O Tigreiro e a Princesa

 

 

V. GuiBrasil

 

 

Ano de 1872, domingo, tarde quente no Rio de Janeiro. Três batidas secas na porta lateral da cozinha de Nhá Santa. “Entra, fio”, grita a cozinheira. “Cença... Tem barril hoje, Nhá?”, pergunta o tigreiro Tônho. Dona Santa, que de pia batismal era Santana da Silva, enxuga as mãos no pano de prato que carrega no ombro esquerdo, pede um minuto ao tigreiro e vai até a lateral da sala de costura para verificar se o tonel depositado próximo à parede estava cheio. “Um tonel grande que deve dar quatro barris”, avisa Nhá Santa. “Pode pegar e levar”. O tigreiro tirou o velho chapéu de palha, abaixou a cabeça, entrou na cozinha, atravessou um corredor e foi até o pequeno quarto de costura. O local tinha um cheiro estranho que misturava mofo, poeira e penicos. Tônho encheu o primeiro barril e avisou Nhá Santa que voltava para pegar o resto.

Com o barril na cabeça, sobre o gasto chapéu de palha, Tônho foi descendo a rua em direção ao mar. A pele do escravo, a cada passo dado, era tingida por filetes de urinas e fezes que fluíam de buracos do velho barril de estima. O escravo usava apenas o velho chapéu e uma encardida calça de algodão cru. Com o sol, o calor e a pele sem proteção de roupa, listras fétidas apareciam no corpo de Tônho. O escravo havia sido designado tigreiro da família imperial bem jovem e, desde então, carregava as fezes da mais importante família brasileira.

Aos 10 anos, o pequeno banto havia sido trazido à força para o Brasil. Separado da família, sem saber do destino dos pais e cinco irmãos, foi levado para o Rio de Janeiro. Depois de uma longa viagem da África para o Brasil, faminto e cheio de feridas, o negrinho foi alojado em uma grande cabana de palha perto do porto carioca. Dormindo no chão, tomando um ensopado de feijão e pedaços de porco e sofrendo do banzo de não estar em sua terra, com seus familiares, o menino Antônio Katendê foi educado para obedecer e ficar calado. No aniversário de 12 anos, dia 16 de agosto de 1846, foi levado para trabalhar cativamente na casa do imperador que acabara de ser pai de uma menina chamada Isabel. Antônio logo viraria Tônho, o tigreiro, o carregador de fezes monárquicas.

O que ninguém sabia era que Isabel, a princesa, iria criar um forte laço afetivo com o tigreiro. Um laço tão fraternal que nem o cheiro fétido que ficava no corpo do garoto poderia afastar a menina. Mais velho que Isabel, Tônho sempre trazia notícias das ruas, das pessoas, dos navios que chegavam, das brincadeiras e cirandas. As crianças se encontravam no quintal imperial, debaixo da sombra da mangueira. Tônho contava sobre sua África e Isabel dividia pedaços de bolo com o menino. Eram causos que fascinavam a princesinha e aliviavam os dias fétidos e cansativos de jovem.

Isabel era uma menina risonha, alegre e curiosa. Porém, certo dia, a garota adoeceu sem motivo. O pequeno tigreiro procurou a amiga perto da mangueira e não a encontrou. Circulou a casa, entrou pelos fundos, foi até a cozinha e perguntou pela sinhazinha Isabel. Nhá Santa informou ao pequeno que a princesa estava enferma, resguardada no quarto com muita febre.

- Amóde que a princesa foi adoecendo de repente e já nem se levanta, disse Santa.

O jovem estranhou e resolveu averiguar o adoecimento da amiga de uma forma que somente ele sabia. O tigreirinho pediu para Santa pegar o penico da princesa. A cozinheira estranhou, mas resolveu acatar o pedido do garoto. Santa tinha ouvido falar, pela boca de outros tigreiros, que o jovem Tônho descobria doenças apenas olhando as fezes dos doentes e até sabia quais folhas devia pegar para sanar as enfermidades dos acamados.

A cozinheira entregou a comadre da princesa para Tônho analisar. O jovem olhou, levou o penico para o sol, olhou detalhadamente e caminhou em direção a Nhã Santa:

─ Nhã, sinhazinha bebe qual água?

─ Bebe a água que Serafim trouxe do poço. Que suncê viu, fio?

 O garoto olha mais uma vez para o penico e diz que a princesinha está com mordexim, nome para a cólera que os escravos aprenderam com um velho índio que vendia bananas na cidade. A água que Serafim trouxe estava contaminada.

