua feiura, e ele passava o tempo todo forjando milhares de engenhosos objetos para suas amigas, as ninfas do mar”, segundo Liz Greene (2001, p. 14). Aleijadinho, com suas raízes na figura arquetípica grega e apelido não encontrado em nenhuma fonte histórica, é considerado mais uma personagem de nosso Romantismo, um “personagem mítico do inconsciente brasileiro, uma lenda mitológica que emerge a partir do inconsciente cultural”, afirma Walter Boechat (2014, p. 91). Aleijadinho morre pobre e horrivelmente chagado. Porém, sua imagem reverbera em poemas, esculturas e obras cinematográficas. Em 1934, na antologia Brejo das Almas, texto inquietante sobre águas calmas, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) nos oferta um belo poema sobre Aleijadinho em “O voo sobre as Igrejas”: “Este mulato de gênio lavou na pedra-sabão todos os nossos pecados”. Drummond continua o poema e nos dá um tom mais místico, como se contasse a estória de um ser mágico, mítico, ao usar a expressão “era uma vez”, típica das oralidades infantis e fabulosas, das histórias contadas por vários narradores – como se lêssemos sobre a misteriosa história de Aleijadinho. “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores” (BENJAMIN, 1994, p. 198). Ao ler Drummond, percebemos a ironia que é a criação de um herói nacional, o “era uma vez” de um Brasil Hércules-Quasímodo:

 

Era uma vez um Aleijadinho,

não tinha dedo, não tinha mão,

raiva e cinzel, lá isso tinha,

era uma vez um Aleijadinho,

era uma vez muitas igrejas

com muitos paraísos e muitos infernos,

era uma vez São João, Ouro Preto,

Mariana, Sabará, Congonhas, era uma vez muitas cidades

e o Aleijadinho era uma vez.

 

Além de Drummond, o surrealista Murilo Mendes (1901-1975) escreve “Ao Aleijadinho” em homenagem ao escultor “severo, machucado e rude Aleijadinho” (MENDES, 1959, p. 437). Cecília Meireles (1901-19640), em Romanceiro da Inconfidência, também homenageia o artista mineiro: “[...] Sinos. Procissões. Promessas. Anjos e santos nascendo em mãos de gangrena e lepra” (MEIRELES, 1989, p. 97).  Gilberto Freyre (2001, pp. 282-286), ao discorrer sobre o homem que “nasceu à sombra da escravidão”, coloca Aleijadinho como alguém que contém uma obra com certa expressão de revolta contra o meio social e do desejo do brasileiro, nativo e/ou mestiço, de se libertar dos brancos europeus. Freyre considera Aleijadinho um “El Greco mulato”[226] pelas audaciosas distorções da forma humana. Deformando a forma, deforma-se a realidade para fazer a realidade mais real ou mais brasileira do que aparenta ser.

 

 

 

4.      O FEIO, O RISO E A RESISTÊNCIA

 

 

 

De certo modo, o belo surgiu

do feio mais do que ao contrário.

(ADORNO) [227]

 

4.1 O feio moderno como fermento do belo

 

“Por que estudar o feio?” Foi a pergunta que mais ouvimos durante o processo de pesquisa aqui presente. “E por que não?” é a única reposta-interrogação que surge à mente. A beleza e o belo, tão pesquisados e admirados em obras clássicas impera na estética como a norma, o padrão a ser seguido. Porém, sem a presença e a existência do feio não temos como prestar as devidas contemplações ao belo. Obviamente nos falta o elemento comparativo – o feio/a feiura. O belo nos encanta, mas é o feio que nos desperta os sentimentos; o feio não simula beleza, não ilude ao homem, não deseja representar perfeição; o feio é! O bonito carece explicação: “É belo porque...”. Já o feio não pede esclarecimentos, apenas exclama surpresa; “Como é feio!”, o que já é bastante para o sentimento de angústia e fascínio, ou seja, o feio atua no sublime. Se o belo desperta admiração e deleite, o feio nos dá repulsa, aversão e enlevo. Se o feio não existe, a beleza é banal, segundo Remo Bodei (2005, p.135), “o belo, portanto, coincide com a procura móvel do feio e com a sua captura”. O feio não deve ser evitado, mas identificado com as mais diferentes formas, pois há no humano um prazer insatisfeito em olhar o avesso, o outro lado de toda forma, “ali onde a inflexão torna-se inclusão” (DELEUZE, 1991, p. 60). O feio diluído em nossa cultura brasileira perde paulatinamente seu caráter repugnante e seus elementos perturbadores. Em nossa arte, a feiura sofre uma metamorfose milagrosa, passando do feio real ao belo eficazmente representado[228]. Como poeticamente colocou Baudelaire (2007, p. 34), a beleza pode ser feia e continuar encantadora: O Beauté! monstre énorme, effrayant, ingénu [229]. Para o poeta, a origem da beleza pode ser satânica ou divina, angelical ou enfeitiçadora como uma sereia, pouco importa (De Satan ou de Dieu, qu’importe? Ange ou Sirène).

Assim é nossa cultura do feio, uma beleza ampliada que não se importa se veio do fundo dos céus ou se saía dos abismos, pois é nossa feiura, nossa beleza ampliada; inocente ou maliciosa, que faz nosso país pleno de deboche e humor, dependendo da perspectiva de observação para a fealdade nacional. O pintor John Constable[230] (apud BODEI, 2005, p. 143), a uma pessoa conhecida, diz: “Não senhora, não existe nada de realmente feio, jamais vi uma coisa feia na minha vida: seja qual for a forma de um objeto, a luz, a sombra, a perspectiva, pode torná-lo sempre belo”. Por que pesquisar o feio no Brasil? Tudo é digno de atenção estética e cada tema, até aquele que parece ser o mais irrelevante, pode se tornar digno de consideração aprofundada e de um diferente olhar. O feio é parte constitutiva ineliminável da beleza, é fermento do belo, é princípio de movimento; é nossa maneira de encarar o estranho, o não-familiar, o diferente, rindo das feiuras e das normas sem querer eliminá-las. “Todas as coisas boas foram um dia coisas ruins; cada pecado original tornou-se uma virtude original”, afirma Friedrich Nietzsche (1998, p. 103).

Rosenkranz nos apresenta a exaltação da complexidade e da elasticidade da ordem do belo que reconhece o feio como espaço dinâmico e vibrante. Para chegarmos à beleza, precisamos arriscar nossa própria resistência no choque com o oposto, com as sensações mistas e contraditórias. Para Rosenkranz (1992) quando uma época está física e moralmente corrupta, é necessário desfrutar das delícias da frívola corrupção como um prazer proporcionado pelo feio. Para Bodei (2005, p. 150), o feio “nada mais é do que a beleza rebelde e perversa, Lúcifer, decaído por causa de sua desmedida soberba”. Para Baudelaire (2007), não importa se a feiura é um anjo de luz ou um anjo rebelde, se a sua mais importante ação era promover a imaginação. “A arte mais sublime encontra o seu terreno mais fértil na proximidade dos abismos”, afirma Bodei (2005, p. 151).

Segundo Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno (1903-1969) (1993, p. 62), em Teoria Estética, a “plurivocidade do feio” se dá com o surgimento daquele outro antitético sem o qual a arte, segundo o seu próprio conceito, não existe. O feio como o dissonante necessário à beleza é plurívoco, força da liberdade subjetiva perante os temas e a tensão que produz resultados; “o feio deve constituir ou poder constituir um momento da arte. [...]. O aspecto harmonioso do feio erige-se, na arte moderna, em protesto. Daí brota algo de qualitativamente novo” (ADORNO, 1993, p. 60). A dinâmica categoria do feio é tão necessária quanto o seu contrário, a categoria do belo. Se a obra de arte sem aura, sem hic et nuc, não única e não autêntica, é feia, então toda obra de arte na era da reprodutibilidade técnica[231] é feia. “O que aparece como feio é, antes de mais, o que está historicamente envelhecido, o que é rejeitado pela arte a caminho da sua autonomia, o que é em si mesmo mediatizado” (Ibid., p. 61). O motivo da aceitação do feio é antifeudal: “os camponeses tornaram-se capazes de arte”, afirma Adorno (op. cit., p. 63). Depois os poetas, como Rimbaud e Baudelaire, romantizam os “cadáveres desfigurados” e enxotam a beleza. O oprimido, o que está situado abaixo do proletariado e carrega todos os estigmas da degradação servil em seu corpo, deseja, então, a revolução. O Lumpenproletariat[232], a sociedade repleta de “homens trapo”, é a feiura que resiste para continuar vivendo. Lumpen pode significar “vadio”, “vagabundo”, enquanto a derivação Lump é usada com o sentido fortemente pejorativo de “escória”, “mau-caráter”, “trapaceiro”. Na cultura mundial, especialmente no cinema, o “homem trapo” aparece como um andarilho, um vagabundo, um trabalhador desajustado, sujo, feio, mas de boas atitudes e que escarnece da ordem e da moral social. Temos, na arte midiática, a presença de alguns importantes vagabundos que se tornam heróis cômicos: Carlitos, o vagabundo de Charles Chaplin (1889-1977) (The Tramp, cinema mudo americano); Cantinflas, o vagabundo mexicano de Fortino Mario Alfonso Moreno Reyes (1911-1993); e o brasileiro Bonga (1969), que se desdobrou em Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgina Mufumbo[233]. 

 Segundo o documentário “O Mundo Mágico dos Trapalhões” (1981), de Silvio Tendler, Renato Aragão era fã do vagabundo feito por Charles Chaplin. Trouxemos os três elementos mais importantes, visualmente, do picaresco cinema mundial para mostrar que a figura do “homem trapo” é aquele avesso social que reverbera em diferentes momentos culturais e que chega até nosso feio nacional. Didi é a nossa versão tupiniquim/cearense de Carlitos, aquele que faz sempre o tipo humilde e solidário que vence o “jogo contra os poderosos”. Bonga, personagem sozinho, coincide com a imagem do solitário Carlitos, afirma Ramos (2004, p. 143).  Didi é o vagabundo ingênuo e malandro ao mesmo tempo; além de um trickster, um zombador, trapaceiro, transgressor das regras e perturbador do jogo; um elemento do povo que vive na vadiagem, um lumperei (do alemão “vadiagem”). Os mendigos, vagabundos, malandros e caipiras como figuras de humor, são verdadeiros homens trapo, estigmas da pobreza social que imperam no reino do feio. Os vagabundos/vadios são a expressão do sofrimento que ri, do riso que exorciza a angústia e a pobreza, que afetava nossa simpatia por incorporarem nossas indignações e subverterem a ordem do mundo, são nosso “outro antiético” adorniano.

[...]: que aqueles estigmas sejam votados à Mnemósina como imago. A arte deve transformar em seu próprio afazer o que é ostracizado enquanto feio, não já para o integrar, atenuar ou reconciliar com a sua existência pelo humor, [...], mas para, no feio, denunciar o mundo que o cria e reproduz à sua imagem, embora mesmo aí subsista ainda a possibilidade do afirmativo enquanto assentimento à degradação em que facilmente se transforma a simpatia pelos reprovados. [...]. Poderosos valores estéticos são libertos pelo socialmente feio (ADORNO, 1993, p. 63).

O feio é criado no turbilhão da realidade desconcertante, o feio não se escolhe, é algo imposto pelos acontecimentos ao redor, como notamos na anedota narrada por Adorno (2003, p. 408, tradução nossa), na obra Notas sobre Literatura[234], sobre o dia no qual um oficial alemão visita o estúdio de Picasso: “Um oficial das tropas alemãs de ocupação visitou o artista no seu ateliê e, diante do quadro Guernica, perguntou: ‘Você fez isso? ’, e Picasso respondeu: ‘Não, você’”. O feio na arte exprime um grito de horror, acolhendo a deformidade, a desproporcionalidade, a dissonância e a anormalidade como um acontecimento partilhado. Para Adorno (1993, p. 103), há mais prazer na dissonância do que na consonância e “dificilmente se pode pensar a arte a não ser como forma de reação que antecipa o apocalipse”.

Movimentos artísticos da década de 1910 trazem o inferno da alteridade para as telas de pintores e para a literatura. O Cubismo e o Dadaísmo querem confessar sua impotência perante os acontecimentos, os prazeres grosseiros e efêmeros. Com os movimentos artísticos do século XX, o feio torna-se a representação da insatisfação do homem perante o mundo. Durante as guerras mundiais, as ditaduras militares e os movimentos artísticos, algumas imagens do homem como um vagabundo passaram a representar a desdramatização do feio. Carlitos, o vagabundo que usa calças largas, um paletó apertado, um pequeno chapéu-coco, um par de sapatos maiores que o pé e sua bengala de bambu, surge em 1914, período inicial da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) no qual a história sofre graves consequências e as pessoas passam por tempos difíceis. Mesmo com todo avanço científico e tecnológico, o humano vive em sofrimento e aniquilação do ser. Tais avanços servem para aumentar o processo de fragmentação da alteridade. No século XX, a feiura é associada ao grotesco, ao sujo, ao assimétrico, ligada à desarmonia, à abjeção, representando o mau/a maldade e começando a ganhar nova visualidade. O feio e o sujo ligam-se ao ingênuo, ao que carece atenção/observação/cuidado, ao que faz rir; o feio passa a integrar o reino da visibilidade.

Cantinflas é um personagem de feiura (em espanhol, foeditas; “sujeira”, “vergonha”) graciosa, representando um risonho e patético peão de coração nobre, mas que vive na vadiagem. A imagem de Cantinflas é a de um vagabundo mexicano que usa calças puídas, um chapéu pequeno e amassado nos cabelos desgrenhados; uma corda como cinto; possui um bigode fino com os pelos concentrados nas pontas. O ator Mario Moreno vem de uma família pobre e faz sucesso no cinema entre as décadas de 1940 e 1950, período em que ocorre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). A personagem de Mario Moreno tem ares de filósofo, mas que parece não dizer nada importante, tanto que o verbo cantinflear (“falar muito sem querer dizer nada”) é oficialmente incorporado ao vocabulário espanhol em 1992. Já no ambiente brasileiro temos Os Trapalhões Didi, Dedé, Mussum e Zacarias, personagens que fazem sucesso em pleno período militar, entre as décadas de 1960 e 1980 até, aproximadamente, o ano de 1993[235], no episódio final. Todos esses vagabundos aqui citados representaram as mazelas e as feiuras que há em seus países (Estados Unidos, México e Brasil), porém são pobres espertos que resistem aos percalços da vida de forma risonha e benéfica, revelando que nem toda feiura possui desvio de conduta (amoralidade/imoralidade).

 

 

4.2 Humor e feiura em Os Trapalhões

 

 

Depois do circo se consolidar como local para a arte popular [236], o teatro de revista é quem incentiva e divulga a cultura popular. Com origem na cidade do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX, o teatro de revista é uma forma totalmente urbana de fazer teatro, com temas ligados aos fatos mais importantes do Brasil, sempre com deboche e ironia, segundo a escritora Suzana Cristina de S. Ferreira (2003, p. 34).

Na década de 1920, a corrente de pensamento modernista revela outra imagem do país. Um Brasil com nacionalismo despudorado que resgata culturalmente os “papagaios, araras azuis, índios, ladainhas mineiras, mulatas e quitandas da cozinha brasileira, heróis sem caráter, música regional e um certo namoro com o cinema nacional” (FERREIRA, 2003, p. 35). O modernismo[237] está ligado à literatura, às artes plásticas, às artes cênicas e à música, atingindo a sociedade em diferentes graus socioeconômicos. O movimento antropofágico tem um espírito jovem, independente e burlador que toma o “alto canibalismo”[238] como meio de pensar a cultura brasileira a partir da devoração de toda alteridade. Em São Paulo e Rio de Janeiro, nos anos 1920, há uma grande circulação de poetas, músicos, romancistas, pintores e humoristas. No ano de 1922, Mário de Andrade (1893-1945) escreve que pelos sentidos os homens recebem a sensação, vindo, então, a ter necessidade de expressão ou de exteriorizar por meio do gesto, gritos, sons musicais, sons articulados, contrações faciais; seguida da necessidade de comunicação, necessidade de criar comoção; da necessidade de ação em que rememora os gestos, os critica e os reconstrói, terminando na necessidade de prazer que cria Belas Artes. “Mas a beleza é questão de moda na maioria das vezes. As leis do Belo eterno artístico ainda não se descobriram. E a meu ver a beleza não deve ser um fim. A beleza é uma consequência” (ANDRADE, 1960, p. 204). Para o autor modernista o “belo horrível” atua como uma atração sobre certos artistas:

Já raciocinou sobre o chamado “belo horrível”? É pena. O belo horrível é uma escapatória criada pela dimensão da orelha de certos filósofos para justificar a atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas. Não me venham dizer que o artista, reproduzindo o feio, o horrível, faz obra bela. Chamar de belo o que é feio, horrível, só porque está expressado com grandeza, comoção, arte, é desvirtuar ou desconhecer o conceito da beleza. Mas feio = pecado... Atrai. Anita Malfatti falava-me outro dia no encanto sempre novo do feio. Ora Anita Malfatti ainda não leu Emílio Bayard: “O fim lógico dum quadro é ser agradável de ver. Todavia comprazem-se os artistas em exprimir o singular encanto da feiura. O artista sublima tudo” (ANDRADE, 2005, p. 64).

 

No dia 13 de fevereiro de 1922, em uma segunda-feira, na abertura oficial da Semana de Arte Moderna que ocorreu entre os dias 11 e 18 de fevereiro, Graça Aranha inicia a conferência “A emoção estética da Arte Moderna” sobre a exposição presente no saguão do Teatro Municipal de São Paulo. Aranha (1922, p. 268) começa um discurso sobre o conceito de Belo nas artes plásticas e anuncia as inovações a serem vistas e ouvidas, aquilo que o público percebe como “aglomeração de horrores”, criações de “artistas zombeteiros”, mas que é o nascimento da arte no Brasil:

Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários a arte ainda é o Belo. [...]. Da libertação do nosso espírito, sairá a arte vitoriosa. E os primeiros anúncios da nossa esperança são os que oferecemos aqui à vossa curiosidade. São estas pinturas extravagantes, estas esculturas absurdas, esta música alucinada, esta poesia aérea e desarticulada. Maravilhosa aurora! (ARANHA, loc.cit.).

 

Roberto Pontes (2002, p. 22) escreve um artigo comemorativo sobre os oitenta anos da Semana de Arte Moderna de 1922, marco do movimento modernista brasileiro, afirmando que “as pesquisas antropológicas sugeriam aos nossos intelectuais que o feio também podia ser estético e, paradoxalmente, bonito. Essa foi a compreensão surgida a partir do valor dado às máscaras primitivas africanas e asiáticas que infundiam horror a quem as contemplava”.  

Dos anos 1930 até 1960, unindo feiura e riso, predomina no Brasil um tipo de produção cômica que une elementos do teatro de revista, das comédias de costumes, dos músicos de rádio com imagens festivas dos carnavais, brincando com o cotidiano brasileiro – a Chanchada [239]. Piadas de duplo sentido, paródias dos filmes norte-americanos, erotização dos quadros cômicos e mulheres com as pernas de fora atraem um público ávido por uma arte que traduza a vida e as aspirações de cada um. A Companhia Atlântida Cinematográfica[240], responsável pelos filmes da Chanchada e com sede na cidade do Rio de Janeiro, tem a intenção de criar uma experiência cinematográfica brasileira e ao mesmo tempo abordar problemas sociais até então ausentes em nossa cinematografia, afirma Jean Claude Bernadet (1974). Há uma intensa carnavalização nos filmes da Chanchada, no qual o mundo é colocado àss avessas, com pessoas das classes populares, os habitantes de periferias, favelas e subúrbios, promovendo o deboche, a sátira e a paródia, segundo Rosangela de Oliveira Dias (1993, p. 11). Os atores Oscarito[241], Grande Otelo[242], Ankito[243], Zé Trindade[244] e Dercy Gonçalves[245] são alguns nomes das chanchadas.

[...] as chanchadas devolviam-nos o bagaço da cultura colonizadora devidamente mastigada e desnuda, expondo através da sátira e do deboche as mazelas de nossa sociedade. Parodiávamos e debochávamos, sim, de nós mesmos e de uma cultura que nos era imposta por meio de um mercado cinematográfico injusto. [...] no melhor estilo “quem desdenha quer comprar”, caricaturávamos os heróis de Hollywood. Não ficávamos passivos diante do cinema que nos era imposto (DIAS, 1993, p. 10).

 

Os filmes da Chanchada realizam a circularidade entre as culturas popular e erudita, com atores irreverentes, caricatos, maliciosos, populares e jocosos, que atuam de forma improvisada, com o rosto imprimindo caretas e as pernas realizando malabarismo; o corpo representa, atua. A linguagem das chanchadas traz elementos do carnaval, do rádio e do teatro de revista; é a linguagem do dia a dia, a fala do povo, algo que acaba gerando grande empatia no público. Os atores provêm do circo e do teatro de revista. As chanchadas criticam os filmes norte-americanos, nossa mania de usar palavras em inglês, as repartições públicas, a vida cotidiana e as regras sociais; “conseguiram [as chanchadas] ser mais diretas e corrosivas do que muitas outras críticas, além de atingirem um público muito maior do que a imprensa, considerando o analfabetismo do período” (DIAS, 1993, p. 35). As chanchadas mostram musicais carnavalescos como uma mistura de samba, marchinhas e frevo; figurinos folclóricos de roupas regionais de vaqueiros, baianas e malandros cariocas. A figura do malandro é representada de forma alegre, sem conotação pejorativa. Em 1952, Salvyano Cavalcanti de Paiva escreve que a cultura das chanchadas é algo de pouca intelectualidade:

 

Nada de novo no cinema brasileiro. Nada de novo, exceto sexo, misticismo e policialismo, que se traduzem melhor por NUDISMO, MACUMBA E MALANDRAGEM. Nada de novo na forma, nem no conteúdo, nem tampouco no sentido. Estrutura capenga; o progresso foi apenas de técnica; a estética continua na estaca zero. O conteúdo é cada vez mais cosmopolita, cada vez menos brasileiro, nacionalista, típico. O colorido verde-amarelo desaparece diluído, continentalhado, universalhado. . . Pior para os adeptos do cinema nacional. O que pode parecer lá fora senão que somos uma raça de malandros, de cabras da peste, que vivemos de capoeiras com rabos d’arraia, que nossa religião é o baixo espiritismo e os mitos afro-americanos, apenas, e que vivemos aluados com a visão fixa de sexo. [...]. O “cinema nacional” de cavação é um tóxico tão perigoso para a Nação quanto a cachaça, a maconha ou as “aguardentes” importadas da mãe Albion ou do Tio Sam. O próprio malandro perde a sua feição nacional para se tornar um cafajeste afrancesado ou americanalhado (PAIVA, 1952, pp. 10-13; 26).

 

 

Uma forma de representação de um “típico malandro brasileiro” no imaginário coletivo foi o papagaio Zé carioca (Joe Carioca, nos Estados Unidos), criado pelos estúdios Walt Disney no começo da década de 1940. 

O “homem cordial”, de acordo com Sérgio Buarque de Holanda (1995, p. 17), é a nossa contribuição para a civilização. O “brasileiro cordial” é o que age com o coração e não com a razão, o cálculo, a frieza e/ou ritualismo social. O homem cordial brasileiro tem horror à “pompa”. Roberto Gomes (1994, pp. 16-17) enfatiza nosso humor como forma de sabedoria brasileira e como forma de desestruturar qualquer “pomposidade”. Nem em presença da morte temos um teor faustoso, perdemos toda a compostura ao misturar cachaça com velório. É o que acontece com Adoniran Barbosa (1910-1982), em um programa radiofônico conhecido como “Histórias das Malocas” (1955-1968)[246], no qual relata um acontecimento fúnebre aos amigos ouvintes. Adoniran narra o “velório do amigo Dija” [247]velado em cima da mesa, pois não tinha um caixão. Durante o velório, Adoniran percebe que as pessoas ficam relembrando a vida e falando com o próprio morto como se vivo fosse. Depois de muita conversa e choro, Gerarda, a possível viúva, vai dormir e pede a Adoniran que vigie o defunto. Gerarda também pediu que o compositor não bebesse. Todos pegaram no sono, menos Adoniran que observa o amigo e pensa: “já tava cinzento, que preto quando morre fica cinzento”. Adoniran olha o amigo, elogia, abre uma garrafa de pinga, oferece ao defunto e bebe, dando um gole para o defunto e bebendo outro. Ébrio, Adoniran percebe que o amigo está com os pés “xujos de barro”, então leva Dija para lavar os pés no córrego, no entanto, o morto escapa do colo de Adoniram e é levado pela correnteza. O músico começa a gritar para o defunto voltar: “e ele neca de voltar. Tava morto, né?”. Bêbado, o músico dorme na grama, a polícia aparece, pergunta pelo defunto, Adoniran não sabe do paradeiro do morto e é levado preso (ADONIRAN apud MUGNAINI, 2002, pp.62-63). Não é só nos rádios que histórias grotescas e engraçadas acontecem. Os filmes da Chanchada, vistos pelas elites paulistas e cariocas como dita “inferior”, ofereceram aquilo que o público anseia: belas mulheres, paródias, musicais, críticas aos ricos e muita comédia. O trabalho não é valorizado nas chanchadas, pois a melhor forma de se obter riqueza é pela sorte, o acaso e a esperteza. “As chanchadas debochavam de nossa sociedade que valorizava quaisquer símbolos de status até mesmo os falidos, com seus títulos de nobreza”. Em alguns filmes, os pobres viram milionários/nobres (DIAS, 1993, p. 60). Outro tema muito valorizado nos filmes da década de 1950 é o intenso êxodo rural, a ida do campo para a cidade grande. Em 1951, 1953 e 1958, com as secas no nordeste, o caipira, o artista da viola, as moças ingênuas, as famílias pobres vão para a cidade grande para mudar de vida. O imaginário do migrante logo é um tema incorporado pelas chanchadas, no qual a cidade é local sedutor, terra com promessas de empregos e centro destruidor de sonhos.