Tônho sai correndo pela cidade e se embrenha na mata perto da residência imperial. O rapazinho se ajoelha na mata, entoa um canto banto que aprendeu com o avô e desaparece entre as árvores. Naquele mesmo dia, no começo da noite, Tônho encontra Nhã Santa na porta da cozinha e entrega algumas folhas de tejuco e pedaço da raiz de pó de mico.

─ Cozinhe separado as foia e a raiz, Nhã. Depois coloque metade do chá de um e metade d’outro num copo e dê pra princesinha beber.

 Santa fez conforme pedido pelo jovem, sem nem titubear.

Quatro dias depois, o tigreiro foi buscar as fezes da família imperial para jogar fora. O rapazinho olhou o barril e não viu nada estranho ou com sangue. Foi assim que Tônho soube que Isabel estava curada.

Os outros tigreiros nunca viam Tônho jogando as fezes no mar e começaram a estranhar. Diziam que o rapaz era estranho e que nunca dormia no barracão dos tigreiros. O barracão era uma grande choupana as margens da praia, único local no qual os fétidos trabalhadores deveriam ficar para não empestar o ar e deixar as pessoas de classe enfezadas.

Quando os tigreiros passavam as senhoras tampavam o nariz com lenços franceses e viravam o rosto. Os trabalhadores das “águas servidas”, como os dejetos fecais eram chamados, deviam gritar “Abra o olho! Abra o olho!” para que os transeuntes não esbarrassem neles e se sujassem. Os negros carregadores de merdas emanavam um odor nauseabundo penetrante. Todos fugiam! Apenas os tigreiros, talvez sem nenhuma percepção olfativa pelos anos de carregamentos fecais, se aguentavam tão próximos. Ser tigreiro era quase um castigo divino. Começavam pequenos e quando percebiam, eram velhos e solitários. Nenhuma mulher cogitava romance com um fétido coletor de fezes. Não tinham filhos, nem liberdade, nem conforto. Eram negros que recolhiam os dejetos das casas e nada mais.

Quando algum tigreiro fugia da sina solitária, os outros estranhavam. Tônho era motivo de burburinho entre os negros, cativos ou livres. Começou menino na casa da família imperial, era amigo da princesinha Isabel e todos na casa gostavam do tigreirinho que não fedia como os outros. Ninguém sabia onde o jovem jogava os dejetos que recolhia. O costume era jogar na praia ou no mar, mas Tônho entrava na mata perto da Quinta da Boa Vista e, depois de um tempo, voltava com o barril vazio.

Depois que a doença se foi, Isabel procurou o amigo para agradecer. Conversaram horas e horas debaixo da mangueira. Riram, comeram bolo de Nhã Santa, brincaram de imitar bichos. Isabel quis saber por que todos chamavam Tônho de “tigreiro”. O jovem sorriu e respondeu: “Por que sou forte e selvagem como um tigre”.  Isabel sorriu e quis saber o que eram aquelas listras no corpo do rapazinho. Tônho, sem jeito de dizer que eram rastros de seu trabalho cotidiano, criou uma estória de uma tribo africana na qual todos tinham listras e viviam na floresta. A menina ficou fascinada com a ideia de ter um amigo tigre.

A amizade foi se construindo durante horas, dias, anos de conversas embaixo da mangueira. Mesmo com todos os afazeres monárquicos, com a vigilância de Dom Pedro II, Isabel sempre se aconselhava e desabafava sobre sua vida de regras e maneiras imperiais. Com o tempo, Leopoldina, irmã de Isabel, também se uniu a dupla em brincadeiras e aconselhamentos. A partir de 1855, os encontros passaram a ocorrer apenas aos domingos, pois a preceptora das meninas, a Condessa de Barral, deixava apenas os domingos livres para que as meninas descansassem dos vários estudos.

Com o tempo passando, Tônho, Isabel e Leopoldina tornaram-se belos jovens. O trigreiro tornou-se um belo negro encorpado. Isabel não era muito bela e lhe faltava sobrancelhas, mas era dona de boa índole e enorme bom-senso. Leopoldina era mais elegante e culta do que bonita e todos a amavam. A moça Leopoldina cheirava a flor de laranjeira.

Quando, em 1864, Dom Pedro II anunciou o casamento das filhas, Tônho já sabia que o desabafo das moçoilas ia ser grande. Domingo bem cedo, talvez nem tivessem dormido, Isabel e Leopoldina estavam sentadas embaixo da mangueira esperando o tigreiro chegar para mais um dia de coleta. Tônho vai ao encontro das princesas e logo começa a ouvir a não vontade de casório das moças. Leopoldina começa:

─ E se o escolhido for deselegante, o que faço Tônho?

─ E se ele não me deixar ler o que desejo? ─ suspira Isabel.

 Tônho sorriu e pediu que as princesas não se aperreassem:

─ Se não gostarem, troquem. Sigam o coração.

E foi isso que as irmãs fizeram. Quando os príncipes desembarcaram no Rio de Janeiro daquele ano, as princesas resolveram trocar os futuros noivos. O Conde d’Eu, designado para Leopoldina, tornou-se marido de Isabel e o Duque de Saxe, que veio para se casar com Isabel, desposou Leopoldina.

Tônho passou a visitar e coletar os dejetos nas residências das duas princesas, era recebido com carinho, tanto por Leopoldina, quanto por Isabel. Nhã Santa sempre fazia bolos para o tigreiro tão solitário.

As princesas casaram, tiveram filhos, viajaram à Europa e se tornaram mulheres fortes de caráter e presença. Tudo acontecia ao redor do tigreiro Tônho e nada o abalava. Nunca casou, não teve filhos, vivia entrando e saindo da mata, não cheirava tão pessimamente como os outros coletores de dejetos e ninguém sabia onde o tigreiro jogava o conteúdo dos barris. Enquanto todos os tigreiros fediam e adoeciam constantemente, Tônho crescia saudável, um negro forte com listras transversais escuras pelo tronco.

Certa tarde, ano de 1871, Isabel vai desesperada até a cozinha de Nhã Santa e pergunta por Tônho. Santa conta que o negro havia passado bem mais cedo para pegar os barris. Isabel pediu encarecidamente para Santa mandar um menino de recados buscar o tigreiro. A princesa estava agoniada e Santa mandou um negrinho ir correndo campear o tigreiro. Pouco tempo depois o menino volta, seguido por Tônho.

Isabel, chorando, olha para o tigreiro e se ajoelha implorando ajuda do amigo. A princesa sabia dos dons curativos do escravo. Tônho levanta Isabel, a olha nos olhos e pergunta o que aconteceu? A princesa anuncia que está indo com o Conde d’Eu visitar a irmã enferma no exterior.

Leopoldina estava com problemas intestinais, muita febre e somente piorava dia após dia. Isabel queria levar o tigreiro para a Europa a fim de descobrir qual a doença da irmã. Tônho sabia que tal viagem era impossível para um negro, escravo e tigreiro. A princesa entendeu a situação e amaldiçoou a escravidão.

─ Quando eu voltar resolverei essa maldita condição dos homens cativos. Não aguento mais ver meus amigos subjugados pelos ferros e chicotes.

A cozinheira e o tigreiro consolaram a princesa. Tônho logo saiu, mas antes pediu que a princesa esperasse um pouco que ele voltaria com um presente. Isabel ficou sentada na cozinha enquanto Santa coava o café. Depois de pouco tempo o negro retorna com um buquê de camélias brancas. Isabel recebe o buquê e abraça o negro. Foi o primeiro abraço que Tônho recebeu depois que chegou ao Brasil. O negro pede que Isabel coloque uma camélia sob o travesseiro de Leopoldina.

A princesa foi para Viena visitar Leopoldina. Já no quarto da irmã, Isabel colocou uma camélia seca que levou, por toda a viagem, dentro de um livro embaixo do travesseiro e sussurrou no ouvido da irmã enferma:

─ Tônho manda lembranças irmãzinha. Ele lhe espera debaixo da nossa mangueira.

 Sofrendo de uma febre intermitente, com a pele toda manchada e delirando, princesa Leopoldina morreu em fevereiro de 1871. Todos se ajoelharam ao redor do leito de morte de Leopoldina e rezaram.

Pouco tempo depois da morte da irmã, Isabel volta ao Brasil para assumir a regência enquanto o Pai, Dom Pedro II, viaja para a Europa. Como regente, Isabel começa a pensar em todos os negros que ajudou a alforriar e nos negros fugitivos que ajudou a esconder em sua residência, em Petropólis. Luta grande e muito sigilo deu a vida de Isabel um constante pensamento de abolir a escravidão no Brasil. Teria que ser aos poucos, decisões paulatinas. Isabel pensava em toda a vida do amigo tigreiro, em Nhã Santa que nunca mais encontrou os três filhos pequenos e mais vários outros negros que ajudou a “hospedar”. Tantas vidas extraviadas, tantas famílias desfeitas, tantas almas aprisionadas com grilhões de sofrimentos.