Durante o século XIX e início do século XX houve um grande fluxo migracional de italianos, japoneses e outras nacionalidades para o Brasil. Tal fato modificou nossa identidade nacional. Vários italianos que foram trabalhar em lavouras de café no interior de São Paulo, logo seriam os descendentes de alguns dos nossos “humoristas e cantores caipiras”. O brasileiro Mazzaropi é uma dos humoristas que é filho de um italiano e uma portuguesa. Não adentramos nas histórias das imigrações que chegaram ao Brasil durante os séculos XIX e XX, pois não é nosso foco de pesquisa. Focamos nos elementos brasileiros ligados ao humor, como o caipira humorista Mazzaropi e o cantor e humorista Adoniran Barbosa, entre outros.

A temática do “homem caipira na cidade” é incorporada por Amácio Mazzaropi (1912-1981) em vários de seus filmes e também na obra fílmica “Macunaíma”[248] (1969), de Joaquim Pedro de Andrade. O filme de Andrade usa a paródia e a antropofagia para mostrar a desorientação das pessoas do campo na cidade, pessoas que caem na prostituição e na vigarice por razões econômicas. No livro Macunaíma – O herói sem nenhum caráter, o personagem principal é descrito vindo do mundo mítico da Selva Amazônica. Caráter? “Brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional”, afirma Mário de Andrade (1988, p. XXXVIII) no prefácio inédito de 1926. Macunaíma não tem caráter, é negro, preguiçoso e feio: “Um brasileiro bem brasileiro”. Obra escrita em seis dias ininterruptos, em dezembro de 1926, por Mário de Andrade (1893-1945), e publicada em 1928. Possui em sua urdidura o nascimento de um herói brasileiro que revela o quão colorida e múltipla é nossa cultura brasileira. Da rede de Macunaíma se ouve sempre o grito: “Ai! Que preguiça!...”. Um herói que tem como virtude andar pela vida sem nunca precisar trabalhar e quando levanta uma vez, se deita imediatamente em cima de três moças num bordel, em São Paulo. Da Selva Amazônica a São Paulo parece que o Brasil é uma entidade homogênea, o interior de uma grande oca.

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. (...). De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: “Ai! Que preguiça!...”. (...). O divertimento dele era decepar cabeça de saúva (ANDRADE, 2016, p. 11).

Figura 54: OTELO, Grande. Frame do filme Macunaíma. 1969. Direção: Joaquim Pedro de Andrade. Filme baseado na obra homônima de Mário de Andrade.

Fonte: Google Imagens (2014)

 

Identificou-se em Macunaíma o riso ligado à dinâmica de resistência, do homem pobre que migra para a cidade. O riso e o humor obscuro – um humor desconcertante que parece ser desrespeitoso, mas é libertador – está por trás da história do inquietante na cultura literária brasileira. “Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e flora geográficas” (ANDRADE, 1988, p. 295).

Influenciados pelo circo, teatro de revista e pela Chanchada, em meio à tamanha agitação cultural do processo de recriação do nacionalismo e efervescência literária brasileira, surgem, no final da década de 1960, os “palhaços de cara limpa”, repletos de “humor simples e popular. Não são bonitos, mas cômicos. Em vez de contar piadas, eles as encenam. A graça do grupo é visual, é direta”. Assim é a apresentação, narrada por Chico Anysio [249], no documentário “O Mundo Mágico dos Trapalhões” (1981), de Silvio Tendler[250]. Nem beleza, nem corpos esculturais, o que observamos quando assistimos Os Trapalhões, na televisão ou no cinema, é a feiura como personagem principal. A nossa mídia descobre muito cedo a necessidade de estimular o grotesco e o deboche no mercado da atenção; o feio e o belo com suas zonas de diálogos, incertezas e trocas, impregnados em nosso imaginário nacional. Um quarteto cômico no qual cada integrante possui um diferente perfil biográfico, com integrantes unidos pela beleza presente na empatia, nos desfechos felizes das representações e na ilusão de que a malandragem do desvalido vence qualquer problema cotidiano. Aceitar o feio é aceitar que o mundo é falho e cheio de tipos pobres, desamparados e esquecidos pelo sistema. Nosso feio resiste e usa o “jeitinho brasileiro” como arma de embate. Para a filósofa Marilena Chauí (1987, p. 63), nossa cordialidade, nosso jeitinho, é uma forma de “resistência”. Não confrontar, não radicalizar, não é puramente uma forma de aceitar o que é imposto. Antes é dar um jeito de sobreviver, aceitando. É a resistência que cria o “jeito”. A maneira de resistir é “um jeito que tem humor”, ironia e aparência de aceitação, segundo Hélcion Ribeiro (1994, p. 98). O brasileiro como um povo persistente/resistente; somos malandros, misturamos “jeito” com “malandragem”.

A mídia brasileira usa o imaginário do feio como forma de humor, deboche, resistência e experiência lúdica para representar o povo brasileiro. “Como se vê, o reino do feio é tão grande como o reino dos fenômenos sensíveis em geral” (ROSENKRANZ, 1992, p. 79, tradução nossa) [251]. E do reino imaginário midiático da feiura temos a união de Didi, um cearense do município de Sobral; Dedé, um descendente de ciganos de família circense nascido em Niterói, município do Rio de Janeiro; Mussum, um flamenguista mangueirense da zona norte do Rio de Janeiro; e Zacarias, um comediante radiofônico do município mineiro de Sete Lagoas. De tal união nasceu o grupo marco do humorismo brasileiro – Os Trapalhões. Quatro personagens-tipo que revelaram condutas características da sociedade da época em que atuam (1969-1993). Sobre o personagem-tipo, Sylvia H. T. A. Leite explica, em Chapéus De Palha, Panamás, Plumas, Cartolas: A Caricatura na Literatura Paulista, 1900-1920:

O personagem-tipo tem feição mais genérica e amena, (...) tende ao coletivo, se presta a construções cômicas menos incisivas, provocadoras do riso cordial ou de humor, (...). O tipo é desvio tolerável, se enquadra no eixo das semelhanças, pode realizar a conciliação entre o universal e o particular (LEITE, 1996, pp. 34-35).

 

Os quatros trapalhões conseguem expor ao ridículo o mundo castrense [252] em plena ditadura militar no Brasil (1964-1985) ao utilizar roupas militares e um cenário que alude a um quartel militar. Ao revelar que ingênuo é o homem da cidade grande, da capital, e não o caipira, nem o morador do morro ou o retirante, Os Trapalhões ganham a simpatia do público brasileiro. São quatro palhaços que fazem um humor originário da rua, do bairro, da vizinhança no qual cada brasileiro convive ou conviveu um dia. Para Nanci Freitas, os cômicos se ligam ao público pelas referências culturais que trazem, é um processo de empatia com o povo na medida em que riem do sofrimento cotidiano. O que se vê é a proliferação de tipos cômicos reconhecíveis pelo público como parte de um acervo comum de referências culturais. “A caricatura aparece como forma de sátira social e política na alusão a personalidades da vida pública” (FREITAS, 2015, p. 121). Através da sátira, o grupo exacerba os defeitos da sociedade erudita brasileira, provocando o riso e manifestando certas forças anárquicas, pois inverte as hierarquias militares e sociais.

 

 

4.2.1 Os quatro cordiais da comédia nacional

 

 

Didi, personagem de Antônio Renato Aragão (1935)[253], é o migrante nordestino que vem ao Sudeste para obter uma vida melhor longe da fome e da seca. Aragão faz diferentes personagens na televisão e no cinema, mas seu personagem predileto e recorrente é o Didi, sujeito humilde que não se deixa humilhar, um verdadeiro “homem cordial” (do latim cor, cordis, coração, com o sufixo al, de coração) brasileiro. Somos um povo pleno de ludicidade; nossa esperança, fantasia e utopia, nos levam à poesia, ao amor e, finalmente, à festa e, por consequência, ao riso. Além de Didi, Renato pode ser Bonga (O Vagabundo)[254], Cinderelo e Zé Galinha; tipos que não possuem trabalho fixo e vivem na vadiagem; personagens que  simulam certa tolice para camuflar a esperteza e ludibriar o oponente. Porém, Didi e os outros tipos têm um ponto fraco – a injustiça. Apesar do sobrenome Mocó[255], Didi é o sujeito que não se esconde perante as intempéries da vida, é alguém pobre que se comove com a fome do mais fraco e ajuda o próximo. O nome “Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgino Mufumbo” é sinônimo de gargalhada, de panaceia para todas as classes econômicas e faixas etárias.

O segundo trapalhão a integrar a trupe é Manfried Sant’Anna [256] (1936), mais conhecido como Dedé Santana, vindo da cidade de Niterói, região metropolitana carioca. Dedé é “o malandro carioca que sobrevive de pequenos subterfúgios, enganando muitas vezes os próprios companheiros na busca de lucros pessoais, mas sem lhes trazer realmente grandes prejuízos”, afirma Gêisa Fernandes D’Oliveira e Waldomiro Vergueiro (2011, p. 126).  O jogo de cintura, a valentia, a lábia, o golpe no otário, o deboche, a jogatina eram as armas do malandro, que tem como característica a simpatia, ao menos nas apresentações. O malandro é, durante algum tempo, apresentado como expressão do comportamento brasileiro, é a própria imagem do homem nacional. O “típico malandro” é o sujeito que deve “se virar na vida” sem fazer força. Dedé cresce no circo, é filho do palhaço Picolino e da contorcionista Ondina Santana. Considerado ator “escada”[257], um ator secundário que preparava a cena para o ator principal, é discípulo de Didi, age preparando a graça para a atuação dos parceiros. Santana sabe como fazer piruetas, cambalhotas e brigas coreografadas. Dedé faz vinte tipos no circo: caipiras, velhinhos, bêbados, mulheres, entre outros. Sua versatilidade em criar facetas o faz migrar para a televisão brasileira.

Eu fiz de tudo no circo: fiz barra, trapézio, globo da morte, fui palhaço de matinê. Sempre como Dedé. O apelido nasceu porque meu irmão pequeno, no berço, me via e chamava: Dedé! E ficou. Hoje, se me chamam pelo nome, acho que estão me xingando![258]

 

Juntamente com o irmão mais novo, Ondino Santana (1940-2010), Dedé protagoniza o programa “Maloca e Bonitão” (1965), programa humorístico da extinta TV Tupi[259]. Dentro de vários quadros em Os Trapalhões, Dedé afirma ser o mais galã do quarteto, algo que traz de o “Bonitão”, personagem que usava terno claro, sambava e tocava pandeiro. Um malandro que vende perfumes “importados” e loções que deixam, inicialmente, as mulheres bonitas e depois, carecas. Para Gláucia Buratto Rodigues de Mello (2000, p. 23), na obra Memória e Construções de Identidades, o malandro não deve ser entendido como um “traço característico da nossa personalidade cínica ou desonesta. Trata-se mais de uma solução criativa de sobrevivência num país extremamente dividido por fortes desigualdades econômicas, civis e sociais”. Bonitão ou Dedé representam a malandragem que vive do “jeitinho brasileiro” para sobreviver no cotidiano brasileiro, é o sujeito que nega a ordem social realizando ativiades temporárias e de ética duvidosa, atuando na arte de sobreviver em situações difíceis.

Antonio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994), ou simplesmente Mussum, também é carioca, mas personifica a comunidade negra da zona norte do Rio de Janeiro no quarteto cômico. Um cômico que sabe cantar, dançar, sambar, falar, rir e enfezar-se em programa televisivo [260].

Um dos quadros do humorístico Bairro Feliz (1965-1966, Globo) trazia uma escola de samba onde Grande Otelo era acompanhado pelo grupo Originais do Samba. Um dos integrantes do grupo era o cabo da Aeronáutica Antonio Carlos Bernardes Gomes, que atuava no programa sem que seus superiores soubessem. Por esse motivo, mantinha-se escondido o máximo possível nas cenas. No entanto, em uma das cenas do humorístico – feito ao vivo –, Grande Otelo havia deixado cair um livro onde dentro estava o script. O sambista/cabo – escondido neste momento – não conteve o riso. Otelo virou para ele e disse: “Tá rindo de quê, ô muçum?”. Muçum é o nome de uma enguia (tipo de peixe muito comum nos rios sul-americanos e, muitas vezes, confundido com uma cobra) preta, sem escamas, uma alusão que Otelo fez à cor do sambista. Conta-se que o sambista ficou irritado durante semanas com o apelido, mas logo o adotou como nome artístico, apenas trocando o cedilha por dois “s” ficando Mussum[261].

Mussum, como o peixe homônimo, é escorregadio e consegue facilmente sair de situações estranhas nos quadros em que atua. Muito ligado ao quintal de Dona Neuma (1922-2000)[262] da Estação Primeira de Mangueira, representa “o molejo carioca, a ginga do ritmista a alegria e improvisação do sambista de asfalto” (1981, Silvio Tendler). Descendo o morro, já na avenida, é conhecido como Carlinho da São Francisco. Toca reco-reco e pandeiro no grupo “Originais do Samba”, anteriormente “Sambistas Modernos”. Em 1969, é convidado para integrar Os Trapalhões, mas recusa. Porém, em 1972, quando é convidado por Dedé Santana, passa a integrar a trupe.

Dentre os estereótipos que compõem o personagem, destacam-se a ligação com a música popular e com a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, o gosto pela cachaça e a maneira peculiar de se comunicar, repleta de gírias e expressões próprias (FERNANDES; VERGUEIRO, 2011, p. 126).

Afeiçoado às bebidas alcoólicas, o “mé”, e finalizando as palavras que pronuncia com “is” ou “évis”, por exemplo, Cacilda é “Cacildis”, os sinônimos para “bunda” são “forévis”; “poupança” / “poupancis”, Mussum conquista o público brasileiro mesmo depois da morte. Como único personagem fixo afrodescendente da trupe, é um dos poucos negros que fazem sucesso no Brasil nas décadas de 1970 e 1980. Mussum torna-se célebre por expressões que satirizam sua condição de negro: “negão é o teu passádis”, “quero morrer prêtis se eu estiver mentindo”, “macaco é tua mãe”, além de recorrentes piadas sobre bebidas alcoólicas. Popularizou frases para seu personagem, um sambista que não gosta de trabalhar: “eu vou-me pirulitazis/pirulitar”, quando foge de uma situação perigosa; “traz mais uma ampola” ao pedir cerveja em episódio no qual “arma uma pindureta”– beber e pagar em outra oportunidade, fazer fiado; ou “casa, comida, três milhão por mês, fora o bafo!”, quando quer elogiar uma mulher bonita. Segundo Roberto DaMatta, em Ensaios de antropologia estrutural, o malandro aprendia o que precisava na escola da vida e de samba:

É na chamada “escola da vida” e na “escola de samba” (um equivalente simbólico da própria existência) que o malandro aprende o que se chama significativamente no Brasil de “arte da malandragem”. A “malandragem” é, portanto, definida positivamente, assumindo a expressão – na maioria dos contextos em que é empregada – uma tonalidade de elogio, admiração e inveja. Ela revela, acima de tudo, a sabedoria de quem utiliza o sistema para seu próprio benefício, não sendo nunca uma “vítima das circunstâncias”, como acontece com os Pierrot e os palhaços... Estando a um passo da marginalidade e a outro da estrutura, o malandro é o paradigma do tipo brasileiro do homem que é capaz de “vencer sem fazer força”. É o tipo que permanece “na sombra e na água fresca” (DAMATTA, 1973, p. 154).

 

Mauro Faccio Gonçalves (1934- 1990), o trapalhão conhecido como Zacarias, é o último a se unir ao grupo. “Zacarias” [263] era o nome do galo que Didi possuía, afirma Ana Maria Bahiana (2006, p.187). O quarto trapalhão é a personificação da “inocência infantil que contrastava com o jeito másculo e malandro dos três companheiros” (FERNANDES; VERGUEIRO, 2011, p.127). Sua risada inconfundível, sua peruca que sempre cai, ou é retirada por outro trapalhão e os dentes pintados de tinta crayon fazem enorme sucesso entre as crianças. Mauro é ator de radionovelas em Minas Gerais, mas no final dos anos 1970, ansiando mais espaço artístico, vai para a TV Tupi e em 1974 é convidado por Renato Aragão para integrar Os Trapalhões. Zacarias é a personificação do caipira, da criança ingênua. Para André Carrico, em Os Trapalhões no Reino da Academia: Revista, Rádio e Circo na poética trapalhônica, os quatro comediantes representam as pessoas à margem da sociedade:

 [...], deslocados sociais e reflexos das identidades errantes e multifárias de seu grande público. Sem lugar, sem emprego, desamados, ultrajados, explorados, sem destino: personagens geralmente alijados das narrativas televisivas. Marginais por força da natureza, eles não têm nada a perder. Ingênuos, às vezes, atrapalhados e imperitos nas artes da vida social, eles são, por outro lado, irascíveis e corajosos, sempre prontos a revidar quando provocados. Vítimas do desmazelo da organização pública brasileira, [...] (CARRICO, 2013, p. 29).

 

Os trapalhões é o programa humorístico de maior longevidade na história da televisão mundial, com esquetes[264] repletos de humor e deboche. No momento que Os Trapalhões começam as apresentações no Brasil, as antenas de rádio e televisão ligam os homens e as crianças ao sonho e à fuga, enquanto o riso amplia os espaços angustiantes das quitinetes e dos barracos. Didi, Dedé, Mussum e Zacarias vencem as atribulações cotidianas com alegria e jocosidade. Driblam as regras do jogo no qual cada um age por si e todos agem contra a norma estabelecida. O quarteto cômico mostra qual a posição do humor no equilíbrio das relações humanas – debochar dos acontecimentos cotidianos, da lei e da ordem estabelecida. O humor debochado produziu uma simpatia imediata pelos personagens que riem de si mesmo, riem da própria penúria.

Figura 55: Os Trapalhões (Zacarias, Didi, Dedé e Mussum).

Fonte: Google Imagens (2016)

 

 

 

4.3 Deboche, riso e escárnio na feiura nacional

 

Deboche vem ligado à falta de prezar, ao respeito, ao apreço, à consideração; é desprezo. Deboche e debochado são termos oriundos do francês debauche/debauché para: devassidão, licenciosidade, dissolução, demasias e libertinagem; o debochador é devasso, licencioso, dissoluto, estragado, perdido, solto nos vícios. No Brasil adquire ainda o significado de zombaria explícita. Na literatura de Jorge Amado (1912-2001), em Tocaia Grande: a face obscura (2008), há uma cabocla que abusa do pretenso noivo, o engabelando e expondo-o ao riso e ao deboche. Já em outra parte da obra de Amado (2008, p. 266), Dona Ernestina não quer se lembrar “dos deboches de cama” que se entregara com o marido. No trecho “A Cidadela do Pecado”, frei Zygmunt Von Gottershammer, um homem magro e seco, de ar ascético, com dedo em riste, exprobatório, a boca de anatema e condenação – “Gotteshammer, ou seja, o Martelo de Deus – ao chegar à “Tocaia Grande”, um lugarejo que “significava Sodoma e Gomorra reunidas na danação dos sete pecados capitais”, vê o sanfoneiro Pedro Cigano como um diabo debochador:

Apesar disso, frei Zygmunt, ao avistá-lo atento às palavras candentes do sermão, na primeira fila dos devotos, sentia as tripas se revolverem nas fanáticas entranhas: via a figura de Satanás, em carne e osso, o riso de deboche no rosto alvar. (AMADO, 2008, p. 436).

 O deboche ligado ao carnal e ao profano na obra de Jorge Amado. Já na obra O Turbilhão, de Henrique Maximiano Coelho Neto (1864-1934), o deboche é colocado como um momento de sinceridade: “Pois sim. Todos vocês são uns santos, eu é que sou o debochado, porque conto o que faço” (NETO, 1904, s.p.). Ainda ligado ao carnal, ao sexo e à cruealdade, o deboche está na obra A Filosofia na Alcova, em que o Marquês de Sade (1740-1814) afirma que “o outro, o ser lesado pouco importa. Ou só importa na medida em que é utilizado como ‘objeto de deboche’”, como vítimas dos libertinos (SADE, 2008, p. 240). Sade narra a estória dos ensinamentos sexuais de Madame de Saint-Ange, uma mulher libertina de 26 anos de idade que convida a virgem Eugênia, de 15 anos, para um curso de dois dias sobre como ser libertino. Madame de Saint-Ange, seu irmão de 20 anos de idade, Chevalier de Mirval, e Dolmancé, um ateu bissexual de 36 anos de idade, narram sobre o calvário de “educar” Eugénie, uma personagem contrária a tanta libertinagem, filha de Mistival, uma provincial mãe hipócrita. Em um trecho da educação sexual de Eugénie, Dolmancé aconselha a jovem a ostentar o deboche e a libertinagem. “Bancai a puta, mostrai os seios” (SADE, 2008, p. 78). O deboche ligado à prostituição está presente na obra Da prostituição na cidade de Lisboa ou Considerações históricas, hygienicas, e administrativas em geral sobre as Prostitutas, e em especial na referida cidade: com a exposição da legislação portugueza a seo respeito, e proposta de medidas regulamentares, necessárias para a manutenção da Saúde Pública e da Moral (1841), de Francisco Ignácio dos Santos Cruz [265]. Na antiga Grécia, Sólon, o reformador das leis de Atenas, atribuiu estabelecimento regular dos “lugares de deboche”. Sólon, para diminuir o deboche desefreado pela cidade, organizou e concentrou a prostituição ao abrir covis ao deboche, chocando os costumes atenienses para torná-los melhores, afirma Cruz (1841, pp. 24-25). Em Roma, com escravas-cortesãs, os deboches públicos não chocavam os costumes, mas destes faziam parte. Os teatros se tornaram lugar de maior impudência e deboche. “Os lugares em que as mulheres exerciam seu infame comércio, ficavam nos bairros mais retirados da cidade, próximos aos muros, ao pé do circo, do Stadium e dos teatros”; estes lugares de deboche eram chamados de Lupanaria – etimologia ligada à fábula do aleitamento de Rômulo e Remo por uma loba – Lupa (Accia Laurentia/Acca Larentia/Aca Larência), palavra que coloquialmente foi ligada às cortesãs que usavam togas até os joelhos e sapatos vermelhos[266]. No dicionário de Dicionário de mitologia grega e romana, de Mário da Gama Kury, Aca Larência é descrita como:

Uma prostituta romana que teria vivido nos primeiros tempos da cidade e enriqueceu com a profissão graças aos conselhos de Hércules. Aca Larência teve dez filhos, e além deles amamentou Rômulo e Remo; ao morrer ela legou suas extensas propriedades ao povo romano. Seu cognome era Lupa, dado frequentemente na época às prostitutas (os prostíbulos chamavam-se também “lupanares”), e dessa circunstância parece ter surgido a lenda de que Rômulo e Remo foram amamentados por uma loba (KURY, 2008, pp. 11-12).

Os lupanares eram câmaras ou células com abóbadas, ordinariamente construídas debaixo da terra, locais “impudicos e nojentos covis” em que vinham as cortesãs entregar-se a todo o gênero de devassidão e de deboche. Tais “mulheres públicas” incitavam o deboche lançando-se nos braços do primeiro que lhes aparecia, como não havia o necessário conhecimento do estado sanitário desse indivíduo, facilmente contraiam uma moléstia venérea, quando a não tivessem, algo, aliás, bem raro. Segundo Cruz (1841, p. 115), as “prostitutas velhas”, entre 25 e 30 anos, eram deboches contra a natureza.

O deboche na arte pode ser encontrado na obra O pai do futurismo no país do futuro: as viagens de Marinetti ao Brasil em 1926 e 1936, de Orlando de Barros. Podemos observar que na quarta parte da obra, intitulada “Poética do Deboche”, os jovens brasileiros estão indignados com Fillipo Marinetti[267], o incitador do Futurismo[268].  No dia 16 de maio de 1926, a coluna “Sim e Não” do Jornal A Manhã, em meio a um artigo que descreve a primeira conferência de Marinetti no Rio, estampa os seguintes versos debochados: Maria Maria/Maria Marinetti/ Teu pai é gigolô? Tua mãe é gigolette/ Maria Maria/ Maria Marinetti/ Teu pai joga com a dama/Tua mãe só com valete (BARROS, 2010, p. 256).