Ano de 1872, domingo, tarde quente no Rio de Janeiro. Três batidas secas na porta lateral da cozinha de Nhá Santa.

─ Entra, fio ─ grita a cozinheira.

─ Cença... Tem barril hoje, Nhá?

─ Um tonel grande que deve dar quatro barris. Pode pegar e levar.

O tigreiro Tônho tirou o velho chapéu de palha, abaixou a cabeça, entrou na cozinha, atravessou um corredor e foi até o pequeno quarto de costura. Tônho encheu o primeiro barril e avisou Nhá Santa que voltava para pegar o resto. Quando voltou, o homem perguntou pela princesa Isabel.

─ Sinhazinha está cheia de reuniões com os abolicionistas. Amanhã ela deve passar por aqui, fio!

Tônho terminou de carregar todo o conteúdo do tonel e foi tomar um banho de mar.

Era segunda-feira e Isabel precisava se aconselhar com Tônho.

─ Nhã Santã, Tônho está por perto?

 A cozinheira olhou a princesa com um jeito cansado, quase sem fôlego e disse que Tônho estava cuidando das hortaliças, pois ela estava sem força para tal labuta. Isabel olhou Nhã com carinho e foi atrás do amigo. Tônho estava colocando esterco nas hortaliças quando viu Isabel sorrindo e acenando perto do cercadinho.

─ Querido amigo, preciso de sua ajuda.

 Tônho lavou as mãos e foi se sentar em um banco que havia debaixo da mangueira.

─ Pois não Redentora. Qual a carecênça?

 A princesa gargalhou:

 ─ Até você me chamando de “redentora”?

 ─ Sim, sinhazinha. Todos os escravos a chamam assim, e é o que a senhora é e sempre será.

Isabel sabia que ainda não havia feito tudo o que precisava para ser digna de tal epíteto. A princesa se aconselhou com Tônho, contou sobre a morte de Leopoldina, falou das aflições pelos negros. De repente, na porta da cozinha, uma negrinha que ajudava Nhã Santa grita pedindo socorro. Tônho e Isabel correm para acudir a moça, mas era tarde. Santa estava deitada no chão, morta. O coração da velha cozinheira se despediu da escravidão. Isabel começou a chorar e rezar. Tônho, então, pediu permissão a Isabel para enterrar a amiga em um lugar especial. Isabel aceita e pede para ir junto. O negro pega a cozinheira nos braços e caminha rumo a mata. Isabel, chorando e carregando uma pá, segue Tônho.

Os três adentram a mata. A cada passo dentro da mata, mais escuro ia ficando e Isabel segurou no braço do tigreiro.

 ─ Não preocupa, Sinhá. No começo é mata fechada, mas logo terá uma bela clareira.

O negro segue carregando a cozinheira como se ela nada pesasse. Isabel percebe animais observando: onças-pintadas, suçuaranas, um leão, um jaguar, vários tigres, algumas zebras, umas hienas, tucanos, sucuris, araras azuis, garças, vários animais de várias faunas. Isabel não entendia o que via. Assustada, pensava como um leão podia estar ali.

 ─ Não tenha medo, Sinhã. São todos amigos.

Um feixe de luz da lua cheia indica o local. O tigreiro coloca Santa no chão e começa a cavar. Os animais se aproximam e circundam o trio. Isabel faz uma prece para a amiga, Tônho coloca a negra gentilmente na cova, põe uma camélia e terra por cima e fala algumas palavras em uma língua estranha. Uma luz muito forte paira sobre o túmulo de Santa e, de repente, um quati aparece sobre a cova. Isabel, que havia fechado os olhos por conta da forte luz, os abriu e viu um quati nos braços de Tônho:

─ O que é isso? O que aconteceu?

─ A alma de Santa voltou pro mato, Princesa. O Quati é a Nhã!

Isabel não estava entendendo. Como podia ser noite com lua cheia se quando entraram na mata era dia claro? Alguns animais não eram de nossa flora e mesmo selvagens pareciam animais mansos. Que luz era aquela? Isabel estava cheia de indagações:

─ Você está dizendo que todos morremos e viramos bichos?

─ Alguns, Sinhá! Aquele leão era um xamã africano que se tornou escravo no Brasil. A hiena era uma mãe que perdeu vários filhos mortos durante a viagem no tumbeiro. A zebra é meu irmão que trabalhava cativo em uma fazenda escravagista próxima, mas eu nunca o encontrei em vida.