Na música, o deboche surge como um ritmo sensual, segundo Barbara Browning, na obra Samba: Resistance in Motion. A autora apresenta a figura de Luiz Caldas como o inventor do ritmo que mistura o pop com reggae, toques caribenhos, ijexá [269], frevo e samba, elementos presentes num ritmo que ganhou o cognome de “Deboche” e/ou “Fricote”, forma musical que evoluiu para outros tantos ritmos lançados no carnaval baiano, consolidando-se no popular estilo, atualmente denominado Axé Music[270]. Deboche é uma dança provocativa descrita como uma celebração estritamente sensual, que demanda movimento (BROWNING, 1995).

Sobre o ato de debochar, torna-se necessário, aqui, uma explicação histórico-cultural para entender um elemento da cultura brasileira do feio – o deboche. Em português, “deboche” significa “devassidão, libertinagem”, especializando-se mais recentemente em “zombaria”. No Brasil adquire ainda o significado de zombaria explícita, impetuosa, com grande desregramento e excesso. As formas de deboche praticadas pelos nossos comediantes são: 1) Zombaria, palavra variação do Espanhol zumbar, que é também um som imitativo, neste caso do ruído feito por abelhas e vespas (zum). Passa a designar, também, o ruído de açoites, chibatas e chicotes em animais, escravos e homens livres, especialmente crianças, sob a desculpa de que mesmo cruel, o castigo é recurso pedagógico. Cristo foi o açoitado mais famoso da história humana. Zombar deu origem a expressões “bancar o Cristo”, ser vítima; “pegar alguém para Cristo”, ser algoz. Domingos Vieira (1873, p. 157) cita, em Grande diccionario Portuguez, que a palavra “cavillar” (do latim cavillare) é uma forma de enganar com boa aparência, ou zombar; 2) Chacota, sugere-se que tenha origem onomatopáica, imitando o entrechocar das castanholas ou do riso exagerado. Cantiga vilanesca que os rústicos cantavam em coro ou solo (VIEIRA, 1873, p. 186). Antiga canção popular, trovas satíricas, antiga dança, acompanhada de canto (do castelhano chacota); 3) Zorra, do espanhol zorra, raposa, sinônimo de bagunça, é provável que tenha se originado no espalhafato que fazem as aves reclusas quando a raposa entra no galinheiro. Segundo Deonísio da Silva (2002, p. 473), na década de 1970, os cocainômanos passam a misturar sulfato à droga para duplicar a dose, dando o nome de zorra a nova mistura, o que resulta em euforia ainda maior aos internos. Sinônimo de confusão; 4) Gozação (do latim gaudere, alegrar-se),  um derivado deste verbo de pouco uso atualmente é gáudio, “regozijo, ato de rejubilar”; 5) Gracejo (do latim gratia),  vem de graça, “gracejar”, “agradecimento”, “favor”, “beleza”, tendo assumido também o sentido de “brincadeira, diversão, ato humorístico”; 6) Debique, pouco usada atualmente, tem o significado de “fazer ironia de, zombar”, segundo Francisco da Silva Borba (2004, p. 376).Vem de de-, “fora”, mais bico, do latim beccus, “bico de ave”, debicador; 7) Derrisão é uma palavra pouquíssimo usada no Brasil atual, embora não seja rara em Inglês, como derision. Vem do Francês dérision, “zombaria, escárnio”, do latim deridere, formado por de- mais ridere, “rir”. É o riso de desprezo e escárnio; 8) Escárnio, de “escarnir”, sinônimo de “escarnecer”, do Germânico skirnjan, “zombaria, desprezo”. Escarnecedor é o que faz escárnio, zombaria pesada, é o debochador, segundo Altair J. Aranha (2002, p. 132); 9) Dichote, do Espanhol dichote, “dito espirituoso, deboche”, de dicho, “dito”, particípio passado de decir, do latim dicere, “dizer”. Dictério (do grego deiktérion, do latim dicteriu) é troça, zombaria, motejo, escárnio, chufa, dichote. Gracejos ofensivos ou depreciativos; e 10) Moquer, do francês “fazer pouco caso”. No Espanhol há mueca, “careta”. Em História do Riso e do Escárnio, obra de Georges Minois (2000, p. 30), deboche é palavra recorrente e ligada ao riso festivo, aos festejos: “O deboche, a agitação, os gritos, as danças são acompanhados de desordem verbal”. “Os discursos dos tolos provocam zanga e seu riso é um deboche culpado” (MINOIS, 2000, p. 119). No texto “Questões de Bartolomeu”, aproximadamente escrito no século II, Satã explica a Bartolomeu[271] que “usa o riso como anzol para iludir os homens. [...] o riso, a calúnia, a hipocrisia, os prazeres, o deboche” são delícias variadas que adoçam a alma de homens pecadores (Ibid., p.126).

No Brasil há uma “naturalização da feiura”. Considerado a sombra do belo, o feio (to aiscron) já foi ligado na história da estética à imagem do que era vergonhoso, mas hoje, ao que parece, não é vergonhoso e não é matéria inerte. O imaginário do feio tem a “potência ativa, perigosa, agressiva e em fermentação contínua”. Era da natureza “camaleônica do devir” (BODEI, 2005, p. 148).

Nas novelas, o sotaque “carregado” e as atitudes marginais foram recorrentes. Temos como personagens de sucesso a Dona Redonda (Figuras 56-57), a mulher gorda que explode de tanto comer; Odete Roitman (Beatriz Segall) ícone dos discursos que agridem a “cultura inferior” nas telenovelas. Também temos elementos que atuam em nossa debochada mídia, como o vigor sexual dos seminus dos realities shows; o rir da cara do primo pobre, do porteiro, da doméstica e de Dercy Gonçalves (Figura 58) que, centenária, ainda recorria a palavrões como “algo naturalmente nosso”. Imagens feitas para causar o riso, para fazer o povo rir. Segundo Maria Thereza Negrão de Mello (2012, p. 251), somos capazes de rir, rir de nós mesmos “e do outro, rir com o outro e fazer humor, esse gesto multiforme e ambivalente”. Rir até do outro que explode de tanto comer.

       Percebemos a valorização dos quadros dentro dos programas televisivos que favorecem a mudança de fisionomia. Certamente que o crescimento da audiência do programa “Pânico na TV” [272] está associado ao fato de sua “graça” vir da “desgraça” alheia. O domínio do risível no país é algo consolidado e este domínio faz parte da história do feio, isto é, uma feiura que não inspira nem dó nem piedade. O Pânico “repaginou” a paulistana Gorete (Figura 59) mais conhecida como Paula Veludo, exacerbando uma característica atual da TV brasileira em explorar as modificações corporais, como exercício sádico do tema. Para Gorete, vale a frase: “eu não era feia, era pobre!” [273].

 

 

O feio fez parte do fait divers. Na televisão brasileira, José Abelardo Barbosa de Medeiros (1917-1988), autor das frases: “Na televisão, nada se cria, tudo se copia”[274] e “Quem não se comunica, se trumbica”. O “velho guerreiro” critica a falta de originalidade na tevelisão nacional:

Na TV ninguém consegue ser original mais de sete dias. Para mim, a solução é a diversificação, cada um tentando criar seu estilo próprio, em busca constante de renovação. As estações de menos audiência não devem ficar perseguindo o sucesso da líder, mas sim criar suas próprias faixas. Mas ninguém quer arriscar  (CHACRINHA apud MONTEIRO; NASSIFE, 2014, p. 177).

 

Em 1956, Abelardo Barbosa estreia na televisão com o programa “Rancho Alegre” (1950-1954)[275], na extinta Rede Tupi (1950-1980), na qual começa a fazer também a “Discoteca do Chacrinha”. Em seguida vai para a TV Rio e em 1968 é contratado pela Rede Globo até 1972.  Faz dois programas semanais: “Buzina do Chacrinha”, no qual apresenta calouros; e “Discoteca do Chacrinha”. Cinco anos depois volta para a Tupi. Em 1978 transfere-se para a TV Bandeirantes e em 1982 retorna à Globo com o “Cassino do Chacrinha” (1982-1988), que faz grande sucesso nas tardes de sábado. Chacrinha joga bacalhau plastificado para a plateia, dá abacaxi para os calouros que cantam mal e manda os cantores com alguma capacidade vocal para o trono. O “Cassino do Chacrinha” é o império do cômico e do grotesco: bacalhau; abacaxi; buzina tocando insistentemente; candidatos cantando fora do tom; mulheres dançando seminuas; concurso para eleger o homem mais feio do Brasil; roupas com lantejoulas ou lurex; e cartolas com plumas, é o que temos na televisão a partir de 1972, quando a TV brasileira começa a buscar as classes populares. Ao mesmo tempo e seguindo o mesmo formato, temos o Clube do Bolinha (1974-1994), apresentado por Édson Cury (1936-1998), mais conhecido como Bolinha. O programa revela muitos talentos da música brasileira e tem apresentações de cantores/cantoras, dançarinas e transformistas dublando cantoras. Se Chacrinha tem as ajudantes de palco chamadas de chacretes, Bolinha tem as boletes.

 

Em 2011, ainda temos programas do mesmo estilo “graça da desgraça”: Programa do Ratinho, Gugu Liberato, Faustão. Talvez algo tenha mudado na mídia brasileira em relação à feiura, mas, ao que parece, a essência é a mesma – o feio é o “meio” entre o belo e o cômico. “O grotesco pode tornar-se de fato uma radiografia inquietante, surpreendente, às vezes risonha do real. O grotesco é quase sempre o resultado de um conflito entre cultura e corporalidade” (SODRÉ; PAIVA, 2002, p. 60).

No cinema brasileiro vemos os anti-heróis em cena: o pobre, a prostituta, o bandido, os malandros, as putas, os homossexuais e a transexual Roberta Close. São igualmente paradigmáticas as belezas de Iracema, Iemanjá e a musa de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, celebrada na antológica música-símbolo da bossa nova, Garota de Ipanema. Porém não menos inquietante é o rosto de Roberta Close – um pecado de dois sexos – que agita a televisão brasileira nos idos de 1980 e é exaltada pela música Close, de Erasmo Carlos: “Uma pinta nos lábios carnudos e um par de seios fartos e desnudos. Não fosse o gogó e os pés (...)”. A música, aliás, é sucesso estrondoso nas rádios e a modelo que encanta uma geração de admiradores, não para de ser notícia nas revistas e programas de televisão da época. Roberta Close é o codinome da jovem modelo carioca e transexual que teve como nome de batismo Luiz Roberto Gambine[276]. “Roberta Close: Um pecado de 2 sexos” (1984) foi manchete no Notícias Populares, jornal da empresa Folha da Manhã que circulou entre 1963 e 2001, em São Paulo (CAMPOS R; LIMA; LEPIANI; MOREIRA, 2002, p. 132-133).

 Um personagem híbrido (amphibium) como “produto do cruzamento de dois elementos de gênero e de espécies diferentes” (LAPLANTINE; NOUSS, 1997 apud CATTANI, 2007, p. 26). Roberta Close é o feminino no masculino ou masculino no feminino mais famoso do Brasil durante os anos 80. Tanto que o cineasta francês Philippe Clair (1930) fica fascinado com a beleza de Roberta e resolveu convidar a moça para seu filme “No Rio vale tudo” (Si Tu Vas à Rio... Tu Meurs, 1987). Clair relata no documentário “Olhar Estrangeiro” (2006), da cineasta brasileira Lúcia Murat (1949), que sempre sonhou em vir ao Brasil, pois “ouvia dizer que tinha as mulheres mais belas do mundo”. Em “No Rio vale tudo”, Clair escreve a estória/roteiro de dois irmãos gêmeos, um traficante e outro padre, que viajam para o Brasil ao mesmo tempo. O padre tenta fugir do “mal”, do pecado, mas para todos os lados que olha apenas vê mulheres nuas. O traficante veio vender cocaína. “Rio, prazer total!”, afirma Clair para Murat. Para mostrar no filme que a bela Roberta era um homem, o cineasta francês coloca a atriz em um banheiro e a filma encenando urinar em pé. A imagem de Roberta Close produziu um misto de riso e fascínio por uma beleza que se construiria sob a égide do híbrido e do mitificado no limite do grotesco ou incomum.

Roberta Close era a presença do diferente autêntico, algo novo na televisão brasileira, mas não na sociedade. A simples troca de roupas entre homens e mulheres é um elemento estranho. Minois afirma que na Grécia antiga havia a festa da troca de roupas entre rapazes e moças, era um acontecimento significativo conhecido como hybristika (de hybris; descomedimento). “Ora, a hybris representa um atentado contra a ordem cósmica e social, o excesso que passa da medida” (MINOIS, 2003, p. 31). A troca de roupas era um modo de ser outro por algum tempo para se conhecer melhor, era a mistura da ilusão, do erotismo, do obsceno, do belo e do feio em uma transgressão combinada a uma estética de rompimento com a ordem da natureza que refuta o insólito. Os críticos da imagem que Roberta Close passa – “a mulher mais bonita do Brasil é homem” – dizem que a modelo não presta para estar na mídia brasileira. O que “não presta” tem valor estético no Brasil e, para Clarice Lispector (1964, p. 127), “o que não presta também presta”. A escritora diz se interessar pelo que não presta e possuir certo carinho pelo grotesco e pelo incomum. Clarice afirma gostar “de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão” (LISPECTOR, loc. cit). A escritora, em Água Viva, afirma que “a feiura é seu estandarte de guerra”, pois a autora ama “o feio com um amor de igual para igual”, pois o que há de bárbaro nela, procura o bárbaro cruel fora dela (LISPECTOR, 1973, p. 40). Assumir o feio, abraçar a feiura e procurar o grotesco é afirmar-se em sua própria identidade e em nossa alteridade. O Brasil participa do que é uma constante nos últimos dois séculos, a erosão dos ideais clássicos de beleza. O feio assume o papel de protagonista.

O saber cultural se apoia na engenhosidade do imaginário. Nosso espírito lúdico aparece em nossos gestos particulares, nosso lado festivo, nosso jeitinho e na sensualidade. Porém, não somos apenas um povo festivo. Somos, também, um povo triste, melancólico, com certo “complexo de vira-lata”, com “cortejo de agitações, lamúrias e convulsões violentas” (PRADO, 1981, p. 93). Sobre o nosso “complexo de vira-lata”, o escritor Nelson Rodrigues explica que “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo” nos atrapalha. “Dizer que nós nos julgamos ‘os maiores’ é uma cínica inverdade” (RODRIGUES, 1993, p.61)[277]. Denise Gimenez Ramos e Pericles Machado Júnior afirmam que supervalorizamos o que é estrangeiro e por isso temos um forte sentimento de inferioridade.

No Brasil, o complexo cultural mais evidente é o sentimento de inferioridade, visível especialmente nas relações dos brasileiros com países do exterior. A supervalorização do que é estrangeiro em detrimento do produto nacional, atitudes autodepreciativas presentes em piadas e na falta de valorização de tudo que é nativo têm contribuído em grande parte para a tolerância com corrupção, quebra de lei, favoritismos e outros comportamentos espúrios de, principalmente, figuras de autoridade. Somente a consciência desse complexo, cuja raiz remonta à época do descobrimento e da escravidão, possibilitará a recuperação da autoestima, dando a real dimensão do valor da identidade brasileira (RAMOS; MACHADO JR., 2009, p. 49).

Vacilamos entre o pessimismo mais ignorante e nossa esperança mais desvairada. No Brasil, “o véu da tristeza se estende por todo o país, em todas as latitudes, apesar do esplendor da Natureza” (PRADO, 1981, p. 93).  Nelson Rodrigues (1993, p.73)[278], ao escrever sobre futebol, também expôs sua opinião sobre o povo brasileiro de uma forma mais cínica e crítica: “é chato ser brasileiro: (...), começamos a achar que a nossa tristeza é uma piada fracassada. Afirmava-se também que éramos feios. Mentira! Ou, pelo menos, o triunfo [no futebol] embelezou-nos. Na pior das hipóteses, somos uns ex-buchos”. Nosso sentimento de inferioridade está ligado à cor da pele reinante na sociedade informe e tulmutuaria brasileira. Em uma matéria de junho de 1959, do repórter e fotógrafo Mário de Moraes (1925), intitulada “O prêto [sic] que virou branco”, temos a caso do lavrador Hugo Ferreira Gomes (Figura 61), “nascido preto no dia 01 de setembro de 1920”, mas que depois de preparar uma mistura para proteger os tomates de parasitas, é envenenado, quase morre, fica mais “negro que o carvão” e acaba por ficar totalmente branco. Os filhos de Hugo, quando o pai fica mais preto do que é, não o reconhecem. “Não viam naquele tição o seu bom e compreensivo pai”.

 

Quando Hugo fica totalmente branco, Dona Iracema, esposa de Hugo, diz que seu mulato tinha ficado aleijado. “Pequenas manchas no corpo de Hugo provavam que fora realmente preto”. Hugo chega a fazer um pedido ao médico que o trata: “Será que não é possível tirar estas manchas?”. Interessante notar que nem Hugo quer ser/ter uma mancha, nem as manchas são aceitas por representarem sinal de probreza e feiura para homens e mulheres. Fabíola Orlando Calazans Machado (2013, p. 144) afirma que na “sociedade espetacularizada desejadora da “boa aparência”, empregam-se todos os corretivos que estiverem ao alcance para reparar as manchas e marcas das representações femininas ancoradas na feiura, na velhice e no insucesso”.

Do negro escravizado para o preto que fica branco, algo persiste – o ato de negação. Os europeus encontram os negros, negam que sejam um povo com alma e cultura e os escravizam. O negro se encontra branco e não quer mais nenhuma mancha negra. É trágico e é cômico. Tal negação implica na aceitação do “algo folclórico”, ingrediente imaginal que alimenta ainda mais o “curioso”, o “fantástico” e o “absurdo”, tema recorrente em nossa cultura do feio. Para que o brasileiro assuma a “feiura”, tem que parar de se negar. O feio nos revela a surpresa de algo diferente. Olhamos para o feio e ficamos incomodados, mas não paramos de olhá-lo. Encarando o feio, ele perde sua carga para nós. Nosso olhar parece estar acostumado à fealdade. Para Nietzsche, na obra Humano, demasiado humano (volume II), quem se habitua a olhar o espelho esquece a própria feiura e somente um pintor poderá reaver a impressão da feiura esquecida. Porém, se nos habituarmos ao quadro, novamente esquecemos a feiura. É uma “lei geral de que o homem não suporta o feio-inalterável: a menos que seja por um instante; ele o esquece ou nega em todos os casos” (NIETZSCHE, 2008, §316).

Thales Azevedo (1981, p. 58), em Os Brasileiros, afirma que já “não é possível desenhar o perfil do brasileiro que não leve em conta traços de intolerância, de frieza e dureza, de cobiça e egoísmo, de desdém pelos costumes e pela lei, (...)”. Da imagem romântica do bom e bravo índio, passa-se ao realismo trágico do malandro do morro. O imaginário brasileiro está em constante movimento e é pluralmente fragmentado. A imagem romântica do Brasil não faz mais sentido. Sentimos nossa fealdade ou temos medo de redescobrirmos que somos feios? De que lugar retiramos todas essas representações senão de um imaginário autoconstruído e retroalimentado? Ao que parece, no Brasil, temos fascínio pela feiura e a procuramos por todos os lados, em todos os meios.

 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Se hoje contemplamos a existência do feio e o pesquisamos, significa que a feiura integra nosso ambiente noosférico, nossa esfera do pensamento, nosso local de inquietação perante os temas criadores do ser humano. O feio invisível torna-se visível, “o feio, discordante e sem sentido, passa a ser belo”, afirma Susan Sontag (2015, p. 15). As artes passam a integrar em si o feio e as belas representações da feiura adquirem prestígio entre os pensadores das mentalidades, das estéticas, do imaginário e das mídias. O feio, esquecido até o Renascimento como matéria de fermentação mental-visual, anulado pela distância dos cânones clássicos, não questiona seu local de existência nas marginalidades do belo. Porém, com o avanço das pesquisas sobre estética e imaginário, o feio torna-se um componente das obras de artes, dos estudos sobre o corpo e das pesquisas socioculturais. A fealdade adquire um caráter reflexivo que se cliva em seu próprio universo. Autores buscam analisar aqueles “mil tipos” do feio[279] para fazer emergir outras qualidades estéticas, como o grotesco, o sublime, o trágico, o abjeto e o risível. Reflexo do mal na moral clássica e cristã, o feio foi ligado ao que era ruim e deveria ser evitado, mas ambos, belo e feio são, no fundo, progênies do imaginário, o que cria reverberações nas mentalidades dos indivíduos, fazendo as dicotomias belo/bom e feio/mau terem as estruturas abaladas. Somos também belos e maus, feios e bons; e o outro é apenas uma projeção fantasmática dos nossos anseios. Criar inimigos é nos olhar avessamente no espelho e odiar a imagem que desempenha um papel imaginário negativo de meu próprio eu, meu lado grotesco. Com a modernidade, a fealdade se firma timidamente na vida cotidiana, nas falas do povo, nas imagens, na jocosidade das pessoas. A integração do feio nas práticas artísticas, iconográficas e literárias, levou a uma diminuição do seu poder provocativo. Com o século XX, as subversões dos valores dominantes começaram a ganhar espaço em museus, em teatros, nas diversas literaturas, nas mídias, devido a um processo iniciado no Modernismo, em que o “novo” é o diferente, o transgressor, o que leva a estética à erosão das oposições. “A história da arte é uma sucessão de trangressões bem-sucedidas” (SONTAG, loc. cit.).

O humor assume toda sua feiura e torna-se nossa forma de combate cotidiano, nossa resistência. Ser feio e rir disso é nossa cerimônia mágica. O elemento grotesco e maravilhoso está na formação do Brasil, está no hibridismo (animal/mineral) do fóssil Luzia, ser que se move fluidamente entre realidade e mito. Nosso maravilhoso e erótico está no contorno de nossa primeira imagem rupestre, ser de limiaridade que fascina pelo exagero das partes baixas. Nossos indígenas belos ficam, pelo olhar religioso do europeu civilizado, grotescos e até monstruosos. O que os viajantes do maravilhoso não sabiam é que nossas manifestações que pareciam possuir um caráter feio, recorrem ao belo para existir: bela cor, belos adornos, bela inexistência de pelos, muitos banhos e muita pena.

O feio pode ter uma função didática, social ou moral, mas é na subversão que habitava prazerosamente. O feio carece do avesso, de viver às avessas, na desestruturação dos acontecimentos banais. Um monstro era um ser feio que desestruturava o cotidiano. Os indígenas possuem vários Entes Sobrenaturais que vivem nas dobras da imaginação ainda hoje. Entes que causam medo aos povos autóctones ou aos povos africanos que no Brasil aportaram, mas são seres mágicos que também causam fascínio e são usados para extrapolar as fronteiras hierárquicas entre o europeu e os não-europeus. Colocar a culpa no Curupira ou Saci é uma forma de resistência. O grotesco e o abjeto fazem parte da história recente da reflexão estética. Bakhtin delineia a carga grotesca do risível, baseado em obras de Rabelais. Nos textos clássicos, apenas o belo é discutido e, desde Kant e Burke, o sublime ganha espaço. Como se vê, o feio atua pelos interstícios, aguardando ser analisado em sua rebeldia estética. A fealdade apresenta-se, em boa parte do tempo, através de uma manifestação sensível particular, não existindo “o feio”, mas “os feios”. O feio também é um sentimento no período colonial. A traição domina o ambiente e corrompe as pessoas, como Calabar. Mestiços, pessoas com origem indefinida, representam a feiura que nasce entre o branco e o índio, o branco e o negro, o índio e o negro. Pode o feio criar belas obras? Aleijadinho prova que a mais bela flor nasce do estrume. Por sua vida reclusa e misteriosa doença, Aleijadinho não é bem visto por algumas pessoas, é um diabo escultor que trabalha nos mistérios da noite. Machado de Assis intitulou o capítulo XCII da obra Dom Casmurro como: “O diabo não é tão feio como se pinta”. Machado narra sobre a necessidade de saber que através da beleza existe uma necessária feiura: “E talvez saia assim a flor mais bela; o meu jardineiro afirma que as violetas, para terem um cheiro superior, hão mister de estrume de porco” (ASSIS, 1997, p. 113).

Em nosso humor, que é nossa forma mais aristocrática do feio artístico, aquele movimento social tolerado desde a Antiguidade, o domínio estético ganha seu efeito moral. A comédia como expurgação através do terror (susto) e da piedade (pena) visa uma cartase, ou seja, uma descarga emocional através do efeito libertador do riso. Aristóteles, nos textos em que menciona o risível, define-o como sendo apenas uma forma de feio. Feios deformados, feios conformados, feios hilários, nossa cultura do feio no Brasil se revela um rico recipiente de elementos cômicos e grotescos. Nosso feio está ligado a uma manifestação sensível de nossas tragédias cotidianas. Se o humor das chanchadas é desvalorizado pela seriedade da razão, é porque o humor joga com as possibilidades de mudança das hierarquias. A elite é enganada pelo malandro/vagabundo e isso agrada ao grande público. O sujeito do humor é produto do feio, mas também do belo. Os humoristas criticam a hipocrisia das convenções sociais em que vivem, dizendo: “Sou feio, mas estou aqui e estou na moda!”.

 No texto Seja ótima, seja feliz: discurso, representação e subjetividade feminina no canal GNT (2013), Fabíola Calazans denuncia um discurso midiático que, não raro, silencia o imaginário daqueles que estão fora do padrão. Mesmo que no Brasil os feios também sejam bonitos, não são os espaços em que o feio tende ou “deve” circular. Em diversos espaços midiáticos, o feio ainda precisa ser “ajustado”, “normalizado”, “melhorado” e “otimizado”. Nosso discurso sobre o feio atravessa o corpo, o olhar, os sentimentos e o riso, para revelar que no Brasil a beleza amplia seus sentidos e define que o ser humano, o brasileiro/a brasileira, deve viver na resistência perante o olhar estrangeiro, o olhar nacional e o olhar midiático. As imagens da cultura popular brasileira têm, por princípio, o corporal que atua nos locais sagrados; nos rituais de comemoração; no nascimento-morte-renascimento; nas peculiaridades cotidianas como uma forma de abolir as fronteiras estéticas e imaginárias. O feio no Brasil é uma forma de atuação da liberdade que passa do particular, do meu mundo, para o coletivo, o nosso mundo. As consolidações de conceitos, mais variados, que exprimem as diferentes formas do feio no Brasil, contribuem para aumentar o leque da sensibilidade das diferentes formas do pensamento nacional.

O corpo do brasileiro, nossa materialidade corporal moldada pelo olhar e percepção do outro, do momento cultural da alteridade e pela nossa culturalidade cotidiana, são formas imaginárias de inserção no mundo. Engendramos tantas tonalidades em nossas matrizes branca, vermelha e negra com o anseio de (re)conhecer uma outra forma de beleza presente em nós. A estética brasileira é de matizes, ansiosa por expor suas várias nuances para se tornar uma beleza que se amplia e absorve diferentes facetas, diferentes tonalidades, olhares e representações. Pensar a feiura é pensar em formas de fortalecer a democracia, de atuar nas difereneças, respeitando as diferentes estéticas. O conceito do feio é um conceito dinâmico, temporário e nômade presente nos espaços materiais e imateriais do cotidiano, residindo na interseção móvel das dobras formadas pelas estratégias de poder. A noção da categoria feio é demarcada no tempo histórico e por valores que legitimam e constituem a noção do indivíduo feio. A existência da fealdade é dada por uma importante triangulação: visibilidade, aparência e a imagem; no modo como vemos o feio e como somos vistos. É no jogo da visibilidade e da invisibilidade que a categoria do feio estabelece sua dinâmica, em um movimento de fluxo e refluxo estético.

 A tentativa de uma pesquisa exploratória com observações e análises históricas sobre nossa beleza ampliada traz certa diversidade que produz complexidade. Não há unidade possível a esta diversidade, a menos que seja compreendida dentro de uma noção de “Aberto” bachelardiano. Para Bachelard (1978, p. 78), o discurso científico e o discurso poético devem dialogar, através de um espaço dinâmico e aberto da imaginação. Somente o imaginário pode preservar, reatualizar e exprimir as relações do futuro com o passado e com nossas imensas intimidades. Somos um organismo inacabado, inocupado, um organismo “aberto”. A necessidade de superação da dicotomia belo/feio é uma aposta, uma  hipótese importante em nossa investigação: a de que o Brasil expandiu a própria noção de beleza ao incluir/retrabalhar/adaptar o feio ao seu sistema de beleza, gestando-a como elemento de apreciação, deleite e até prazer estético.

Abrimos o capítulo 2 (Poxiculturografia Brasileira) com a citação Carlos Drummond de Andrade: “Precisamos descobrir o Brasil! Precisamos, precisamos esquecer o Brasil! Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil. Nenhum Brasil existe”. Drummond termina com a indagação: “E acaso existirão os brasileiros?”. Sim, existimos em nossa feiura, nosso humor e nossa resistência, ou seja, existimos em nossa beleza ampliada.

Outras feiuras podem surgir a partir da pesquisa aqui apresentada. Fizemos um trabalho de escavação em nosso imaginário do feio nacional.  Como dissemos, o feio tem mil, ou tem mil e uma, formas de atuação no mundo e no cotidiano. Nossa intenção é ser uma pesquisa basilar para a feiura nacional. Um estudo sobre o feio/a feiura não está concluído, pois o imaginário, a fonte de criações estéticas, é uma realidade viva, poderosa e imensa em sua plasticidade. Ontem, hoje e amanhã... Somos feios, com muito orgulho, com muito riso, muita resistência e deboche nas grafias icônicas, literárias, artísticas e midiáticas.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

ADORNO, Theodor L. W. Teoria Estética. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1993.

______. Notas sobre literatura. Obra Completa. Madrid: Ediciones Akal, 2003.

 

AGASSIZ, Jean Louis Rodolph. Viagem ao Brasil 1865-1866. Tradução e notas de Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000.

AGUINSKY, Gershenson Beatriz. “O potencial libertador do conhecimento científico: um diálogo entre ética e ciência”. In: DESAULNIERS, Julieta Beatriz Ramos (Org.). Fenômeno: uma teia complexa de relações. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

ALMEIDA, Maria Cândida Ferreira de. Tornar-se outro: o topos canibal na literatura brasileira. São Paulo: Annablume, 2002.

ALVES, Rubem. Sobre o tempo e a eternidade. Campinas, São Paulo: Papirus, 1995.

______. Do universo à jabuticaba. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2010.

AMADO, James; MATOS, Gregório de. Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Obra Poética Completa: Códice James Amado. Rio de Janeiro: Record, 1999, vol. II.

AMADO, Jorge. Tocaia Grande: a face obscura. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ANCHIETA, José de. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia; EDUSP, 1988.

 ______. Cartas Inéditas: Carta fazendo a descrição das inúmeras coisas naturais, que se encontram na província de São Vicente hoje São Paulo seguida de outras cartas inéditas escritas da Bahia. São Paulo: Typografia da Casa Eclética, 1900. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/handle/1918/00060000>. Acesso em: outubro 2014.

______. Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões. Rio de Janeiro: civilização Brasileira S.A., 1933. Disponpivel em: < http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Aanchieta-1933-cartas/anchieta_1933_cartas_mindlin.pdf>. Acesso em: outubro de 2014.

 ANDRADE, Carlos Drummond.  Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.

 ______. O voo sobre as igrejas/Brejo das almas. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

ANDRADE, Mário de. “A escrava que não é Isaura”. In: ANDRADE, Mário de. Obra Imatura. São Paulo: Martins Fontes, 1960.

______. Poesias Completas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005.

______. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. In: LOPEZ, Telê Porto Ancona (Coord). Edição crítica. Brasil: Editora de UFSC, 1988.

______. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

ARANHA, Altair J. Dicionário brasileiro de insultos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.

ARANHA, Graça. “A Emoção Estética na Arte Moderna”. In: AMARAL, Aracy A. Artes Plásticas na Semana de 22. São Paulo: Ed. 34, 1998.

ARAUJO, Leusa. Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.

ARISTÓTELES. “Arte Poética”. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Ed. Cultrix, 2007.

______. Parte dos animais. Tradução Maria de Fátima Sousa e Silva. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010.

ASSAYAG, Simão. Boi-Bumbá: festas, andanças, luz e pajelanças. Rio de Janeiro: Minc/Funarte, 1995.

ASSIS, Machado. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: O Globo/ Klick Editora, 1997.

BACHELARD, Gaston.  A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Traduções de Joaquim José Moura Ramos (et al.). São Paulo: Abril Cultural, 1978.

______. O novo espírito científico. Lisboa: Edições 70, 1986.

BAÊTA-NEVES, Luis Felipe. O combate dos soldados de Cristo na terra dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1978.

BAITELLO JUNIOR, Norval. O animal que parou os relógios. São Paulo: Annablume, 1997.

BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HICITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.

______. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermanita Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BALZAC. Honoré. Une Fille d'Ève: scène de la vie privée. Bruxelles: Meline, Cans et Compagnie, 1839.

BARACAT JÚNIOR, José Carlos. Plotino, Enéadas I, II e III - Porfírio, Vida de Plotino: introdução, tradução e notas I José Carlos Baracat Júnior. 700 f. Campinas, SP: [s.n.]. Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem, Programa de Pós-Graduação em Linguística 2006. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000390053>. Acesso em: novembro de 2016.

BARBOSA, Pe. Antônio. Lemos. Pequeno Vocabulário Tupi-Português. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1951. Disponível em: <http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Abarbosa-1951-pequeno/barbosa_1951_tupi-portugues.pdf>. Acesso em: agosto de 2016.

BARBOSA, Leandro Mendonça. De Selvagem a Efeminado: as Representações de Dioniso no Imaginário Ático. Jundiaí: Paco Editorial, 2012.

BARRETO, Marco Heleno. Imaginação Simbólica. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

BARROS, Orlando de. O pai do futurismo no país do futuro: as viagens de Marinetti ao Brasil em 1926 e 1936. Rio de Janeiro: E-papers, 2010.

BASTIDE, Roger. “O mito do Aleijadinho”. In: BASTIDE, Roger. Psicanálise do cafuné e estudos de sociologia estética brasileira. Curitiba: Editora Guaíra, 1941.

______. O candomblé da Bahia: rito nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira de Queiroz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961. Disponível em: <http://www.brasiliana.com.br/brasiliana/colecao/obras/431/o-candomble-da-bahia-rito-nago>. Acesso em: março de 2017.

______. Sociologie et Sexualité. Annales marocaines de sociologie. Rabat: Institut de sociologie, 1970.

______. Variações sobre a porta barroca. Tradução de Samuel Titan Júnior. Novos Estudos, trimestral, nº 75, p. 129-137. São Paulo: CEBRAP, 2006. Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002006000200009>. Acesso em: março de 2017.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.

BATESON, Gregory; BATESON, Mary Catherine. Angels fear: towards an epistemology of the sacred. Cresskill, New Jersey: Hampton Press, 2005.

BAUDELAIRE, Charles. Petits Poèmes en prose: O Spleen de Paris: Pequenos poemas em prosa. Tradução de Leda Tenório da Motta. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995.

______. As flores do mal. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007.

______. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb. Estética: a lógica da arte e do poema. Tradução de Mirian Sutter Medeiros. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

BAYER, Raymond. História da Estética. Tradução de José Saramago. Lisboa: Editorial Estampa, 1995.

BENEDITO, Mouzar. Anuário do Saci e seus amigos: mitologia brasílica. São Paulo: Editora Publisher Brasil, 2009.

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica” [1936]. In: Luis Costa Lima (Org.). Teoria da Cultura de massa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

______. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BERARDO, João Batista. O político Cândido Torquato Portinari. São Paulo: Edições Populares, 1983.

BERNADET, Jean Claude. Revista Cinema nº3. São Paulo: Fundação Cinemateca Brasileira, 1974.

BERNARDI, Francisco. As bases da literatura brasileira: histórias, autores, textos e testes. Porto Alegre: Editora AGE, 1999.

BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução Antônio Pereira de Figueiredo. São Paulo: Ed. Das Américas, 2000.

BLAKE, William. O Matrimônio do céu e do inferno. Tradução de José Antônio Arantes. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 2007.

BOAS, Franz. Arte Primitiva. Tradução de José Carlos Pereira. Rio de Janeiro: Mauad, 2015.

BÔAS, Luciana Villas. “O Hans Staden de Portinari: esquecimento e memória do passado colonial”. Pandaemonium Germanicum. São Paulo, v. 19, n. 27, 2016, p. 103-125. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/pg/article/view/113855>.Acesso em: outubro de 2016.

BODEI, Remo. As formas da Beleza. Tradução de Antonio Angonese. São Paulo: EDUSC, 2005.

BOECHAT, Walter. “Luzes e sombra da alma brasileira – Um país em busca de identidade”. In: BOECHAT, Walter (Org.). A Alma Brasileira: luz e sombra. Petrópolis: Vozes, 2014.

BOORSTIN, Daniel J. Os Criadores: uma história da criatividade humana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

______. Os Descobridores: de como o homem procurou conhecer-se a si mesmo e ao mundo. 2 ed. Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1989.

BOPP, Raul. Putirum.  Rio de Janeiro: Editora Leitura, 1968.

______. Coisas de idioma e folclore. Lanterna Verde, n. 8 (1944). pp. 243-247. Disponível em: <http://culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/bopp.html#.WGxDYvkrLIV>. Acesso em: junho 2014.

BORBA, Francisco da Silva. Dicionário UNESP do português contemporâneo. São Paulo: UNESP, 2004.

BORGES, Bento Itamar. “O (mau) gosto e o grotesco”. Mars Gradivus. Revista do Laboratório de Psicanálise e Aprendizagem.  UFRGS. Ano 1, 1 n , 2002. Disponível em: < https://www.ufrgs.br/psicopatologia/lpa/bento_01.htm#_ftn55>. Acesso em outubro de 2016.

BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

BORGES-OSÓRIO, Maria Regina. Genética Humana. Porto Alegre: Artmed, 2013.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43 ed. São Paulo: Cultrix, 2006.

BOSI, Alfredo. Cultura Nacional: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987.

 ______.  Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 ______. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

BOLOGNIA, Jean L.. Dermatologia. Tradução de Adriana de Carvalho Corrêa. 3 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

 BRAGA, Teófilo. Contos Tradicionais do Povo Português. Lisboa: Agrupamentos de Escola de Rio de Mouro, 2013. 1v.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1987. 3 v.

BRANDON, Samuel G. Frederick. Diccionario de religiones comparadas. Lo tradujo al castellano J. V. Malla. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1975. 1v.

BRAVO, Nicole Fernandez. “Duplo”. In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionário de Mitos Literários. Tradução Carlos Sussekind et al. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. 2 ed. São Paulo: Ática, 2003.

BROWNE, Sir Thomas, Religio Medici. New York: John B. Alden (Publisher), 1889. Disponível em: < http://books.google.com.br/>. Acesso em: abril de 2014.

 BROWNING, Barbara. Samba: Resistance in Motion. Indiana: Indiana University Press, 1995.

BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 20 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

BUCHMANN, Armando José. O Estranho perfil do Rio Descoberto: Ensaios. Brasília: Editora Thesaurus, 2001.

BUENO, Eduardo. Brasil: uma História. São Paulo: Ática, 2003.

BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo. Tradução de Enid Abreu D. Campinas: Papirus, 1993.

BURY, John. Arquitetura e Arte no Brasil Colonial. Brasília: IPHAN; MONUMENTA, 2006. Disponível em: < http://portal.iphan.gov.br/files/johnbury.pdf>. Acesso em: outubro de 2015.

CABRAL, Álvaro; NICK, Eva. Dicionário técnico de psicologia. São Paulo: Cultrix, 2006.

CABRERA, Lydia. Iemanjá & Oxum: Iniciações, Ialorixás e Olorixás. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

CALAZANS, Fabíola. “Seja ótima, seja feliz”: discurso, representação e subjetividade feminina no canal GNT. Tese (Doutorado em Comunicação Social na linha Imagem e Som) –

Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2013. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14299/1/2013_FabiolaOrlandoCalazansMachado.pdp>. Acesso em: março de 2017.

CALHEIROS, Luís. Feio e Modernidade (s). Revista NU #34. Departamento de Arquitetura da Faculdade de Ciências e Tecnologia. Universidade de Coimbra, Colégio das Artes. Largo D. Dinis. Coimbra: Art’ Cittá, 2010.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CAMINHA, Pero Vaz. Carta a el Rei D. Manuel. São Paulo: LCC Publicações Eletrônicas, 1963. Disponível em: < http://www.culturabrasil.org/zip/carta.pdf>. Acesso em: 04 de junho de 2016.

CAMPOS JR, Celso de. et al. Nada mais que a verdade: a extraordinária história do jornal Notícias Populares. São Paulo: Carrenho Editorial, 2002.

CANSTATT, Oscar. Brasil: terra e gente, 1871. Tradução de Eduardo de Lima e Castro. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/1066>. Acesso em: outubro de 2015.

CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo: Hedra, 2009.

______. Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias. Rio de Janeiro: Typographia da Gazeta de notícias, 1881. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/bitstream/handle/1918/00368400/003684_COMPLETO.pdf>. Acesso em: dezembro de 2014.

______. Tratados da terra e gente do Brasil. Colaborador: Capistrano de Abreu; Rodolfo Garcia; Batista Caetano de Almeida Nogueira. 2 ed. São Paulo: BPB Companhia Editora Nacional, 1939. Disponível em: < http://www.brasiliana.com.br/obras/tratados-da-terra-e-gente-do-brasil>. Acesso em: dezembro de 2014.

 CARVALHO, Gilberto Vilar de. O primeiro brasileiro: Bento Teixeira. São Paulo: Marco Zero, 1995.

CARVALHO, Marcelo. Conhecimento e Devaneio: Gaston Bachelard e a Androginia da Alma. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 6 ed. Belo Horizonte; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

______. Superstição no Brasil. 4 ed. São Paulo: Global, 2001.

______. Antologia do Folclore Brasileiro. 8 ed. São Paulo: Global, 2002.

CASTRO, Gustavo. Comunicação e Transcendência. São Paulo: Annablume, 2013.

 CATTANI, Icleia. “Mestiçagens na arte contemporânea: conceito e desdobramentos”. In: CATTANI, Icleia (Org.) Mestiçagens. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2007.

 

 CERQUEIRA, Nelson (Org.). Carnaval da Bahia: um registro estético. Salvador: Omar G., 2002.

 CHADE, Jamil. Brasil é o país mais depressivo da América Latina, diz OMS. Estadão Saúde. 23 Fevereiro 2017. Disponível em: < http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-e-o-pais-que-mais-sofre-com-depressao-na-america-latina,70001676638>. Acesso em: março de 2017.

 CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 21 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

CONNOR, Steven. Teoria e valor cultural. Tradução Adail Ubirajara; Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

CORRÊA, Paula da cunha. Armas e varões: a guerra na lírica de Arquíloco. São Paulo: Editora Fundação da UNESP,1998.

COSMIDES, Leda, TOOBY, John; BARKOW, Jerome H. Introduction: Evolutionary Psychology and Conceptual Integration. In: COSMIDES, Leda, TOOBY, John (Org.). The Adapted Mind: Evolutionary Psychology and the Generation of Culturetf. New York: Oxford University Press, 1992.

COTRIM, Gilberto. História e Consciência do Mundo. São Paulo: Saraiva, 1995.

COURTINE, Jean-Claude; HAROCHE, Claudine. História do rosto: exprimir e calar as suas emoções (do século XVI ao início do século XIX). Tradução de Marcos Penchel. Petrópolis: Vozes, 2016.

COUDREAU, Henri-Anatole. Voyage au Tapajoz: 28 juillet 1895 - 7 janvier 1896. Paris: A. Lahure, 1897. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/518694>. Acesso em: junho de 2016.

CRUZ, Francisco Ignácio dos Santos.  Da prostituição na cidade de Lisboa ou Considerações historicas, hygienicas e administrativas em geral sobre as prostitutas, e em especial na referida cidade com a exposição da legislação portugueza a seo respeito, e proposta de medidas regulamentares, necessárias para a manutenção da Saúde Publica, e da Moral. Lisboa: Typ. Lisbonense, 1841. Disponível em: < https://archive.org/details/daprostituio00cruz> . Acesso em: outubro de 2015.

CUNHA, Eduardo Leal. “Para sempre diante do seu olhar: sobre os sentidos da modificação corporal”. In: KATZ, Chaim Samuel; KUPERMANN, Daniel; MOSÉ, Viviane (Org.). Beleza, feiura e psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2004.

DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

______. Ensaios de antropologia estrutural. Petrópolis: Vozes, 1973.

DEL PICCHIA, Menotti. Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1974.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Papirus, 1991.

DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

DIAS, Lucy; GAMBINI, Roberto. Outros 500: uma conversa sobre a alma brasileira. São Paulo: Editora SENAC, 1999.

DIAS, Rosangela de Oliveira. O mundo como chanchada: cinema e imaginário das classes populares na década de 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.

DICTIONARY of Yoruba Language. USA: Lagos; Church Missionary Society Bookshop, 1913. Disponível em: < http://edeyoruba.com/uploads/3/0/0/1/3001787/yoruba_dictionary.pdf>. Acesso em: fevereiro de 2015.

DRAVET, Florence Marie. Corpo, linguagem e real: o sopro de Exu Bará e seu lugar na comunicação. Ilha do Desterro. v. 68, nº 3, p. 15-25. ISSN 0101-4846.  http://dx.doi.org/10.5007/2175-8026.2015v68n3p15. Florianópolis, set/dez 2015. Disponível em:<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2175-80262015000300015&script=sci_abstract&tlng=pt >. Acesso em: outubro de 2016.

 DUAILIBI, Roberto; PECHLIVANIS, Marina (Org.). Duailibi Essencial: minidicionário com mais de 4.500 frases essenciais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006.

 

 DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução a arquetipologia. Tradução de Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ECO, Umberto. História da Beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2004.

______. História da Feiura. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007.

______. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Tradução Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Gradiva, 2011.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

______. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2006.

EINSTEIN, Albert. O Significado da Relatividade. Tradução de Mário Silva. Lisboa: Gradiva, 2003.

ETCOFF, Nancy. A Lei do mais belo: a ciência da beleza. Tradução Ana Luiza Borges de Barros. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1999.

EXPEDIÇÃO LANGSDORFF. Centro Cultural Banco do Brasil, 2010. Disponível em:< http://www.bb.com.br/docs/pub/inst/dwn/Langsdorff.pdf>. Acesso em: novembro de 2015.

FANTIN, Mônica. “O processo criador e o cinema na educação de crianças”. In: FRITZEN, Celdon; MOREIRA, Janine (Org.). Educação e Arte: as Linguagens Artísticas na Formação Humana. Campinas, São Paulo: Papirus, 2008.

FARELLI, Maria Helena. As 7 giras de Exu: histórico das lendas e dos demônios da Umbanda. Rio de Janeiro: Editora Eco, 1974.

 FARIAS, Juliana Barreto. Os índios tupinambás sob a ótica feminina. Dossiê. Cine Cachoeira – Revista de Cinema e Audiovisual da UFRB, Bahia, ano II, n. 4, 2012. Disponível em: < http://www.cinecachoeira.com.br/tag/tupinambas/>. Acesso em: julho de 2016.

 

FEITOSA, Charles. “Alteridade na estética: reflexões sobre a feiúra”. In KATZ, C. S.; KUPERMANN, D; MOSÉ, V. (Org.). Beleza, feio e psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.

FORTUNA, Marlene. A obra de arte além da sua aparência. São Paulo: Annablume, 2002.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus Muchail. 8ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FRANCHINI, Ademilson. S. As 100 melhores lendas do folclore brasileiro. Porto Alegre: L&PM, 2011.

FRAXE, Therezinha de Jesus Pinto. Cultura cabocla-ribeirinha: mitos, lendas e transculturalidade. São Paulo: Annablume, 2004.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

 ______. Casa grande & senzala. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda,

2004.

______. Interpretação do Brasil: aspectos da formação social brasileira como processo de amalgamento de raças e culturas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

FREUD, Sigmund. “O estranho” (1919). In: FREUD. Sigmund. Obras Completas. Edição Standard Brasileira. v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

______. O mal estar na cultura. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

GALEANO, Eduardo. Espejos: uma historia casi universal. Madri: Siglo XXI de España Editores, 2008a.

______. Espelhos: uma história quase universal. Tradução de Eric Nepomuceno. São Paulo: L&PM, 2008b.

GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, Baixo Amazonas. São Paulo: Nacional, 1955.

GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/188899>. Acesso em: junho de 2015.

GIL, José. Monstros. Lisboa: Relógio D’ Água Editores, 2006.

 GIUCCI, Guilhermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

GOMES, Gisane. “Os fenômenos como teias de relações”. In: DESAULNIERS, Julieta Beatriz Ramos (Org.). Fenômeno: uma teia complexa de relações. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.

 GOMES, Sérgio. Novos caminhos da bateria brasileira. São Paulo: Irmãos Vitale, 2008.

 GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. “Raça, cor e outros conceitos analíticos”. In: SANSONE, Lívio; PINHO, Araújo Osmundo (Org.). Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed.. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008.

 GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano o paraíso barroco e a construção do herói colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

GRAVES, Robert. The Greek Myths. Londres: Penguin Books, 1960. 1v.

GREENE, Liz. Uma viagem através dos mitos: o significado dos mitos como um guia para a vida. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

GRIFFITH, Mark. Aristophanes’ Frogs. New York: Oxford University Press, 2013.

GRILLO JÚNIOR, Mauricio. História do Brasil Para Leigos: Da Fase Pré-Colonial ao Império. Rio de Janeiro: Atla Books, 2013.

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

 HANSEN, João Adolfo. Manuel da Nóbrega. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010.

 HARVEY, David. Paris, capital da modernidade. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Boitempo, 2015.

HARRIES-JONES, Peter. Gregory Bateso’s “Uncovery” of Ecological Aesthetics. In: HOFFMEYER, Jesper (Ed.). A Legacy for Living Systems: Gregory Bateson as Precursor to Biosemiotics. Dordrecht: Springer 2009.

HATZFELD, Helmut. Estudios sobre el barroco. Madrid: Gredos, 1964.

HAUSSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.

HIRST, John. Breve História da Europa. Portugal: D. Quixote, 2013.

HOISEL, Evelina. “Fado Tropical”: jogos de ambivalência. In: FERNANDES, Rinaldo (Org.). Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos. São Paulo: LeYa, 2013.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

______. A visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000.

HOLANDA, Roosevelt Nogueira de. Palavras: origens e curiosidades. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 2010.

HOMERO. Homero: Ilíada e Odisseia. Revisão de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

 HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime. São Paulo: Perspectiva, 2010.

 

HUME, David. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

JABOUILLE, Victor. Iniciação à ciência dos mitos. Lisboa: Inquérito Ltda, 1994.

 JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: história indígena brasileira contada por um índio. São Paulo: Peirópolis, 1998.

______. Tupã tenondé: a criação do universo, da terra e do homem segundo a tradição oral Guarani. São Paulo: Peirópolis, 2001.

JORGE, Marco Antônio Coutinho. Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan: Vol. 1: As bases conceituais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos; Alexandre Fradique Morujão. 5 ed. Lisboa: Edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

KATZ, Chaim Samuel; KUPERMANN, Daniel; MOSÉ, Viviane (Org.). Beleza, feiura e psicanálise. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, Formação Freudiana, 2004.

KAYSER, Wolfgang. O grotesco; configuração na pintura e na literatura. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2009.

______. O grotesco. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.

KIERKEGAARD, Søren Aabye. Soren Kierkegaard's Journals and Papers, Volume 1, A-E. Indiana: Indiana University Press, 1967.

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Ideia do Brasil: a arquitetura imperfeita. São Paulo: Editora SENAC, 2001.

KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

LALO, Charles. Introduction à l'esthétique; les méthodes de l'esthétique, beauté naturelle et beauté artistique, l'impressionnisme et le dogmatisme. Paris: A. Colin, 1912. Disponível em: <https://archive.org/details/introductionlest00lalo>. Acesso em 20 de fevereiro de 2017.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

LEITE JÚNIOR, Jorge. Das maravilhas e prodígios sexuais: a pornografia “bizarra” como entretenimento. São Paulo: Annablume, 2006.

LE GOFF, Jacques. O maravilhoso e o quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1989.

______. O imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.

LELOUP, Jean-Yves. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012.

LE ROUX, Patrick. Império Romano. Tradução de William Lagos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.

LÉRY, Jean. Viagem à terra do Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1961. Disponível em: < http://irpmarica.com.br/livros/viagem_a_terra_do_brasil.pdf>. Acesso em: fevereiro 2015.

LESSA, Barbosa. Era de Aré: raízes do Cone Sul. São Paulo: Globo, 1993.

LESSING, Gotthold Ephraim. “Laocoonte”. In: LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A Pintura – Vol. 4: O Belo. São Paulo: Ed. 34, 2004.

LINDOSO, Dirceu. Lições de Etnologia Geral: introdução ao estudo dos seus princípios seguido de dois estudos de etnologia brasileira. Maceió: EDUFAL, 2008.

LISBOA, Karen Macknow. A nova Atlântida de Spix e Martius; natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec/FAPESP, 1997.

LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.

 ______. Água Viva. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1973.

 

 ______. “De como evitar um homem nu”. In: Jornal do Brasil. Página 2, Caderno B. Rio de Janeiro, sábado, 16 de outubro de 1971. Disponível em: < https://news.google.com/newspapers?nid=0qX8s2k1IRwC&dat=19711016&printsec=frontpage&hl=pt-BR>. Acesso em: dezembro de 2016.

LOBATO, Monteiro. O Saci-Pererê: resultado de um inquérito. São Paulo: Globo, 2008a.

______. Ideias do Jeca Tatu. São Paulo: Globo, 2008b.

LODY, Raul Giovanni da Motta. Cabelos de axé: identidade e resistência. Rio de Janeiro: Ed. SENAC Nacional, 2004.

LOYN, Henry R. Dicionário da Idade Média. Tradução Alvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

MACEDO, Dion Davi. Do elogio à verdade: um estudo sobre a noção de Eros como intermediário no Banquete de Platão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.

MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. (Edição com base em textos de Michel Foucault), 1979.

MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O selvagem. Rio de Janeiro: Typographia da Reforma, 1876. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/182909>. Acesso em: agosto de 2015.

MARQUES, Toni. “Questão de pele”. Revista de História da Biblioteca Nacional. Dossiê Corpo. Rio de Janeiro, n. 40, p. 22-25, jan. 2009.

MARX, Karl. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Tradução de Rubens Enderle; Nélio Schneider; Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.

MATTÉI, Jean-François. “Civilização e Barbárie”. In: Denis L. Rosenfield. Ética e Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2001.

MATOS, Gregório de. In: MIRANDA, José Américo (Org.). Poesia brasileira, época barroca: I Antologia. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2004.

MATOS, Gregório de. Obras de Gregório de Matos: IV – Satírica. Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1930.

MATTOS, Carlos Alberto. Walter Lima Júnior, Viver cinema. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001. 2 v.

______. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro Nova Fronteira, 1989.

MELATTI, Julio Cezar. Índios do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2007.

MELLO, Gláucia Buratto Rodrigues de. “Fundamentos e Modelos Historiográficos da Cultura Brasileira: uma abordagem antropológica em Sérgio Buarque de Holanda”. In: LEMOS, Maria Teresa Toribio B. Lemos; MORAES, Nilson Alves de (Org.). Memória e Construções de Identidades. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000.

MELLO, Maria Thereza Negrão de; KUYUMJIAN, Márcia de Melo Martins. Cultura cômica e ambivalência cotidiana: história cultural, risibilidade e humor. Goiânia: Ed. Da PUC Goiás, 2012.

MENDES, Murilo. Poesias, 1925-1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959.

MEYER, Marlise. Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução Maria Elena O. Ortiz. A. São Paulo: Editora UNESP, 2003.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12 ed. São Paulo: Cultrix, 2004.

______. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 2006.

 MONTEIRO, Denilson; NASSIFE, Eduardo. Chacrinha – a biografia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2014.

 

MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia, tomo IV (Q - Z). São Paulo: Edições Loyola, 2001.

MORAES, Mário. O prêto que virou branco. O Cruzeiro. Junho de 1959. Disponível em: < http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/06061959/060659_3.htm>. Acesso em: maio de 2013.

 MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Lisboa: Instituto Piaget,1990.

______. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006.

______. O cinema ou o homem imaginário. Tradução António-Pedro Vasconcelos. Lisboa: Relógio D’ Água, 1997.

______. O Método 1: a natureza da natureza. Portugal: Europa-América Ltda, 1987.

______. O método 3: o conhecimento do conhecimento. Tradução de Juremir Machado da Silva. 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 1999.

______. O método 5: a humanidade da humanidade. Tradução de Juremir Machado da Silva. 5 ed. Porto Alegre: Sulina, 2012.

MOREAU, Filipe Eduardo. Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo: Annablume, 2003.

MORRIS, Desmond. O macaco nu. Tradução de Hermano Neves. 16 ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

MUNARI, Bruno. Design e Comunicação Visual: contribuição para uma metodologia didática. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MUNDURUKU, Daniel. As serpentes que roubaram a noite: e outros mitos. São Paulo: Peirópolis, 2001.

MUSSA, Alberto. Meu destino é ser onça. Rio de Janeiro: Record, 2009.

NASIO, J-D. O Olhar em Psicanálise. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.

NEELEMAN, Gary. Soldados da Borracha: o exército esquecido que salvou a II Guerra Mundial. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015.

NETO, Coelho. O Turbilhão. 1904. Biblioteca Virtual de Literatura. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=7525 >. Acesso em: outubro de 2015.

NEVES, W. A. et al. Rock Art at the Pleistocene/Holocene Boundary in Eastern South America. Plos One. 7 v. , n. 2, p. e 322-28, 2012.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

______. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

______. Humano, Demasiado Humano II. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil e mais escritos. Coimbra: Tipografia da Atlântida; Universidade de Coimbra, 1955.

NOLASCO, Ana. Transgressões do Belo: invenções do feio na arte contemporânea portuguesa. 2011. 293 f. Tese (Doutoramento em Filosofia Estética e Filosofia da Arte) – Universidade de Lisboa, Lisboa, 2011. Disponível em: < http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/3103/21/ulsd59723_td1.pdf>. Acesso em: março de 2015

NOVAES, Joana de Vilhena. O intolerável peso da feiura: sobre as mulheres e seus corpos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Garamond, 2006.

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Culutura é patrimônio: um guia. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.

OLIVEIRA, Rui. Três anjos mulatos do Brasil. São Paulo: FTD, 2011.

OLIVEIRA, Selma Regina. “Imaginário e Narrativa”. In: CASTRO, Gustavo (Org.). Mídia e Imaginário. São Paulo: Annablume, 2012.

OLIVIERI, Antonio Carlos; VILLA, Marco Antonio (Org.). Cronistas do descobrimento. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 2000.

 ORICO, Osvaldo. Mitos ameríndios e Crendices amazônicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.

ORTEGA, Francisco. O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986.

OVÍDIO, Públio. Arte de amar. Tomo I. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert, 1862. Disponível em: < https://pt.scribd.com/document/338360787/Arte-de-Amar-de-Publio-Ovidio-Naso>. Acesso em: outubro de 2015.

PAIVA, Salvyano Cavalcanti. Nada de novo no cinema brasileiro, exceto... nudismo, macumba e malandragem. A Cena Muda, v.32, n. 5, p. 10-13; 26 , 31 de janeiro de 1952. Disponível em: < http://memoria.bn.br/pdf/084859/per084859_1952_00005.pdf>. Acesso em: outubro de 2016.

PAIXÃO, Marcelo; CARVANO, Luiz M. “A variável cor ou raça nos interior dos sistemas censitários brasileiros”. In: SANSONE, Lívio; PINHO, Araújo Osmundo (Org.). Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed.. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008.

 PEDROSA, Heitor. O Aleijadinho: A vida intensa e a desventura. São Paulo: Limitada, 1940.

PEDROSA, Inês. No coração do Brasil: seis cartas de viagem ao Padre António Vieira. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2007.

PENNA, Lucy. Corpo sofrido e mal-amado: as experiências da mulher com o próprio corpo. São Paulo: Summus, 1989.

PEREIRA, Kênia Maria de Almeida. A poética da resistência em Bento Teixeira e Antônio José da Silva, o Judeu. São Paulo: Annablume, 1998.

PEREIRA, Maria Antonieta (Org.). Lendas e mitos do Brasil. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Linha Ed. Tela e Texto, 2007.

PEREIRA, Moacir Soares. Índios Tupi-Guarani na pré-história: suas invasões do Brasil e do Paraguai, seu destino após o descobrimento. Maceió: EDUFAL, 2000.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

PESSOA, Fernando. Mensagem. Caio Gagliardi (Org.). São Paulo: Hedra, 2007.

PERNIOLA, Mário. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. Tradução Maria do Rosário Toschi. São Paulo: Studio Nobel, 2000.

 PINHO LEAL, Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de. Portugal antigo e moderno: diccionario geographico, estatistico, chorographico, heraldico, archeologico, historico, biographico e etymologico de todas as cidades, villas e freguezias de Portugal e de grande numero de aldeias. Lisboa: Editora de Mattos Moreira, 1873. 7 v. Disponível em: < https://archive.org/details/gri_33125005925827>. Acesso em: outubro de 2015.

 

PISSOLATO, Elizabeth de Paula. A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo: Editora da UNESP, 2007.

PIVETA, Marcos. A America de Luzia. Revista Pesquisa FAPESP. Arqueologia. São Paulo. Maio de 2012. Disponível em: < http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/08/22/a-américa-de-luzia/>. Acesso em: agosto de 2016.

PLATÃO. Diálogos: O Banquete – Fédon – Sofista – Político. Traduções de José Cavalcante de Souza; Jorge Paleikat; João Cruz Costa. São Paulo: Editora Abril, 1972.

PLATÃO. Hípias Maior. Tradução Carlos Alberto Nunes. Pará: Editora da Universidade Federal do Pará. 1980.

______. Fedro ou Da Beleza. Tradução e notas de Pinharanda Gomes. Lisboa: Guimarães Editores, 2000.

______. Parmênides. Texto estabelecido e anotado por John Burnet; tradução, apresentação e notas de Maura Iglésias e Fernando Rodrigues. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.

______. Diálogos: Fedro, Cartas e Primeiro Alcibíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora UFPA, 2007.

PONDÉ, Luis Felipe. A era do ressentimento: uma agenda para o contemporâneo. São Paulo: LeYa, 2014.

PONTES, Roberto. “Semana de Arte de 1922, razões e consequências”. In: ACADEMIA Cearense de Letras. Modenismo: 80 anos. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2002. Disponível em:< http://www.academiacearensedeletras.org.br/publicacoes.php>. Acesso em: fevereiro de 2017.

 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. 2 ed. São Paulo: IBRASA ; Brasília: INL, 198l.

 

PRESSER, Margaret. Pequena Enciclopédia para Descobrir o Brasil. Rio de Janeiro: Editora SENAC, 2006.

QUEIROZ, Tereza Aline Pereira de. O Renascimento. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.

RAMOS, Denise Gimenez; MACHADO JR., Pericles Pinheiro. “Individuação e Subjetivação”. In: PINTO, Graziela Costa (ed.). Memória da Psicanálise: Jung: volume 2. São Paulo: Duetto Editorial, 2009.

RAMOS, José Mario Ortiz. Cinema, televisão e publicidade: cultura popular de massa no Brasil nos anos 1970-1980. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2004.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19 ed.. São Paulo: Saraiva, 1999.

 REIS, José Carlos. As identidades do Brasil 2: de Calmon a Bomfim: a favor do Brasil: direita ou esquerda? Rio de Janeiro: FGV, 2006.

 REVISTA BRASILEIRA DE GEOGRAFIA. Devassamento e Ocupação da Amazônia Brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, abril-junho de 1942. Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1942_v4_n2.pdf>. Acesso em: outubro 2015.

REVISTA Ilustração Brasileira. Rio de Janeiro: Sociedade Anônima O MALHO, Ano 4, 29 n., janeiro de 1923. 72 f. Disponível em: < http://docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=bib_redarte&pagfis=1372>. Acesso em: janeiro de 2015.

RIBEIRO, Hélcion. A identidade do brasileiro: “capado, sangrado” e festeiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

RIBEIRO, João. Curiosidades verbais. 3 ed. Rio de Janeiro: ABL; Biblioteca Nacional, 2008

RODRIGUES, Nelson.  A Cabra Vadia: novas confissões. Rio de Janeiro: Agir, 2007.

ROSENKRANZ, Karl. Estética de lo Feo. Traduccion y edición de Miguel Salmeron. Spain: Julio Ollero Editor, 1992.

SADE, Marquês. A filosofia na alcova, ou, Os preceptores imorais.  Tradução, posfácio e notas de Contador Borges. São Paulo: Iluminuras, 1999.

SAMAIN, Etienne. Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na Geografia Nacional. São Paulo: Casa Eclética, 1901. Disponível em: <http://www.etnolinguistica.org/biblio:sampaio-1901-tupi>. Acesso em: agosto de 2016.

SÁNCHEZ VAZQUEZ, Adolfo. Convite a Estética. Tradução de Gilson Baptista Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Barroco, alma do Brasil. Rio de Janeiro: Comunicação Máxima, 1971.

______. Barroco: do quadrado à elipse. São Paulo: Rocco, 2000.

SANTOS, Daniel Zanella. Narratividades e tópicas em Uirapuru (1917) de Heitor Villa-Lobos. 2015. 177 p.. Dissertação (Mestrado). Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Música, Florianópolis, 2015. Disponível em: < http://tede.udesc.br/bitstream/handle/1560/1/122576.pdf>. Acesso em: setembro 2015.

SANTOS, Fabiano Rodrigo da Silva. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.

SANTOS, Tobelem Wayne. Compreendendo os Hinos Brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Vozes ltda., 2002.

SANTOS NETO, Artur Bispo dos. A Interpretação Alegórica do Mundo na Filosofia de Walter Benjamin. Maceió: edUFAL, 2007.

SCHEDEL, Hartmann. Liber chronicarum. Nuremberg: 1493. Disponível em: < https://www.wdl.org/pt/item/4108/>. Acesso em: agosto de 2016.

SCHUMAHER, Schuma; VITAL BRAZIL, Érico. Mulheres Negras do Brasil. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2007.

SCLIAR, Moacyr. A mulher que escreveu a Bíblia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SEEGER, Anthony. Os índios e nós: estudos sobre sociedades tribais brasileiras. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1980.

SHAKESPEARE, William. Macbeth. USA: Burgess, Stringer & Co., 1848.

SILVA, Deonísio da. A vida íntima das palavras: origens e curiosidades da língua portuguesa. São Paulo: Arx, 2002.

SILVA, Verônica Guimarães Brandão. Estética da Monstruosidade: o imaginário e a teratogonia contemporânea. 2013. 270 f.. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Universidade de Brasília, Brasília, 2013. Disponível em: < http://repositorio.unb.br/handle/10482/12933>. Acesso em: fevereiro de 2013.

SMITH, Adam. “Of the effect of utility upon the sentiment of aprobation consisting of one section”. In: HEILBRONER, Robert L. The Essential Adam Smith. New York: WW Norton & Company, 1986.

SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do Grotesco. Rio de Janeiro: MAUAD, 2002.

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. 3 ed. São Paulo: BPB Companhia Editora Nacional, 1938. Disponível em: < http://www.brasiliana.com.br/obras/tratado-descritivo-do-brasil-em-1587>. Acesso em: janeiro de 2015.

SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003.

SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

______. Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI e-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Karl Friedrich Philipp Von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Tradução de Lucia Furquim Lahmeyer. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1981.

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olympo, 2008.

 SUE, Jean-Joseph. Eléments d'Anatomie à l'usage des Peintres, des Sculpteurs et des Amateurs. Paris, 1797. Disponível em: <https://books.google.com.br/books?id=-B5fapMLXfcC&redir_esc=y>. Acesso em: julho de 2015.

 

 SCHWARCZ, Lilia Monitz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

 SCRUTON, Roger. Beleza. Lisboa: Guerra e Paz Editores S. A., 2009.

SIDAOUI, Rogério. Curiosidades históricas. São Paulo: IBRASA, 2004.

 SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos. Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

 SPINA, Segismundo. A poesia de Gregório de Matos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.

STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Porto Alegre: L&PM, 2013.

TARNOPOLSKY, Christina H. Prudes, Perverts, and Tyrants: Plato's Gorgias and the Politics of Shame.  Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2010.

TATARKIEWICZ, Władysław. História de la estética II: La estética medieval. Spanish: Akal Ediciones, 2002.

TEIXEIRA, José de Monterroso. Aleijadinho, o teatro da fé. São Paulo: Metalivros, 2007.

THEML, Neyde. Artesãos e status na Pólis dos Atenienses. Laboratório de História Antiga (LHIA), IFCS/UFRJ. Phoînix. Rio de Janeiro: Mauad, 2004.

THÈVET, André. Singularidades da França Antártica. Tradução de Estevão Pinto. Tradutor: Estevão Pinto. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944. Disponível em: < http://www.brasiliana.com.br/obras/singularidades-da-franca-antartica>. Acesso em: janeiro de 2015.

TOYNBEE, Arnold Joseph. An historian's approach to religion: Based on Gifford lectures delivered in the University of Edinburgh in the years 1952 and 1953. London: Oxford University Press, 1956.

TOBIAS, José Antônio. Feiura: o que é e como se cura. São Paulo: AM Edições, 1992.

______. História das ideias estéticas no Brasil. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1967.

______. O Feio. São Paulo: Editora Herder, 1960.

TRABATTONI, Franco. Platão. Tradução de Rineu Quinalia. São Paulo: Annablume, 2010.

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

VARELLA, José. Amazônia latina e a terra sem mal. Pará: Imprensa Oficial do Estado do Pará, 2002.

VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Convite à estética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

VELTHEM, Lúcia Hussak van. “Feitos por inimigos”. Os brancos e seus bens nas representações Wayana de contato. In: ALBERT, Bruce; RAMOS, Alcida Rita (Org.). Pacificando o branco: cosmologias do contato no norte-amazônico. São Paulo: Editora UNESP; Imprensa Oficial do Estado, 2002.

VIDAL, Lux.  A pintura corporal e a arte gráfica entre os Kayapó-Xikrin do Cateté. In: ______ (Org.). Grafismo Indígena: estudos de antropologia estética. São Paulo: Studio Nobel; Editora da Universidade de São Paulo; FAPESP, 1992.

VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão do Espírito Santo. Sermões. Tomo V. Lisboa: J.M.C. Seabra & T.Q. Antunes, 1855.

VIEIRA, Domingos. Grande Diccionario Portuguez. Porto: Typographia de Antônio José da Silva Teixeira, 1871.  Disponível em: < http://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/28254>. Acesso em: janeiro de 2016.

VIEIRA, Domingos. Grande diccionario Portuguez. Porto: Typographia de Antônio José da Silva Teixeira, 1873. Disponível em:< http://bibdig.biblioteca.unesp.br/handle/10/28254>. Acesso em: outubro de 2014.

VOLPE, Maria Alice. Villa-Lobos e o Imaginário Edênico de Uirapuru. Brasiliana-Revista Semestral da Academia Brasileira de Música, Rio de Janeiro, n. 29, p. 31-36, ago 2009. Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/Maria_Volpe5/publication/236617685_Villa-Lobos_e_o_imaginario_edenico_de_Uirapuru/links/0c96051852f3668b41000000.pdf?origin=publication_detail>. Acesso em: agosto de 2016.

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

ZIMERMAN, David E. Etimologia de Termos Psicanalíticos. Porto Alegre: Artmed, 2012.

______. Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise. Porto Alegre: Artmed, 2008.

WEBER, Max. Índia: “O Brâmane e as Castas”. In: GERTH, Hans; MILLS, Wright (Org.). Max Weber – Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1974.

WILLIAMS, Victoria. Celebrating Life Customs around the World: from baby showers to funerals – Aging and Death. Califórnia: ABC-CLIO, 2016. 3v.

ZWEIG, Stefan. Brasil, país do futuro. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.

 

 

SITE CONSULTADO:

PORTINARI, Candido. Hans Staden (ilustrações). Projeto Portinari. Disponível em: < http://www.portinari.org.br/#/acervo/conjunto/36 >. Aceso em: outubro de 2016.

 

REFERENCIAL FÍLMICO:

 

COMO era gostoso o meu francês. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Produção: Klaus Manfred Eckstein; Nelson Pereira dos Santos, Luis Carlos Barreto; César Thedim. Roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Imagem: Dib Lutfi. Montagem: Carlos Alberto Camuyrano. Música: Zé Rodrix; Guilherme Magalhães Vaz. Áudio: Português, Tupi, Francês. Brasil: Condor Filmes; Produções Cinematográficas L.C. Barreto Ltda. 1973. 79 min, cor, 35mm.

 

ELE, o Boto. Dirigido por Walter Lima Júnior. Rio de Janeiro: L. C. Barreto Produções Cinematográficas, Embrafilme 1987. Ficção; Fantasia; Drama, 120min: som, cor, 35 mm. Filme cinematográfico.

 

HANS Staden. Direção e roteiro: Luiz Alberto Pereira. Produção: Jorge Neves (Portugal); Luís Alberto Pereira. Composição/Música: Marlui Miranda; Lelo Nazario. Montagem: Verônica Kovensky. Brasil/Portugal: Instituto Português da Arte Cinematográfica e Audiovisual; Jorge Neves Produção Audiovisual; Lapfilme. 1999. 92 min, cor, DVD.

 

MACUNAÍMA. Direção e roteiro: Joaquim Pedro de Andrade. Produção: Condor Filmes, Filmes do Serro, Grupo Filmes. Música: Jards Macalé; Orestes Barbosa; Sílvio Caldas; Heitor Vila-Lobos. Direção de arte:        Anísio Medeiros. Direção de fotografia: Guido Cosulich; Affonso Beato. Edição: Eduardo Escorel. Embrafilme. 1969. Comédia, Fantasia. 110 min: som, cor, DVD.

 

O MUNDO mágico dos Trapalhões. Direção: Sílvio Tendler. Roteiro Cláudio Bojunga. Narração: Chico Anysio. 1981. Documentário, comédia. 89 min: som, cor, DVD.

 

[1] Rubem Alves, ao conversar com uma jovem, afirma que “as únicas pessoas resolvidas estão no cemitério” (2010, p.07).

[2] Na obra “Do Universo à Jabuticaba”, Rubem Alves (2010, p. 11) afirma que sua vida se divide em três fases: 1ª) o mundo é do tamanho do universo e é habitado por deuses, verdades e absolutos; 2ª) o mundo encolheu, ficou mais modesto e habitado por heróis revolucionários que cantavam canções de transformar o mundo; 3ª) mortos os deuses, mortos os heróis, mortas as verdades e os absolutos, o mundo se encolheu ainda mais e passou a ser belo e efêmero como uma jabuticabeira florida.

[3] A palavra tupi para feio, mau, ruim, sujo é “poxy/poxi”. Poxiculturografia é o percorrer cultural sobre o feio no Brasil.

[4] A “Primeira realidade” é o palpável, o cotidiano e as necessidades físicas; nossas necessidades físicas e biológicas.

[5] Alguma coisa acontece no meu coração/ Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João/ É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi/ Da dura poesia concreta de tuas esquinas/ Da deselegância discreta de tuas meninas/ Ainda não havia para mim, Rita Lee/ A tua mais completa tradução/ Alguma coisa acontece no meu coração Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João/ Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto/ Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto/ É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho/ Nada do que não era antes quando não somos Mutantes / E foste um difícil começo/ Afasta o que não conheço/ E quem vem de outro sonho feliz de cidade/ Aprende depressa a chamar-te de realidade/ Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso/ Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas/ Da força da grana que ergue e destrói coisas belas/ Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas/Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços/ Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva/ Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba/ Mais possível novo quilombo de Zumbi/ E os Novos Baianos passeiam na tua garoa/ E novos baianos te podem curtir numa boa. (Sampa, Caetano Veloso, 1978).

[6] As frases de Charles de Gaulle e Zefirelli estão presentes na obra Duailibi Essencial (DUAILIBI; PECHLIVANIS, 2006, p. 49).

[7] Segundo a OMS, globalmente temos 5,1% das mulheres e 3, 6 % dos homens com depressão. Artigo de Jamil Chade, para o jornal Estadão (São Paulo), no dia 23 de fevereiro de 2017, na coluna “Saúde”.

[8] Inscrição presente no templo dedicado a Apolo, em Delfos. Em Protágoras, Platão cita “Tales de Mileto, Pítaco de Mitilene, Bias de Priene, Sólon, Cleobulo de Lindos, Míson de Queneia e, em sétimo lugar, Quilon da “Lacedemónia”, como os homens que grafaram as máximas Conhece-te a ti mesmo e Nada em excesso (343a-343b). A inscrição aparece, também, na obra “Primeiro Alcibíades” (124b) (PLATÃO, 2007, p. 266).

[9] Cf. Edgar MORIN, O Método 1: a natureza da natureza (1987). Primeira Parte: “A ordem, a desordem, a organização”.

[10] Canção criada pelo compositor Nelson Biasoli (1931-2014), em 1949, para animar uma competição esportiva estudantil. Biasoli também compôs “A Bênção, João de Deus” para a primeira visita do Papa João Paulo II ao Brasil, em 1979.

[11] “Revelar” vem do latim revelare e tem o mesmo significado de “descobrir”, é o oposto de “desvelar”. Cf. ZIMERMAN, David E.  Etimologia de Termos Psicanalíticos (2012, p. 220).

[12] O grotesco refere-se às imagens que apareceram em fins do século XV, em escavações feitas em Roma nos subterrâneos das Termas de Tito. São pinturas ornamentais chamadas de grottesca, derivado do substantivo italiano grotta (gruta). Imagens que jogam com o insólito, o fantástico, com as formas vegetais, animais e humanas que se confundiam e transformavam entre si. Cf. Mikhail M. BAKHTIN, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais (1993, pp. 27- 28).

[13] Honoré Balzac, prefácio de Une Fille d'Ève: scène de la vie privée: Il n'y a rien qui soit d'un seul bloc dans ce monde, tout y est mosaïque. Vous ne pouvez pas raconter chronologiquement que l'histoire du temps passé, système inapplicable à un present qui marche.

[14] Gilberto de Melo Kujawski (2001, p. 53-56) propõe na obra Ideia do Brasil: a arquitetura imperfeita, uma questão para nossa identidade nacional. Ao invés do termo “identidade” (conceito excessivo, um exagero retórico) para um povo que não assume nem sua tipicidade nacional, usarmos o termo “mesmidade”, pois o povo brasileiro está sempre mudando e continua o mesmo, apesar de todas as transformações e absorções culturais por que passa.

[15] Diabólico, no sentido grego diabolos (lançar contra ou através de, desunir, separar). 

[16] Simbólico, no sentido grego symbolos (lançar junto, jogar o mesmo, unir). 

[17] Para Neyde Theml (2004, p. 251-254), Daídalon, Daídolos que remete a esfera da téchne (técnica) e da métis (astúcia). Remete a Dédalo, encarnação do artista, artesão construtor do labirinto. Palavra que aparece em textos de Hesíodo e Homero. Daídolon como verbo: fazer, forjar, colocar sobre e ver. Daidáleos e polydaídalos se apresentam ao lado de outras palavras que indicam belo, brilhante. Daídolon como objetos preciosos, ligados a: detenção de poder real, objetos de talismã, objetos mágicos com destinação divina ─ uso nefasto para os homens. Objetos que provocam a ilusão, que denotam um artifício, uma astúcia, uma mentira, uma dissimulação.

[18] ROSENKRANZ, 1992, p. 24, tradução nossa.  “Aesthetik des Hässlichen” (1853), obra publicada inicialmente em alemão. Usamos a tradução espanhola “Estética de lo feo”, feita Miguel Salmerón e publicada em 1992. Lo feo se convierte en parte necesaria del arte como elemento de la realidad que debe representar.

[19] Giorgio Vasari (1511-1574) se referia ao termo como Rinascita. A palavra “Renascimento” foi usada, em 1855, pelo historiador francês Jules Michelet (1798-1874) em um volume que lançou, sobre a França, no século XVI ― “O Renascimento”. Cf. Tereza A. P. de QUEIROZ, O Renascimento (1995); Cf. Jacques LE GOFF, O imaginário medieval (1994, pp. 36-37).

[20] Culture is not causeless and disembodied. It is generated in rich and intricate ways by information-processing mechanisms situated in human minds.

[21] O que não é presença única, “agora ou nunca” ou “aqui e agora”. Para Walter Benjamin (1892-1940), quando não há a integridade do “aqui e agora” de um objeto artístico, há a “perda da aura” (perda da autenticidade e abalo à tradição). Cf. Walter BENJAMIN, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1936).

[22] A palavra resistência é composta de re + sistere: re, “mais uma vez”, “um retorno/recomeçar”; sistere (latim), “continuar a existir”. Cf. David E. ZIMERMAN, Vocabulário Contemporâneo de Psicanálise (2008, p. 366).

[23] “O conhecimento não é insular, mas peninsular” (MORIN, 1999, p. 26).

[24] “Based on Gifford lectures delivered in the University of Edinburgh in the years 1952 and 1953”. A definição aparece na segunda parte da obra (PART II: Religion in a Westernizing World), no vigésimo capítulo: Selves, Suffering, Self-Centredness, and Love.

[25] Amphibium: do grego, amphi (“ambos”) e bio (“vida”), que significa “ambas as vidas” ou “em ambos meios”. Significa “em duas formas de natureza”. Cf., David E.  ZIMERMAN, Etimologia de Termos Psicanalíticos (2012, p. 32).

[26] Publicado pela primeira vez em 1643. Usamos a edição de 1889.

 [27] Human nature is, in truth, a union of opposites that are not only incongruous but are contrary and conflicting: the spiritual and the physical, the divine and the animal; consciousness and subconsciousness, intellectual power and moral and physical weakness, unselfishness and self-centredness; sainthness and sinfulness; unlimited capabilities and limited strength and time; in short, greatness and wretchedness. But the paradox does not end here. The conflicting elements in Human Nature [...] they are inseparable from one another. [...]. Human nature is an enigma; but Non-Human Nature is an enigma too.

[28] Conceito enunciado originalmente por Heráclito e significa “passar ao contrário”, o jogo de contrastes do acontecer. Termo utilizado na psicologia por Jung para caracterizar o aparecimento do contraste inconsciente. “(...) atitudes que levadas ao extremo, acabarão por transformar-se em algo totalmente oposto” (JUNG apud CABRAL; NICK, 2006, p. 98).

[29] Cf. Gilles DELEUZE, A Dobra: Leibniz e o Barroco (1991, pp. 43- 46).

[30] A beleza como a mais vistosa e a mais amorosa. Um ser (hoc) que não é beleza, mas participa da beleza. A Beleza é o brilho ou esplendor da Verdade. Para Platão, “a beleza de um ser material qualquer depende da maior ou menor comunicação que tal ser possui com a Beleza Absoluta, que subsiste pura, imutável e eterna, no mundo suprassensível das Ideias”, afirma Ariano Suassuna (2008, p. 43). A beleza torna visível o espiritual.

[31] [...]: tout être, même laid par lui-même, devient beau dès qu'il manifeste une profonde émotion: en lui, c'est cette émotion qui est belle.

[32] A aparência é o nosso sacramento, nosso ser ou não ser atraente, o ego invisível que o mundo presume ser o espelho do ego invisível, interior. Ninguém pode resistir à aparência (ETCOFF, 1999, p. 15).

[33] Cf. Sigmund FREUD, “O estranho” (1919). In: FREUD, S. Obras Completas. Edição Standard Brasileira. v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

[34] Santo Agostinho, ao comentar a passagem de Isaías, revela a imagem do Christus humilis: “Não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos. Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos trabalhos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, (...).” (Isaías, 53: 2-3).

[35]  O próprio Esopo (Asoph, em hebraico significa “o verso”, “a poesia”) era uma entidade mítica. Cf. Teófilo BRAGA, Contos Tradicionais do Povo Português – volume I (1883; 1914; 2013).

[36] Hipías foi um sofista (habilidoso no ensino da virtude, da sabedoria, “mestre da virtude”) e um embaixador de Élis. Dono de uma excelente memória, Hipías cobrava pelos ensinamentos repassados em aulas particulares e palestras públicas sobre sabedoria.

[37] “Hipías Maior”, 304e.

[38] O diálogo ocorre entre Fedro (jovem retórico) e Sócrates. Fedro representa a máscara do literato.

[39] Mencionado no “Fedro” (246e).

[40] Banquete, em nossa língua, não traduz muito bem o grego sympósion, palavra formada por syn, “com, juntamente” e pínein, “beber”, ou seja, “beber em companhia de”. Ao que parece, os gregos distinguiam syndeîpnon, em latim concenatio, o “comer junto”, o banquete propriamente dito, com muita comida e muita bebida, como, aliás, afirma Pausânias em “O Banquete” (176 a) – sympósion, em que se bebia, e certamente muito, mas se tratava também de algum assunto, de algum tema sério – como aconteceu em O Banquete de Platão, em que se discorre sobre o amor. Cf. Junito de Souza BRANDÃO, Mitologia Grega (1987, v. 3, p. 34).

[41] Erixímaco possui ideias muito próximas as de Heráclito. Representa a máscara da medicina. Mencionado no “Fedro” (268 a).

[42] Político inteligente. Pausânias é a representação da máscara do refinado orador político.

[43] Este “amor urânico”, desligando-se da beleza do corpo, elevou-se até a beleza da alma, para atingir a Beleza em si, que era partícipe do eterno (BRANDÃO, 1987, v. 3, p. 350).

[44]  Paper 942, VIII1 A 189, 1847. What Socrates says about loving tha ugly is really the Christian doctrine of love to the neighbor. The ugly is the reflected, consequently the ethical object; whereas the beautiful is the immediate object which all of us therefore  most willing love. In this sense “the neighbor” is the “ugly”.

[45]A tarefa de um daímon era chegar à unidade na multiplicidade. Sua morte era a anagnórisis, o “conhecer-se por inteiro”. Com a morte do amor se fechava o uróboro (cobra que engolia a própria cauda). Sua vitória final, seu triunfo derradeiro desencadeavam e liberavam novamente o fluir da vida no corpo do mundo. Amar a si mesmo (Uno) para amar outros (Múltiplo) e se amar cada vez mais.

[46] Eros também é chamado de Fanes (do grego Phánes; do verbo phaínein,“brilhar, fazer-se visível, aparecer”) é o “Brilhante, a Luz que brilha”. Alado, andrógino e autógamo, brilhante e etéreo, dá a luz às primeiras gerações divinas (BRANDÃO, 1987, v. 2, p. 156).

[47] Cf. HESÍODO, Teogonia.

[48] Sobre o Belo I, 6 [1]. Cf. José Carlos BARACAT JÚNIOR, Plotino, Enéadas I, II e III - Porfírio, Vida de Plotino (2006, pp.303-320).

[49] “Se o ser humano é o único animal susceptível de ter cócegas, esse fato deve-se, por um lado, à finura da pele, mas também por se tratar do único animal que ri” (ARISTÓTELES, 2010, 673 a.).

[50] [...], a kômos was a group of revelers, a semi-riotous party, often fueled by wine and music, that would roam through the streets, singing, shouting, making jokes among themselves or accosting others with mockery and insults.

[51] Para frei Domingos Vieira (1871, v.2, p. 303), em “Grande Diccionario Portuguez”, comédia vem do grego komôdía/kômôidia, de kômos e ôdê, canto; do latim comoedia. Na Grécia, a comédia era dividida em antiga (representavam os cidadãos de Atenas), média (representavam cidadãos sem nomear) e nova (personagens imaginários). Existiam os diferentes tipos de comédias: latina (palliata, togata, praetextata, tabernaria), histórica, heroica, italiana, de caráter, de costumes, de enredo, anedotica e alta comédia (personagens da alta sociedade). Cf., Domingos VIEIRA, Grande Diccionario Portuguez/Thesouro da lingua portugueza (1871).

[52] Recordando a lenda de Dédalo e Ícaro, o pai aconselha ao filho para não voar muito alto, pois o sol podia derreter as asas de cera; e nem muito baixo para não molhar as asas no mar. Voar no entremeio, entre o sol e o mar. Cf. Públio OVÍDIO, Arte de amar (1862, p.56).

[53] Nasceu oficialmente em 27 a.C. com Otávio Augusto e terminou em 476 d.C. (ou 1453, queda do Império Romano do Ocidente). Período pós-republicano da antiga civilização romana, caracterizado por uma forma de governo autocrática liderada por um imperador e por extensas possessões territoriais em volta do mar Mediterrâneo na Europa, África e Ásia. Cf. Patrick LE ROUX, Império Romano (2013).

[54] Não apenas os romanos e o mundo ocidental execravam o inimigo, a cultura oriental também abominava o estranho. Mesmo não sendo nosso foco, entendemos que a construção do inimigo se dá nas mais diferentes culturas.

[55] No imaginário popular a mulher é continuamente demonizada. Desde a Antiguidade, ao longo da Idade Média e até aos tempos modernos, as mulheres sofrem com a misoginia (ECO, 2011, p. 23).

[56] “O inimigo cheira sempre mal” (ciganos, hebreus, sarracenos, alemães, franceses, entre outros). Cf. Umberto ECO, Construir o inimigo e outros escritos ocasionais (2011, p. 17).

[57] Em Évora (Portugal), a Capela dos Ossos, situada na Igreja de São Francisco, construída no século XVII, possui a inscrição “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos” em sua entrada.

[58] A obra de W. Blake (1757-1827) possui os títulos O Casamento do Céu e do Inferno e O Matrimônio do Céu e do Inferno no Brasil. O matrimônio do Céu e do Inferno consiste numa sequência de aforismos, nos quais o autor estuda a moralidade convencional, proclamando que o homem não se reduz à dualidade alma/bem e corpo/ mal.

[59] Entre 1095 e 1270, expedições foram formadas sob o comando da Igreja, a fim de recuperar Jerusalém (que se encontrava sob domínio dos turcos seldjúcidas) e reunificar o mundo cristão, dividido com a “Cisma do Oriente”. Essas expedições ficaram conhecidas como Cruzadas. Cf. John HIRST, Breve História da Europa (2013).

[60] A iluminura medieval era realizada em manuscritos e incunábulos (livro impresso nos primeiros tempos da imprensa) e originou-se nos mosteiros.

[61] O deus Bes, representado pela figura de um anão deformado com juba de leão, fazia gestos e sons que intimidavam os inimigos e protegia a casa contra pesadelos. Cf. Verônica G. BRANDÃO, Estética da Monstruosidade (2013).

[62] O carnaval é colocado como ocasião de deboche e falta de respeito. No século XVII, o carnaval é dividido em dois: o carnaval aristocrático (baile de máscaras, em salões privados) e o carnaval urbano (MINOIS, 2003, p. 458).

[63] C’est que la fête est de la culture, non la revanche de la nature contre la culture, et que la culture est un ensemble de normes. Cf. Roger BASTIDE, Sociologie et Sexualité (1970, p. 69).

[64]  A obra de Rabelais foi condenada ao Index (Lista dos livros proibidos pela igreja católica) em 1564.

[65] Diálogo entre um poeta (Charles Baudelaire) e um passante amigo parisiense. O passante encontrou o poeta saindo de um local de má reputação. Segundo o Journal de Goncourt, no momento em que Baudelaire deixava um bordel, trombou com o crítico literário Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869), que estava entrando. Sainte-Beuve ficou tão extasiado que mudou de ideia e foi beber com Baudelaire. O texto “Perda da Auréola” foi classificado como “impróprio para publicação” e que, por isso, permanecera por anos desconhecido na literatura de Baudelaire. Cf. David HARVEY, Paris, capital da modernidade (2015); Walter BENJAMIN, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo (1989, p. 144).

[66] The beautiful and the ugly, the literal and the metaphoric, the sane and the insane, the humorous and the serious ... all these and even love and hate are matters that science presently avoids. But in a few years, when the slit between problems of mind and problems of matter ceases to be a central determinant of what it is impossible to think about, they will become acessible to formal thought. At present most of these matters are simply inaccessible, and scientists — even in anthropology and psychiatry — will step aside, and for good reason.

[67] Poema “Hino Nacional” presente em Poesia completa (2006, p. 51).

[68] G. Durand é o fundador do Centro de Pesquisa sobre o Imaginário (C.R.I.), Grenoble, em 1966.

[69] Segundo historiadores, antropólogos e arqueólogos houve uma migração humana através do estreito de Behring, uma ponte de gelo que, durante os períodos glaciais, unia o extremo leste da atual Sibéria (Ásia) ao extremo oeste do Alasca (América).

[70] Penúltimo período em que se divide a era Cenozóica. O termo Pleistoceno/Plistoceno deriva do grego pleistos (“bastante, mais”) e kainos (“novo”), significando “bastante novo”. O período termina com o recuo da última glaciação, há cerca de 12 mil anos  (10 mil a. C.), dando lugar ao período Holoceno (atual período). Holoceno do grego holos (“todo”) e kainos (“recente”), significando “totalmente recente”. Cf. Julio C. MELLATI, Índios do Brasil (2007, pp. 18-20).

[71] Atualmente vivemos no período Holoceno e ainda encontramos artefatos do período Pleistoceno, a maioria no planalto brasileiro.

[72] Uma das regiões, junto com os sítios de São Paulo e sudeste do Piauí, com maior localização de artefatos dos períodos Pleistoceno e Holoceno.

[73] Luzia foi descoberta pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire (1917-1977) durante a década de 1970.

[74] Esqueleto quase completo de uma mulher adulta, encontrado em Afar (Etiópia-África), em 1974, classificado como Australopithecus afarensis (do latim australis, “do sul” e do grego pithekos, “macaco”). O fóssil possui braços mais longos do que o dos humanos, mas com postura ereta e bipedalismo. Cf. BORGES-OSÓRIO, Genética Humana (2013, p. 689-690).

[75] Do latim mirabilia, maravilha, coisas admiráveis, prodígios, portentos, estranho, notável.  Raiz mir (miror, mirari), que comporta algo visual. O maravilhoso trata de algo admirado pelo olhar. Possui relação com speculum, espelho, reflexo.

[76] Quando falamos “falo”, estamos falando de uma representação cheia de outros significados, como união, criação e até castigo. Falo é sempre ereto, pronto para o ato sexual e é diferente de pênis (órgão genital masculino). Cf. Samuel G. Frederick BRANDON, Diccionario de religiones comparadas (1975, p. 457).

[77] profanación de lós santos mistérios de la naturaleza”.

[78] Cidade localizada na província japonesa de Kanagawa, localizada na região de Kanto, ilha de Honshu.

[79] Segundo a lenda xintoísta, um demônio tentou cortejar uma donzela que recusou seus avanços. Irritado por isso, o demônio decidiu que se ele não poderia ter a donzela, então nenhum outro homem a teria. O demônio passou a morar na vagina da donzela e na noite de núpcias arrancou o pênis do marido (vagina dentada). A mulher procurou a ajuda de um ferreiro que moldou um falo de aço para quebrar os dentes do demônio, o que levou à consagração do item. Cf. Victoria WILLIAMS, Celebrating Life Customs around the World: (...). (2016, p. 278)

[80] Cf. Maria Helena FARELLI, As 7 giras de Exu: histórico daś lendas e dos demônios da Umbanda (1974).

[81] Segundo uma lenda indígena sobre os “Filhos do Trovão” (Tupã), os primeiros homens e mulheres surgiram do sangue que caiu do corpo de Tupã (um ente personalizado). O sangue caiu do céu, rachado por um trovão, sobre Tupã. O sangue secou e se desprendeu do corpo do deus, caindo na Terra, em vários pedaços, e originando homens e mulheres (FRANCHINI, 2011, p. 11).

[82] Para Eduardo Bueno, na obra Brasil: uma História, os arqueólogos passaram a trabalhar, a partir de 1996, com o chamado “modelo das Quatro Migrações”, o primeiro fluxo migratório foi o do grupo ancestral de Luzia; os outros três foram empreendidos por populações mongóis (mesmo DNA das nossas populações indígenas atuais). A primeira leva migratória teria sido assimilada, ou substituída, pelas levas mongóis (2003, pp. 14-15).

[83] Carta de Pero Vaz de Caminha ao rei D. Manuel I (1469-1521) para comunicar-lhe o descobrimento das novas terras.

[84] Segundo explicação de Isidoro, arcebispo de Sevilha no século VII (BOORSTIN, 1989, p. 111).

[85] Também conhecida por Reforma Católica, foi o movimento, realizado pelo Papa Paulo III, que surgiu no seio da Igreja Católica Romana a partir de 1545 e que teria sido uma resposta à Reforma Protestante (de 1517) iniciada por Lutero (1483-1546).

[86] Frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1627). Cf. Laura de Mello e SOUZA, O Diabo e a Terra de Santa Cruz (1986).

[87] Pero Vaz de Caminha (1450-1500), escritor português que se notabilizou nas funções de escrivão da armada do navegador português Pedro Álvares Cabral (1467 ou 1468?-1520).

[88] João Batista Ribeiro de Andrade Fernandes (1860-1934), ou apenas João Ribeiro, escreveu a primeira edição da obra Curiosidades verbais em 1927. Usamos a terceira edição, feita em 2008, que integra a coleção Antônio de Morais Silva da Academia Brasileira de Letras. Cf. João RIBEIRO, Curiosidades verbais (2008).

 [89] É a Genealogia dos Deuses. Conjunto de divindades dos povos politeístas. Teogonia, do grego theós, deus, e gígnesthai, nascer, significa nascimento ou origem dos deuses.

[90] Sob o título de Mitologia brasílica, Monteiro Lobato (1882-1948) convidava os leitores a colaborar com informações sobre o diabrete, o “duendezinho” Saci-Pererê. Cf. Monteiro LOBATO, Inquérito sobre o Saci, Mitologia Brasílica. O Estado de São Paulo, 28 de janeiro de 1917. Cf. M. LOBATO, O Saci-Pererê: resultado de um inquérito (2008).

[91]  Os indígenas, segundo Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), não concebiam os elementos da natureza como entidades superiores e onipotentes. O indígena não atingira ao estado de personalizar a divindade e menos fixar-lhe direitos. A visão aqui apresentada é a de uma pesquisadora não indígena que tenta elencar uma ordem cosmogônica de criação até chegar aos elementos da fealdade entre os indígenas. Cf. L. da Câmara CASCUDO, Dicionário do folclore brasileiro (1989).

[92] O mito é o nada que é tudo/O mesmo sol que abre os céus/É um mito brilhante e mudo/O corpo morto de Deus, Vivo e desnudo/Este, que aqui aportou, /Foi por não ser existindo. /Sem existir nos bastou. /Por não ter vindo foi vindo/E nos criou./Assim a lenda se escorre/A entrar na realidade,/E a fecundá-la decorre. Em baixo, a vida, metade /De nada, morre. Cf. Fernando PESSOA, Mensagem (1934; 2007).

[93]  Jean de Léry (1536-1611), em 1556, foi para a França Antártica, colônia francesa estabelecida na baía de Guanabara, atual cidade do Rio de Janeiro, estabelecida por Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571). Embora Villegagnon, inicialmente, aceitasse os protestantes, passados oito meses da chegada destes, foram expulsos e acusados de heresia. Léry e outros protestantes ficaram exilados mais dois meses na região da Baía de Guanabara, acolhidos pelos índios tupinambás. Léry repudiava a inconstância religiosa, o desvio do Evangelho, os gestos e modo de viver no Brasil, a desumanidade com que tratava a sua gente e a maneira de vestir-se de Villegagnon. Cf. Jean de LÉRY, Viagem à terra do Brasil (1961).

[94] Os índios tukanos da Colômbia acreditam que o colibri copula com as flores, representando o pênis, a ereção, a virilidade radiosa (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 264).

[95] Arandu Arakuaa é também o nome de uma banda brasileira de folk metal formada em Brasília. O grupo mistura heavy metal com música folclórica brasileira, em especial de temas indígenas. A banda possui uma mulher no vocal e as músicas são em tupi-guarani.

[96]  Liber Cronicarum ou Schedelsche Weltchronic (“Crônica do Mundo de Schedel”) teve a primeira publicação (em latim) em 12 de junho de 1493. Edições em alemão, feitas por Georg Alt (1450-1510), a partir de 23 de Dezembro de 1493. A obra mostra uma história do mundo ilustrada, dividida em sete idades/eras/partes (cinco partes que vão da Gênesis até o nascimento de Cristo; as outras duas partes são sobre a época de elaboração do texto até o Juízo Final). As 645 ilustrações em xilogravura são autoria de Hartmann Schedel (1440-1514), ilustrações de Michael Wolgemut (1434-1519) e seu aprendiz Albrecht Dürer (1471-1528). A obra digital pode ser encontrada no site da Biblioteca Digital Mundial.

[97] Tupi-Guarani não é uma língua, mas uma família com mais de vinte línguas. Inclui o Tapirapé, o Wayampi, o Kamayurá, o Guarani (com seus dialetos), o Parintintin, o Xetá, o Tupi Antigo, entre outras línguas. Existem “línguas Tupi-Guarani”, não o Tupi-Guarani. Dessas, o Tupi Antigo é a língua que foi estudada primeiro e a que mais influenciou a formação da cultura brasileira. Para Couto de Magalhães (1876, p. 386), a palavra Tupi quer dizer “pequeno raio”, ou filho do raio, de Tupá (“raio”), com o “i” servindo de diminutivo. Já a palavra Guarani parece corruptela da palavra guarini que significa “guerra”.

[98] Tupi fora de início “Tub”, com o significado de progenitor, o pai supremo. A letra “b” depois foi trocada por “p” (Tub por Tup), não alterando a significação. Depois o “y” se uniu a palavra Tup (Tupy) e, logo depois, trocaram por “i” (Tupy por Tupi). O “i” em lugar do antigo “y” significava “água” e “lago”. Tupi significa “Pai das águas” ou “Senhor do Lago”. Tupi, também, significa “o grande pai, o primitivo, o progenitor” (SAMPAIO, 1901, p. 154).  No Brasil, a exclusão do “y” e sua substituição pelo “i” se deu no século XX. Cf. Moacir Soares PEREIRA, Índios Tupi-Guarani na pré-história: (...). (2000, pp. 47- 53).

[99] Cf. Elizabeth PISSOLATO, A duração da pessoa: mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). (2007, p.152; 202-203)

[100] Nheengatu-Tupi. Cf. Nic TUPAN-NA, Dicionário e gramática Tupi-Guarani (2000). O escritor Nícolas Ramanush recebeu a alcunha indígena dos Guaranis – Nic Tupan- Na (“Alma de Trovão”).

[101] Os outros feiticeiros: Maíra (em tupi, “Pai”) e Sumé (São Tomé, Tupanguaipira).

[102] Quando utilizamos “Poxi”, estamos nos referindo ao ser lendário. Para a palavra “feio”, utilizamos “poxi”.

[103] Macbeth, tragédia em cinco atos. No primeiro ato, cena 1, temos a fala em uníssono das bruxas: “Fair is foul, and foul is fair” (SHAKESPEARE,1997, p. 51).

[104] Povo do tronco tupi que se autodenominava Wuy jugu. A designação Munduruku (“formigas vermelhas”), como são conhecidos desde fins do século XVIII, foi dada pelos Parintintins, povo rival que estava localizado na região entre a margem direita do rio Tapajós e do rio Madeira. Daniel Munduruku (2001, p. 16) cita que os antepassados foram chamados Mundukuru (“formigas gigantes”) pelo tremor que causavam quando iam para a guerra.

[105] O palíndromo mutum também significa “mudo” ou ainda, “ave negra que só canta à noite”.

[106] Tatuagem, do grego clássico stigma (marcar, pontuar). A origem mais remota da palavra “estigma” que se conhece está no sânscrito tigmas (pontiagudo), origem do vocábulo indo-europeu steig- (cravar, encravar, furar), do qual se derivou o substantivo grego stígma. Ter um estigma é ter uma marca, uma cicatriz, um sinal visível. Os gregos marcavam o corpo de pessoas quando buscavam evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau sobre seu status moral e assim possibilitavam que ela fosse facilmente identificada e evitada. A palavra tattoo é uma onomatopaica de origem Polinésia introduzida pelo explorador James Cook, em 1762. Cf. Roosevelt Nogueira de HOLANDA, Palavras: origens e curiosidades (2010, p. 170).

[107] Cf. Toni MARQUES, Questão de pele. Revista de História da Biblioteca Nacional (jan. 2009); Cf. Leusa ARAUJO, Tatuagem, piercing e outras mensagens do corpo (2006).

[108] Usamos como fonte de pesquisa uma cópia virtual da obra de 1576, disponibilizada pelo site da Biblioteca Nacional de Portugal (http://purl.pt/121), e uma edição (2008) feita pelo Senado Federal, a qual foi utilizada nesta citação.

[109] O inimigo também era conhecido como “bárbaro”, aqueles de índole obtusa, força em excesso e desprivilegiados de razão. O substantivo “gentio” designava o bárbaro, o estrangeiro. O adjetivo “bárbaro” significa, em sua primeira acepção, “incivilizado”, “selvagem”, “inculto”. Para o grego antigo, designava todo aquele que não falava o idioma grego e cuja fala, portanto, se assemelhava a um balbucio ininteligível. O termo é uma onomatopeia, bar-bar, cuja duplicação da sílaba ba e da rugosidade da consoante r dão a entender que “falar bárbaro” é falar por borborismos e grunhidos indistintos. Cf. Jean-François MATTÉI, Civilização e Barbárie (2001, p. 77).

[110] Em 1584, em uma carta atribuída ao padre Anchieta, se diz que a palavra Carahiba/Caraiba quer dizer cousa santa ou sobrenatural. Os indígenas, vendo os portugueses chegando, em grandes coisas por cima das águas, como seres do outro mundo, passaram a chamar qualquer português de Caraiba (PRADO, 1981, p. 27).

[111] Matim Taperé ou Saci Cereré é o nome de um gênio em tupi; os guaranis diziam: Cérérê. O Matim Taperé era um curumim endiabrado que possuía as duas pernas (MAGALHÃES, 1876, p. 383).

[112] Cahapora é o nome de outro gênio da mitologia tupi; os guaranis dizem: Pora Curupira. (MAGALHÃES, op. cit.)

[113] Cf. Osvaldo ORICO, Mitos ameríndios e crendices amazônicas (1975).

[114] Segundo Adorno (1993, p. 61), a fealdade arcaica, as máscaras cultuais, canibalisticamente ameaçadoras, eram algo de intrínseco, imitação do temor que elas difundiam à sua volta como expiação.

[115] Em diferentes mitologias brasileiras encontramos Cobra Grande como um ser masculino (o pai) e, também, um ser feminino (a mãe). Segundo Cascudo (2001, p. 71), na lenda do surgimento da noite, a filha pede à Mãe, porém a moça chama ce rúba (em tupi, “meu Pai”).

[116] Teratogonia é a junção da palavra  grega terato (monstro) e gígnesthai (origem).

[117] Para Câmara Cascudo, numen mentium pode ser “mentira” e/ou “engano”. É uma divindade ou gênio do pensamento que usa o poder da mente para enganar. Cf. Câmara CASCUDO, Dicionário do Folclore Brasileiro (1988, p. 273).

[118] Anchieta se referia ao corupira, baêtatá e igupiara, na passagem XLVI, ao descrever as inúmeras coisas naturais encontradas na província de São Vicente (São Paulo): “No tempo em que estas coisas foram escriptas [sic], julgavam que os demônios podiam produzir a morte, ou ferimentos nos indígenas” (ANCHIETA, 1900, p. 47).

[119] Nome da faixa 1 do álbum Urubu (1976) de Antônio Carlos Jobim. Na letra o Boto é casado com uma sereia (“Um boto casado com sereia/Navega num rio pelo mar”).

[120] O boto rosado também é conhecido como boto branco da Amazônia (Inia amazonica), boto-cor-de-rosa, boto-vermelho, boto-rosa, boto-malhado, boto costa-quadrada e cabeça-de-balde.

[121] Observações feitas por Henri Walter Bates em onze anos (1848-1859) estudando a fauna e flora amazônica.

[122] O poema foi publicado pela primeira vez na “Revista da Antropofagia” de forma avulsa. Aparece no livro “Mironga e outros poemas” (1978) como um poema solto. “Putirum” é também um trecho de Cobra Norato (desde sua primeira edição em 1929). O poema foi retirado da obra “Putirum” (BOPP, 1968, p. 73).

[123] O conto também pode ser lido no site da Biblioteca Virtual de Literatura (Biblio.com.br). Fonte: http://www.biblio.com.br/conteudo/InglesdeSouza/mobaile.htm

[124] Cf. Therezinha J. P. FRAXE, Cultura cabocla-ribeirinha: mitos, lendas e transculturalidade (2004, p. 335).

[125] Sinopse da obra fílmica: “Segundo uma lenda amazônica, em noite de lua cheia, o Boto vem à terra e se transforma em humano para seduzir e ser amado pelas mulheres e odiado pelos homens. Uma de suas conquistas é Tereza, filha do pescador Zé Amaro, que engravida. Teresa fica sem o filho e acaba casando com Rufino, comerciante que explora os pescadores. Tereza começa a perceber que o boto voltou e teme pela irmã mais nova, Corina, que ignora o primo Luciano que gosta dela ao conhecer o ser lendário disfarçado de humano na Noite de São João”.

[126] Segundo Fernão Cardim (1881, p. 89), o nome “curupira” deveria ser numen loquelae (gênio da fala, do discurso) ou numen linguae (relacionado à criação através da língua do povo).

[127]  Cf. Revista Brasileira de Geografia (abril-junho de 1942). Devassamento e Ocupação da Amazônia Brasileira (1942, p. 274).

[128] Nomes do Curupira em diferentes localidades: Maguare (Venezuela), Selvaje (Colômbia), Chudiachaque (Peru), Kaná (Bolívia), o Pokai (Makuchis da serra de Roraima), entre outros (ORICO, 1975, p. 76).

[129] No Chile, caipora é Anchinallén (anão guia protetor dos animais).

[130] O Pé-de Garrafa é também conhecido como Cão-Coxo, Capenga, Cambeta e Pé-de-Quenga (BENEDITO, 2009).

[131] O dia do Saci, criado em 2005, é dia 31 de outubro, mesmo dia em que a América do Norte comemora o dia das bruxas (Halloween). Em São Luis do Paraitinga (São Paulo) existe a “Sociedade dos Observadores de Saci” (Sosaci).

[132] Explica a origem de pessoas e coisas; pesquisa as causas por que se formou uma tradição. Sobre as diferentes tipologias dos mitos. Cf. Victor JABOUILLE, Iniciação à ciência dos mitos (1994).

[133]  Os escravos da Roma antiga, que ganhavam liberdade, usavam um gorro vermelho (piléu/pileus/pilleum). Os republicanos na Revolução Francesa (1789) usavam barrete vermelho (cônico e mais frouxo na ponta). Câmara Cascudo (1988, p. 686) afirma que a carapuça vermelha do Saci veio das populares carapuças dos marujos de Portugal no século do Descobrimento. Na Roma antiga, havia a crendice de que quem arrancasse o piléu da cabeça dos íncubos (fantasmas opressores) receberia riquezas. O barrete frígio virou emblema de liberdade e cidadania. Cf. Luís da Câmara CASCUDO, Superstição no Brasil (2001, pp. 47-49).

[134] O saci é uma ave cuculiforme (cucos, corredores, anus ou sacis) da família Cuculidae. Também conhecido por verão, peitica, buraco-feio, crispim, fem-fem (Amazônia), matinta-pereira (do tupi) matintape’re, matintaperera, matintaperê, sem-fim, seco-fico, sêde-sêde, tempo-quente, peixe-frito e peitica no Maranhão.

[135]  Frase final do depoimento do senhor Manoel da Barroca (LOBATO, 2008, p. 54).

[136]  Peneira com duas taquaras mais largas que se cruzam no centro. As taquaras reforçam a peneira que é usada para carregar mandioca e milho.

[137] Cf. Alfredo BOSI, História concisa da literatura (1994, p. 367).

[138]  A obra utilizada foi Seleta em prosa e verso (1974) que contém o texto A outra perna do Saci. O trecho é a fala de um “doutor de pince-nez” que foi curar a barriga d’água da mulher do vendeiro.

[139] Waldemar Henrique da Costa Pereira (1905-1995), descendente de portugueses e indígenas, nasceu em Belém (PA). Os temas de suas composições são o folclore amazônico, indígena, nordestino e afro-brasileiro. Foi autor da primeira versão musical (1958) de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. Entres suas obras, temos: Boi-Bumbá, Foi Bôto, Sinhá!, Cobra-Grande, Tamba-Tajá, Matintaperêra, Uirapuru, Curupira, Manha-Nungára, Fiz da Vida uma Canção, Trem de Alagoas, Cabocla Bonita e Essa Nega Fulô.

[140] A data de composição correta desta obra, assim como de várias outras, é um ponto de debate recorrente na literatura sobre Villa-Lobos. Autores que pesquisaram sobre o processo composicional em Villa-Lobos consideram que Uirapuru não foi composta em 1917, mas sim durante a década de 1920 ou 1930. Cf. Daniel Zanella SANTOS, Narratividades e tópicas em Uirapuru (1917) de Heitor Villa-Lobos (2015). Amazonas, Uirapuru, Saci Pererê e Iara são os outros poemas musicais de Villa-Lobos.

[141]  O argumento pode ser visto/lido no Anexo A, versão em português. Números de referência no Museu Villa-Lobos: MVL 1990-21-0172 e MVL 1990-21-0173.

[142] Texto presente na página datilografada e que se encontra anexada ao manuscrito autógrafo P. 39.1.2 (partitura completa) do Museu Villa-Lobos, Rio de Janeiro.

[143] Pouroma vem do tupi, ”Arvore que ronca”. Também chamada de mapatí, uva-da-Amazônia, embaúba de vinho, embaúba de uva taranga preta e cucura.

[144] Iemanjá foi quem deu à luz ao Sol e à Lua, de seu ventre saiu tudo o que existe e respira sobre a terra. Cf. Lydia CABRERA, Iemanjá & Oxum: Iniciações, Ialorixás e Olorixás (2004).

[145] Osun, Oshun, Ochun ou Oxum é a orixá feminino das águas doces, dos rios e cachoeiras, da riqueza, do amor, da prosperidade e da beleza, cultuada no candomblé e umbanda. Irmã mais nova de Iemanjá. Oxum é uma e múltipla. Cf. Lydia CABRERA, Iemanjá & Oxum: Iniciações, Ialorixás e Olorixás (2004).

[146] Em 2004, o trabalho de Walmor recebeu uma sala especial na 26ª Bienal Internacional de São Paulo, participando nos anos seguintes do Panorama da Arte Brasileira, no MAM-SP, e de exposições coletivas internacionais. Em 2006, teve trabalhos da sua série “Unheimlich” participando da mostra Cryptozoology, nos Estados Unidos.

[147] Pero Vaz Caminha (Português, 1450-1500), Pero Lopez de Sousa (Português, 1500-1539), Manuel de Nóbrega (Português, 1517-1570), André Thevet (Francês, 1502-1590), Jean de Léry (Francês, 1534-1611), Hans Staden (Alemão, 1525-1576), José de Anchieta (Português, 1534-1597), Pero de Magalhães Gândavo (Português, 1540-1579), Fernão Cardim (Português, 1548/49-1625), Gabriel Soares de Sousa (Português, 1540-1592) e um piloto anônimo (Português, ?).

[148] O Tratado de Tordesilhas, assinado na povoação castelhana de Tordesilhas no dia 7 de junho de 1494, foi um tratado celebrado entre o Reino de Portugal e a Coroa de Castela para dividir as terras “descobertas e por descobrir” por ambas as Coroas fora da Europa. Cf. Armando J. BUCHMANN, O Estranho perfil do Rio Descoberto: Ensaios (2001, p. 23).

[149] Também conhecido como Arabutã, Ibirapiranga, Ibirapitá, Ibirapitanga, Orabutã, Pau-de-Pernambuco, Pau-de-Tinta e Pau-Pernambuco, é uma árvore leguminosa nativa da Mata Atlântica, no Brasil. Cf. Mauricio GRILLO JÚNIOR, História do Brasil Para Leigos: Da Fase Pré-Colonial ao Império (2013).

[150] A expressão “carregar a cruz” ou carregar os pecados, inicialmente encontrada em textos gregos rabínicos e no Novo Testamento, era uma forma de castigo no qual o flagelado, despojado de quase todas as roupas, açoitado, caminhava carregando o patíbulo (estrutura de madeira, trave horizontal) até o tribunal (local de suplício), onde esperava o “stipes” (haste vertical da cruz) para que fosse crucificado. Castigo sofrido por Jesus Cristo.

[151] Fado Tropical, música composta por Chico Buarque e Ruy Guerra, presente no álbum “Chico Canta” (Philips, 1973), lado B, faixa 2. Música composta para a peça de teatro musicada “Calabar: o elogio da traição”. Cf. Evelina HOISEL, “Fado Tropical”: jogos de ambivalência (2013).

[152] Os troncos humanos, segundo Magalhães (1876, p. 03) são compostos pelo preto, amarelo, vermelho e o branco.

[153] As raças foram, de fato, um conceito nativo no Brasil e, durante muito tempo, uma categoria de posição social. Cf. Antonio Sérgio Alfredo GUIMARÃES, Raça, cor e outros conceitos analíticos (2008).

[154] Wayana são povos de língua karib que habitam a região de fronteira entre o Brasil (rio Paru de Leste, Pará), o Suriname (rios Tapanahoni e Paloemeu) e a Guiana Francesa (alto rio Maroni e seus afluentes Tampok e Marouini). No Brasil, eles mantêm, há pelo menos cem anos, relações estreitas de convivência, coabitando as mesmas aldeias e casando-se entre si. Cf. Site dos Povos Indígenas no Brasil.

[155] Negroes in Brazil: A Study of Race Contact at Bahia (University of Chicago Press, 1942).

[156]  Em julho de 1998, havia 143 denominações de cor levantadas pela Pesquisa Mensal de Empregos (PME).

[157] A categoria “pardo” foi usada no primeiro censo brasileiro de 1872. Em 1890, foi substituída pelo termo “mestiço”, mas foi novamente inserida no censo a partir de 1920. No site do IBGE, na PNAD de 1999, consta que a cor “parda” serve para quem se declara mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça. Pardo é uma categoria usada atualmente nas cotas existentes em concursos públicos.

[158] Segundo Max Weber, “uma casta é sem dúvida um grupo de status fechado”, as “classes” são grupos abertos. Cf. Max WEBER, Índia: O Brâmane e as Castas (1974, p. 459).

[159] Castrado, esterilizado (diz-se de pessoa ou animal). Mesmo capado, ou seja, mesmo sofrendo, o brasileiro festeja.

[160]Stefan Zweig (1881-1942) foi escritor, romancista, poeta, dramaturgo, jornalista e biógrafo austríaco de origem judaica. Após se mudar para o Brasil, em 1940, escreveu seu ensaio sobre o país que o acolheu. Suicidou-se, em 1942, durante seu exílio no Brasil, deprimido com a expansão da barbárie nazista pela Europa, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Brasil, um país do futuro é um retrato do país sob a ótica de um estrangeiro exilado no Rio de Janeiro.

[161] Cf. Albert EINSTEIN, O Significado da Relatividade (2003, p. 38); Cf. Immanuel KANT, Crítica da Razão Pura (1781); Cf. Miguel REALE, Filosofia do direito (1999, pp. 103-105). Para Nélson Jahr Garcia, Zweig se adaptou ao Brasil, pois aqui não havia guerra e destruição como na Europa do escritor. Então aqui continuava sendo um paraíso terreal.

[162] Trecho presente na apresentação da obra “Brasil, país do futuro” (1941), por Nélson Jahr Garcia.

[163] Composição que integra o álbum “Canta canta, minha gente”(1974, RCA), sexto álbum gravado pelo sambista Martinho da Vila.

[164]  Título da obra de Guillermo Giucci (1992).

[165] A primeira publicação da carta em livro foi realizada pelo padre Manuel Aires do Casal, no ano de 1817, após encontrar uma cópia do texto no Arquivo da Marinha Real do Rio de Janeiro. Cf. Antonio Carlos OLIVIERI; Marco Antonio VILLA, Cronistas do descobrimento (2000). Usamos a “Carta a el Rei D. Manuel” (CAMINHA, 1963). Fonte:  http://www.culturabrasil.org/zip/carta.pdf.

[166] Depilação íntima brasileira ou Brazilian Wax é uma forma de depilação com cera quente introduzida em Nova York em 1987, por sete irmãs brasileiras (as “Irmãs J”; J.Sisters: Jocely, Janea, Joyce, Juracy, Jussara, Judseia e Jonice). O salão das irmãs “J” está localizado na 57th Street, no coração de Manhattan. No site das irmãs “J” é possível saber o preço e tipo das depilações e conhecer a trajetória do grupo. Fonte: http://jsisters.com/. A personagem de Sarah Jessica Parker, protagonista da série norte-americana Sex and the City (3ª temporada, episódio 14, setembro de 2000) foi com as amigas conhecer o método brasileiro de depilação.

[167] Os índios brasileiros pintavam muitas vezes o corpo com desenhos de diversas cores e escureciam tanto as coxas e pernas com o suco do jenipapo que ao vê-los de longe se podia imaginar estarem vestidos com calças de padre. Cf. Jean LÉRY, Viagem à terra do Brasil (1961, p. 94).

[168] Para saber mais sobre os grafismos indígenas, as pinturas corporais, ver Lux VIDAL (Org.) Grafismo Indígena: estudos de antropologia estética, 1992.

[169] A tese de “bom selvagem” foi sustentada por Michel de Montaigne (1533-1592), que conheceu em Lyon um grupo Tupinambá levado pelos franceses da França Antártica. Cf. Dirceu LINDOSO, Lições de Etnologia Geral (2008).

[170]Alguns historiadores acreditam que o piloto anônimo tenha sido um português com educação humanista, conhecedor da literatura do século XV. O piloto fez um relato rápido sobre a viagem e a chegada de Cabral. Segundo o piloto, o descobrimento do Brasil foi em 25 de abril de 1500 e não 22 de abril, como afirma Pero Vaz de Caminha. Cf. Antonio Carlos OLIVIERI; Marco Antonio VILLA (Org.), Cronistas do descobrimento (2000).

[171] Diário da Navegação de Pero Lopes de Souza.

[172]Dom João III (1502-1557), entre março de 1549 e outubro de 1570, enviou o Padre Manuel da Nóbrega para o Brasil como chefe, provincial e superior, da missão da Companhia de Jesus.

[173] Para melhor entender os escritos de Manuel da Nóbrega, usamos as obras Manuel da Nóbrega (HANSEN, 2010), não deixando de utilizar, como base, a obra Cartas do Brasil e mais escritos (NÓBREGA, 1955).

[174] O Código do Direito Canônico determina que a roupa é “decência civil” que demonstra o reconhecimento do pecado (HANSEN, 2010, p. 94).

[175] São bárbaros os tapuias, os aimorés da Bahia, os tamoios de Ubatuba e do Rio, os tupinambás de Ilhéus, os goitacases do Espírito Santo, os caetés do Nordeste. Cf. Adolfo HANSEN, Manuel da Nóbrega (2010, p. 93).

[176] Nas religiões abraâmicas (judaísmo, cristianismo e islamismo), Noach ou Noé (do hebraico, “descanso, alívio, conforto”) é o nome do herói bíblico que recebeu ordens de Deus para a construção de uma arca para salvar a Criação do Dilúvio.

[177] “Camitas” seriam os povos escuros da Etiópia, da Arábia do Sul, da Núbia, da Tripolitânia, da Somália (na verdade, os africanos do Velho Testamento) e algumas tribos que habitavam a Palestina antes que os hebreus as conquistassem. Cf. Alfredo BOSI, Dialética da colonização (1992, p. 257).

[178] Cam, servo dos servos, era pai de Canaã que seria a duodécima geração depois de Adão: Adão- Seth/Set/Sete - Enos- Quenã/Cainã -Malalel/Maalaleel - Jarede- Enoque -Matusalém - Lameque - Noé – Cã/Cam – Canaã (Antigo Testamento da Bíblia cristã; Genesis 5-9).

[179] Usamos a forma atual do nome Nuguera, ou seja, Nogueira.

[180] “Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram [...] A melancolia dos abusos venéreos e a melancolia dos que vivem na ideia fixa do enriquecimento” (PRADO, 1981, p. 17).

[181]  Alusão ao livro de Laura de Mello e Souza, Inferno Atlântico: demonologia e colonização: séculos XVI e-XVIII (1993).

[182] Publicada em Paris, em 1557, a obra do frei André Thévet, trazida ao Rio de Janeiro pelo conquistador Villegaignon, é um dos relatos pioneiros sobre o início da colonização no Brasil. Usaremos o texto de 1944.

[183] Os indígenas sabiam fabricar carne salgada retendo a água do mar em valos (tipo de buraco, rego seco) (LÉRY,1961, p. 143).

[184] Na adolescência, usam osso branco; quando adultos (curumimassú, “menino crescido”) usam no furo do beiço uma pedra verde.

[185] Entre os séculos V e XVI, a Europa não primava muito pela limpeza, ou por hábitos saudáveis, não existia um sistema de saneamento básico, nem sequer a preocupação com este detalhe. Muitas cidades, como Paris e Londres, tentaram o emprego de fossas individuais com resultados desastrosos, pois as mesmas, com manutenção inadequada, se tornaram fontes de geração de doenças. Raramente eram limpas e seu conteúdo se infiltrava pelo solo, saturando grandes áreas do terreno e poluindo fontes e poços usados para o suprimento de água. As fossas, portanto, tornaram-se um problema de saúde pública. Cf. Rogério SIDAOUI, Curiosidades históricas (2004, p.77).

[186] Mercenário e cronista alemão encarregado do fortim de Bertioga (corruptela tupi buriqui-oca, “morada dos macacos”).

[187] Obra lançada com o título História verdadeira e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, [Desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria e agora a traz a público com essa Impressão ou simplesmente, Duas Viagens ao Brasil]. Publicada originalmente em 1557, em Marburgo (atual Alemanha), por Andres Colben. Considerado o primeiro livro impresso que narrou um acontecimento sobre o Brasil, é um dos mais importantes documentos sobre o Brasil Colônia. O livro não foi escrito pelo próprio Staden que era pouco letrado, mas por um certo doutor Dryander. Cf. Hans STADEN, Duas viagens ao Brasil (2013, p. 09).

[188] O tio de Paulo Prado, Eduardo Prado (1860-1901), foi quem adquiriu, em um antiquário parisiense, o exemplar da obra de Staden.

[189]  Ao ter as pernas amarradas, Hans Staden pulou pela cabana e os índios, rindo, gritaram “Lá vem nossa comida pulando!” (STADEN, 2013, p.79).

[190] O Movimento Antropofágico foi uma manifestação artística brasileira da década de 1920. Cf. Raul BOPP, Vida e morte da antropofagia (2012).

[191] Em 1940, no auge do seu prestígio internacional, Portinari aceitou o convite para ilustrar uma edição norte-americana de Hans Staden. Quando enviou os desenhos ao editor nova-iorquino George Macy, recebeu uma recusa como resposta. O editor não achou as imagens “realistas” (They are not as simple, they are not as realistic. I feel sure that my own customers would not like them, would not find them intelligible) (MACY 1941: Acervo do Projeto Portinari). Os desenhos caíram no esquecimento por quase 60 anos. Somente em 1998, em uma publicação apoiada pela Deutsche Bank e o Ministério da Educação, viriam à luz, sob o título “Portinari devora Hans Staden”. Cf. Luciana Villas BÔAS, O Hans Staden de Portinari: esquecimento e memória do passado colonial (2016). Eduardo Bueno (STADEN, 2013, p.12) cita 26 gravuras; Bôas (2016, p. 107) cita 24 gravuras; temos 30 ilustrações virtuais do conjunto Hans Staden no site Projeto Portinari.

[192] No mês de novembro de 1971, Rogério Nunes, o novo chefe da censura, acabou liberando o filme sem restrições para qualquer idade, mas com algumas modificações e cortes. O longa de Nelson foi um grande sucesso de público, ficando entre as 25 maiores bilheterias de filmes exibidos entre 1969-1972 (FARIAS, 2012).

[193]  Também chamados de Tabajaras (do tupi antigo tobaîara, “inimigo”) pelos inimigos. (STADEN, 2013, p. 56). Iracema (1865), índia do romance homônimo de José de Alencar, era uma índia da tribo dos tabajaras.

[194] Eventos culturais e artísticos do século XV (1401-1500) na Itália. Englobam tanto o final da Idade Média (arte gótica e Gótico Internacional), quanto o começo do Renascimento.

[195] Foi um padre jesuíta espanhol, santo da Igreja Católica e um dos fundadores da cidade brasileira de São Paulo. Beatificado (1980) pelo papa João Paulo II e canonizado (2004) pelo papa Francisco. É conhecido como o Apóstolo do Brasil por ter sido um dos pioneiros na introdução do cristianismo no país.

[196] Afrânio Peixoto na “Introdução” da obra de José de Anchieta.

[197] Tabula rasa, expressão latina que significa literalmente “tábua raspada” e tem o sentido de “folha de papel em branco” para indicar uma condição em que a consciência é desprovida de qualquer conhecimento inato. É uma expressão frequentemente atribuída ao filósofo inglês John Locke (1632-1704), no Ensaio acerca do Entendimento Humano (1690), para quem as pessoas eram folhas brancas que adquiriam conhecimento através das experiências vividas. Segundo os filósofos do século XVII, a mente era moldada pelos costumes e educação, e a contribuição do ambiente na formação da mente era importante para o conhecimento. Cf. José Ferrater MORA, Dicionário de filosofia, tomo IV (Q - Z) (2001, p. 2808).

[198] “Aqueles feiticeiros de que já falei são tidos por eles em grande estimação, porquanto chupam aos outros, quando são acometidos de alguma dor, e assim os livram das doenças e afirmam que têm a vida e a morte em seu poder” (ANCHIETA, 1933, p. 42).

[199] Ortografia arbitrária de taguaibem (tupi), mas que no guarani é apresentada sob a forma taúb-aib, literalmente “visão-má, fantasma ruim” (CARDIM, 1881, p. 112).

[200] Numen viarum (divindade da estrada) (CARDIM, 1881, p. 99).

[201] Os indígenas usavam a palavra de respeito “Pai/Pay” quando falavam aos seus velhos, e feiticeiros e pessoas graves, usavam a expressão Pay-àbaré para designar “o vigário” do aldeamento. O vocábulo paye ou payê ou pajé, que também significa “sacerdote”, incluia os sentidos de “oráculo, feiticeiro, médico, mezinheiro” (curandeiro). Paye/Pajé foi o termo que os catequistas rebaixaram para designar exclusivamente “o feiticeiro”.

Lembrando diabolus, que remontava a fonte etimológica que tinha o mesmo radical de Zeus, Júpiter, Jovis e passou a designar o “diabo” (CARDIM, 1881, p. 106).

[202]  Sousa afirmou que os goianazes “têm muitas gentilidades, como o mais gentio da costa”. Por “gentilidades”, acreditamos que os goianazes eram o povo mais gentil da costa, ou seja, o mais amigável.

[203] Doença infecciosa da pele ossos e cartilagens que ocorria em climas quentes, úmidos e tropicais. Conhecida como Bouba (em inglês, yaws; em alemão, frambesia; em francês, pian; em espanhol, buba) era causada pela bactéria espiroqueta Treponema pallidum pertenue. Cf. Jean L. BOLOGNIA, Dermatologia (2015, p. 1216). “[...] as hão de ter tarde ou cedo, e que o bom é terem-nas enquanto são meninos, os quais não fazem outro remédio senão fazê-las secar, quando lhe saem para fora, o que fazem com as tingirem com jenipapo” (SOUSA, 1939, p. 386).

 [204] Música “Da cor brasileira”, composição de Joyce Moreno com Ana Terra, presente nos álbuns: Feminina (1980), Revendo Amigos (1994), Meus Momentos (1995), Série Bis (2001) e Joyce Ao Vivo (2008).

[205] “Olhos Coloridos”, canção composta por Osvaldo Rui da Costa (ou Macau) na década de 1970, fruto de uma experiência racista que muitos negros brasileiros ainda sofrem. Macau, após ser preso injustamente pela Polícia Militar do Rio de Janeiro em uma exposição de escolas públicas no Estádio de Remo da Lagoa, compôs a música que é considerada um símbolo do orgulho negro no Brasil. Sandra Cristina Frederico de Sá, ou apenas Sandra de Sá, com uma voz soul music, imortalizou a canção “Olhos Coloridos” no ano de 1982, no segundo álbum (“Sandra Sá”, RGE Discos) da cantora.

[206] Alailewà, Sailewà, Lailęwa, Làbukun, Laisiàn, Şesegesege são palavras usadas para “feio”. Já Laidará-Fé é malquisto; Laidun, desagradável. O primeiro dicionário da língua Iorubá, compilado por Samuel Crowther, foi publicado no ano de 1843, nos Estados Unidos. Cf. DICTIONARY of Yoruba Language (1913).

[207] Navios negreiros que transportavam centenas de negros do continente africano até o americano.

[208] Cf. Helmut HATZFELD, Estudios sobre el Barroco (1964, p. 418).

[209] Movimento literário do século XVIII, Arcadismo vem de Arcádia, região agrária e pastoril da Grécia. Movimento que nasceu em Roma, local em que os artistas promoviam encontros ao ar livre, praças e jardins. Cf. Francisco BERNARDI, As bases da literatura brasileira: histórias, autores, textos e testes (1999, pp. 71-73).

[210] Considerada, pelo pesquisador José Galante de Sousa (1913-1986), a primeira manifestação, em letra de forma, da literatura no Brasil, ou seja, a primeira obra poética brasileira escrita no Brasil.

[211] Sobre a vida de Bento Teixeira, poucos arquivos foram encontrados. Não era “mazombo” (filho de portugueses nascido no Brasil). Provavelmente veio de Portugal para o Brasil com quase sete anos de idade. Era judeu batizado (cristão-novo), mas se diz “cristão” diante do Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa. Morreu em julho de 1600, vítima de tuberculose. Cf. Gilberto Vilar de Carvalho, O primeiro brasileiro: Bento Teixeira (1995).

[212] Gilberto Vilar de Carvalho intitula sua obra de O primeiro brasileiro (1995), com o interessante subtítulo para o Capítulo 3: “Onde se conta a história de Bento Teixeira, cristão-novo, instruído, desbocado e livre, primeiro poeta do Brasil, perseguido e preso pela inquisição”.

 [213] Nassau chegou ao Brasil, em 1636, para administrar a região nordeste do país. Erudito e humanista permitiu a liberdade de culto entre diferentes povos oriundos da Península Ibérica e do norte europeu, que foram atraídos para a “Nova Holanda” (Brasil Holandês) por causa do clima de tolerância religiosa que não havia na Europa. Neste período foi fundada uma sinagoga, atual sinagoga Kahal Zur Israel ou Congregação Rochedo de Israel, em Recife, no ano de 1641 (de 1936-1941), considerada a primeira das Américas. Cf. Inês PEDROSA, No coração do Brasil, 2007.

[214] Licranço, alicanço, licanço, fura-mato, luzidio ou cobra-de-vidro (Anguis fragilis) é um réptil da ordem dos sáurios, de membros ausentes (ápode). É um lagarto, não uma cobra. Tem a capacidade liberar um pedaço da cauda como meio de defesa, podendo essa parte regenerar-se ou não após um período de tempo.

[215] Segundo Segismundo Spina (1995, p. 20), Gregório terminou o curso superior com dois diplomas: o de jurista e o de boêmio. “Adeus, prolixas escolas/Com reitor, meirinho e guarda,/Lentes, bedéis, secretários,/Que tudo somado é nada”.

[216] “Defende o poeta por seguro, necessário, e recto seu primeyro intento sobre satyrizar os vícios”. Crônica do Viver Baiano Seiscentista. Fonte: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/fs000208.pdf>.Domínio Público.

[217]  O rebaixamento corporal ocorre quando o autor faz referências aos órgãos sexuais, ao abdômen e intestinos, ao comer, ao defecar, as partes tabus ou feias em relação ao corpo humano.

[218] Relativo ao poeta alexandrino Sótades (século III a.C.), ou próprio da sua obra; diz-se da poesia considerada obscena, erótica ou licenciosa. Cf. Massaud MOISÉS, Dicionário de termos literários (2004, p. 435).

[219] El hombre más feo de Brasil crea la más alta hermosura del arte colonial americano.

[220] Arte aprendida com o mestre português João Gomes Batista (pintor e desenhista) e com os entalhadores Francisco Xavier de Brito e José Coelho Noronha. Cf. Rui OLIVEIRA, Três anjos mulatos do Brasil (2011, p. 11-24).

[221] Francisco Lisboa possuiu quatro escravos: Maurício, Agostinho, Januário e Anna.

[222] Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, no prefácio ao livro Aleijadinho, o Teatro da Fé (TEIXEIRA, 2007).

[223] François Louis Nompar de Caumont LaPorte, conde de Castelnau (1810? –1880) foi um naturalista inglês que esteve em serviço da França. De 1843 a 1847, com dois botânicos e um taxidermista, cruzou a América do Sul, do Peru ao Brasil, seguindo o Amazonas e os sistemas do Rio da Prata.

[224] “O frontispício é ornamentado nas partes exteriores e superiores com esculturas bastantes bem executadas por um maneta”. Imagem errada, pois Aleijadinho tinha as duas mãos, mesmo que escondidas pela falta de alguns dedos.

[225] Rodrigo José Ferreira Bretas criou o mito de um gênio mineiro e disforme que era perfeito como propaganda artística. Bretas gostava de Victor Hugo e provavelmente inspirou-se no corcunda de Notre Dame para moldar o personagem na sua “biografia” sobre Francisco Lisboa. Cf. Guiomar de Grammont, Aleijadinho e o aeroplano o paraíso barroco e a construção do herói colonial (2008).

[226] Doménikos Theotokópoulos, ou El Greco (1541-1614), foi um pintor, escultor e arquiteto grego que  desenvolveu a maior parte da sua carreira na Espanha.

[227] Teoria Estética (1993, p. 65).

[228] Passamos das mazelas do povo, para as obras de Candido Torquato Portinari (1903-1962); Os retirantes (1944), por exemplo.

[229]  “Beleza! Ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo”, do poema “Hino à beleza” (Hymne a la beauté).

[230] John Constable (1776-1837) foi um pintor romântico inglês.

[231] A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica é um texto de Walter Benjamin, publicado em 1955.

[232] Lumpemproletariado/subproletariado: do alemão Lumpenproletariat, “seção degradada e desprezível do proletariado”; lump “pessoa desprezível”, lumpen “trapo, farrapo”, proletariat “proletariado”. O termo pode ser traduzido, ao pé da letra, como “homem trapo”, e foi introduzido por Karl Marx e Friedrich Engels em A Ideologia alemã (1845). O subproletariado é o “rebotalho do proletariado”. Cf. Karl MARX, A ideologia Alemã, (2007, p. 70; 199; 558-559, nota 191).

[233] Bonga e Didi Mocó são personagens de Renato Aragão. Como um personagem vagabundo, além de Bonga, Didi Mocó atuou, com inspiração chapliniana, nos filmes: Cinderelo Trapalhão (1979), Saltimbancos Trapalhões (1981), Os Vagabundos Trapalhões (1982) e O Mistério de Robin Hood (1990). Cf. José Mario Ortiz RAMOS, Cinema, televisão e publicidade: cultura popular de massa no Brasil nos anos 1970-1980 (2004).

[234] Utilizamos a versão completa (2003) e em espanhol da obra de Adorno.

[235] Em 1993, o quarteto humorístico teria realizado o episódio final, pois Zacarias já havia falecido em 1990 e Mussum em 1994, restando apenas Dedé e Didi. O último episódio, apresentado no dia 26 de dezembro de 1993, trazia a ceia de natal dos monstros, no qual a bruxa Giselda, parafraseando Vinícius de Moraes, recita “as muito bonitas que me perdoem, mas feiura é fundamental”, além de outros esquetes com Mussum e Dedé.

[236] A origem do conceito de arte popular pode ser situada com o surgimento da classe operária no fim do século XIX. Ver obra de Jayme Paviani, Estética mínima: notas sobre arte e literatura (2003).

[237] Para Baudelaire (1996, p. 24), a Modernidade, em Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna, “é o transitório, o efêmero, o contingente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável”, na modernidade as metamorfoses são frequentes.

[238] Oswald de Andrade recorreu à ideia do baixo canibalismo (destruição indiscriminada dos colonizadores) e alto canibalismo (ritual indígena de devorar o inimigo) presente na obra do padre Antônio Vieira: “Para uma fera se converter em homem há de deixar de ser o que era e começar a ser o que não era, e tudo isto se faz matando-a e comendo-a: matando-a, deixa de ser o que era, porque, morta, já não é fera; comendo-a, começa a ser o que não era, porque, comida, já é homem”. Cf. Padre Antônio VIEIRA, Sermão do Espírito Santo (1855, Tomo V, p. 347); Maria Cândida Ferreira de ALMEIDA, Tornar-se outro: o topos canibal na literatura brasileira (2002, pp. 79-80).

[239] O termo significou porcaria, peça teatral sem valor, destinado apenas a produzir gargalhadas, pondo assim em relevo sua proximidade com “chancho”, sinônimo de porco e sujo nos países ibero-americanos. Cf. Sérgio AUGUSTO, Este mundo é um pandeiro (1989, p. 17).

[240] Fundada em 1951, é a principal produtora de filmes brasileiros da década de 1950. Atlântida é o suposto continente que teria existido e foi submerso no Oceano Atlântico, entre a África e a América.

[241] Oscar Lorenzo Jacinto de la Imaculada Concepción Teresa Diaz, ou apenas Oscarito (1906-1970).

[242] Sebastião Bernardes de Souza Prata (1915-1993).

[243] Anchizes Pinto (1924- 2009).

[244] Zé Trindade, pseudônimo de Milton da Silva Bittencourt (1915-1990).

[245] Dolores Gonçalves Costa ou Dercy Gonçalves (1907-2008).

[246] Programa da Rádio Record, estação PRB-9 de São Paulo, que misturava humor e crítica social. A transmissão ocorria todas as sextas, às 21h. As histórias ocorriam na fictícia favela do Morro do Piolho. Adoniram Barbosa fazia a voz do personagem principal, Charutinho, um “criolo avesso ao trabalho”. Cf. Ayrton MUGNAINI, Adoniran: dá licença de contar (2002, p. 59-63).

[247] Relato também presente no “Pasquim” (1977), o semanário alternativo brasileiro, 1969-1991.

[248] O filme Macunaíma é uma comédia, escrita e dirigida por Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), baseado na obra homônima de Mário de Andrade.

[249] Francisco (Chico) Anysio de Oliveira Paula Filho (1931-2012) foi um humorista, ator, comentarista, compositor, diretor de cinema, escritor, pintor, radialista e roteirista brasileiro.

[250] Silvio Tendler (1950) é um documentarista brasileiro que preza pela reconstrução da memória através do audiovisual. É o realizador dos documentários: “Os Anos JK – Uma trajetória política” (1980), “O Mundo Mágico dos Trapalhões” (1981), “Jango” (1984), “Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá” (2006), entre outros.

[251] Como se ve el reino de lo feo es tan grande como el reino de los fenômenos sensibles em general.

[252] Do latim castrensis, “relativo ao acampamento militar, ao exército”; de castra, “acampamento, alojamento”.

[253] Ator, diretor, advogado, cineasta, produtor, comediante, humorista, escritor, apresentador e cantor.

[254] Aragão interpretou o malandro faminto Bonga no filme “Bonga, o Vagabundo” (1971, Victor Lima). Ainda não havia a formação original de Os Trapalhões com Dedé Santana, Mussum e Zacarias.

[255] Mocó (Kerodon rupestris) é um roedor sul-americano (família Caviidae), encontrado em áreas pedregosas do leste do Brasil, principalmente na região Nordeste. Mocó é palavra usada como sinônimo de “feitiço” e “esconderijo”. O verbo “mocozear” (também pronunciado como “mocozar”) significa esconder algo com destreza. Ver obra “Paca, Tatu e Cutia! Glossário Ilustrado de Tupi” (2014) de Mouzar Benedito e Ohi.

[256] Trapezista, equilibrista, palhaço, ator, apresentador, diretor, dublador, humorista e roteirista brasileiro.

[257] Cf. Nelson Cunha MELLO, Conversando é que a gente se entende: dicionário das expressões coloquiais brasileiras (2009, p.217).

[258] Relato de Dedé Santana ao site “Memória Globo”.

[259] A Rede Tupi foi a primeira emissora de televisão brasileira. Foi fundada em 18 de setembro de 1950, em São Paulo, pelo paraibano Assis Chateaubriand.

[260] Sobre outros cômicos negros da televisão brasileira, ver CARRICO (2013, p. 104).

[261] Relato presente em “Curiosidades” no site (não oficial) dedicado ao quarteto Os Trapalhões – “Trapalhões Nostalgia”, de Igor Castro. Cf. “http://trapalhoesnostalgia.com/”.

[262] Nascida no subúrbio de Madureira, no Rio de Janeiro, era filha de Saturnino Gonçalves, um dos fundadores do Bloco dos Arengueiros, criação que anos depois originou a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.

[263] Em um quadro anterior, Renato contracenava com um galo batizado de “Zacarias”.  Ao contracenar com o personagem do Mauro, antes nomeado “Moranguinho”, Renato assimilou a risada do personagem ao canto do galo. Mauro deixaria de ser Moranguinho para se tornar Zacarias.

[264] Atuações preparadas cenicamente com adereços e mecanismos adequados. Os circos do Sul e do Nordeste do Brasil são os que mais se dedicam às comédias esquetes (BOLOGNESI, 2003, p.118)

[265] Médico pela Universidade de Coimbra; sócio livre da Academia Real das Ciências de Lisboa, vice-presidente do Conselho de Saúde Pública do Reino. Foi médico em Punhete, atual Constância, uma vila portuguesa pertencente ao Distrito de Santarém, região Centro e sub-região do Médio Tejo (Pugna Tagi, nome romano, “combate do Tejo”). Punhete passou a ser conhecida por Constância em 1836, por intermédio da rainha D. Maria II (1819-1953), que mudou o nome da vila por insistência da população. Punhete foi local de residência do poeta Luís de Camões, que ali escreveu alguns dos seus poemas líricos, por ocasião do seu desterro no Ribatejo, possivelmente entre 1546 ou 1547. Cf. Luís de CAMÕES; Visconde de JUROMENHA, Obras de Luís de Camões (1860, p. 41). Cf. Augusto Soares d’Azevedo Barbosa de PINHO LEAL, Portugal antigo e moderno: [...] (1876, p. 263; 715, 7 v.).

[266] As demais mulheres romanas usavam sapatos brancos. Apenas os homens, as escravas e as cortesãs usavam togas até os joelhos, as “senhoras honestas” de Roma usavam togas que iam até os pés (CRUZ, 1841, p. 35).

[267] Marinetti glorificou a I Guerra Mundial como o mais belo poema futurista.

[268] Primeiro movimento artístico e literário dotado de uma ideologia global, estética e política ao mesmo tempo. Surgiu oficialmente em 20 de fevereiro de 1909 com a publicação do Manifesto Futurista, pelo poeta italiano Filippo Marinetti, no jornal francês Le Figaro. O futurismo inovou profundamente a práxis artística, ao lançar mão, de maneira agressiva, de técnicas derivadas da comunicação de massa, ao criar um código capaz de responder às exigências de uma sociedade profundamente transformada pelo artifício e pela mecanização. Cf. Annateresa FABRIS, Futurismo: uma poética da modernidade (1987).

[269] Ritmo e dança praticada pelos grupos afro-carnavalescos baianos, conhecidos como afoxés (afoxé, “a fala que faz”) Cf. Sérgio GOMES, Novos Caminhos aa Bateria Brasileira (2008, p. 79).

[270] Cf, Nelson CERQUEIRA (Org.), Carnaval da Bahia: um registro estético. Salvador: Omar G., 2002.

[271]Como narra a Bíblia, São Filipe comunicou a Natanael (São Bartolomeu) que havia encontrado o Messias, e que esse provinha de Nazaré, ao que Natanael respondeu dura e preconceituosamente: “De Nazaré pode vir alguma coisa boa?” (Novo Testamento da Bíblia cristã; João 1: 45-46).

[272] Era um programa da Rede TV, exibido às noites de domingo. Programa que desde 2012 integra a grade de programação da Rede Bandeirantes.

[273] Matéria “Eu não era feio, era pobre”, dia 28 de maio de 2010, encontrada no blog “tevejonorock´s”. Fonte: <http://tevejonorock.wordpress.com/2010/05/28/eu-nao-era-feio-era-pobre/>.

[274] Inspirado no químico francês Antoine Laurent de Lavoisier (1743-1794), que no século XVIII disse que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” (Princípio da Conservação de Massas).

[275] “Rancho Alegre” foi um programa de humor brasileiro transmitido pela Rádio Tupi de São Paulo, entre 1946 e 1950. Programa dirigido por Cassiano Gabus Mendes e estrelado por Amácio Mazzaropi (1912-1981), indo ao ar ao vivo do auditório da rádio no bairro paulistano do Sumaré. Em 18 de setembro de 1950, deu-se a inauguração da primeira emissora de televisão do Brasil, a TV Tupi de São Paulo, e na quarta-feira 20 de setembro de 1950, dois dias depois, o programa “Rancho Alegre” estreou na televisão juntamente como o comunicador Abelardo Barbosa. Cf. Denilson MONTEIRO; Eduardo NASSIFE, Chacrinha - a biografia (2014).

[276] No dia 10 de março de 2005, Roberta Close consegue, legalmente, garantir o direito de mudar o nome de Luís Roberto Gambine Moreira para Roberta Gambine Moreira.

[277] Manchete Esportiva, 31/5/1958.

[278] Manchete Esportiva, 12/7/1958.

[279] “O belo tem somente um tipo; o feio tem mil” (HUGO, 2010, p. 25).

Para baixar a tese (com as imagens), clica na imagem abaixo! ;)