─ Mas Santa não veio da África. Ela nasceu lá em casa.

─ Não importa, princesa. A alma volta para a natureza quando a força da terra chama. Santa vinha de uma longa linhagem de bantos. Quando a avó de Santa chegou ao Brasil, consagrou a família ao quati. Basta colocar uma folha ou flor consagrada por um senhor das florestas, um Katendê, próximo ao morto para que a transferência seja feita. Eu sou um Katendê, assim como todos de minha família. Os negros me estranham por não jogar os dejetos no mar como eles, mas eu dou destino melhor para as águas servidas que recolho. Traga tudo para cá e jogo nesse frondoso arbusto de camélia branca. Veja aquela linda arara-canindé logo ali ─ aponta Tônho para uma pequena árvore.

Isabel olha para o lado e observa uma bela arara azul de barriga amarela, que a fitava com atenção:

─ Princesa, essa foi sua irmã!

A Redentora olha assustada para Tônho e novamente olha para a ave:

─ Como? Leopoldina?

Isabel se ajoelha e começa a chorar:

─ A camélia debaixo do travesseiro, Tônho... A camélia!

O senhor da floresta balança a cabeça afirmativamente.

─ Consagrei sua irmã quando ela me disse que iria se casar e morar fora de sua terra amada. Leopoldina disse que sua alma precisaria ficar no Brasil mesmo que seu corpo fosse enterrado fora do país. Disse a ela que seria possível e expliquei como. Nossa amiga, sua irmã, me pediu para fazer de tudo, caso ela estivesse muito enferma, para trazê-la em alma para a terra natal. Eu disse as palavras certas para o buquê de camélias que lhe dei. Sabia que a senhora levaria um flor, se eu pedisse, para sua irmã. E foi o que ocorreu. Bastou ela pedir pela consagração.

Isabel olhava a ave que a olhava de volta:

─ Azul sempre foi sua cor preferida, minha irmã.

Depois de algum tempo em silêncio, sentados no chão, Tônho e Isabel saíram da mata.  Novamente era dia, o tempo quase não passou.

Isabel arrumou outra cozinheira, Tônho voltou para sua coleta e não mais falaram do dia em que a cozinheira e a princesa tinham a alma na mata.

A princesa seguia firme em seu intento de libertar os escravos. Três séculos de vergonha pela escravidão no Brasil deixavam Isabel revoltada. Em 1888, Isabel anunciava que era a hora de abolir a escravidão. “É agora, ou nunca!”, disse Isabel ao marido preocupado com tamanha agitação política.

Todos os políticos abolicionistas, o Conde D’Eu, a princesa, membros da família imperial estavam reunidos no Paço Imperial. Isabel estava terminando de escrever um bilhete ao pai que estava no exterior, sobre o fim da escravidão, quando ouviu uma multidão gritando em frente ao Paço. Isabel apareceu à janela, acenou e sorriu para as pessoas. A Redentora viu Tônho no meio da multidão e acenou para o amigo segurando uma camélia branca. De repente, um mulato invadiu o recinto, se atirou aos pés da princesa e começou a chorar. Isabel o levantou e perguntou-lhe o nome:

─ José do Patrocínio, Redentora. Sou mulato, sou jornalista e agora sou livre. Obrigado!

Isabel sabia que seu reinado estava no fim. A Redentora preferiu libertar seu povo ao continuar com um trono sujo de sangue e suor escravo.

Um ano após abolir a escravidão, a monarquia no Brasil havia sido extinta e a república havia sido proclamada. Logo, Isabel teria que abandonar sua terra natal, seu reino, seus amigos, rumo ao exílio. Isabel havia pedido para ser consagrada pelo Senhor da Floresta quando precisasse fugir do Brasil.

Era madrugada e chovia muito, a família real precisava fugir para o exílio. Tônho estava no Porto esperando a amiga para se despedir. Katendê consagrou Isabel e toda a família real. Cada um recebeu um saquinho de terra com uma pétala de camélia branca dentro para que, um dia, conseguissem voltar para a terra brasileira. A princesa abraçou o tigreiro e disse, entre soluções e lágrimas, que um dia voltaria. Isabel guardou todos os pacotinhos em um baú real e levou com cuidado durante toda a viagem.

O tempo passou e em novembro de 1921, um belo, grande e forte tigre recebia em sua mata uma nova arara-canindé. Ainda hoje, quando duas araras-canindé voam juntas, se prestarmos atenção, podemos ouvir os risos de duas irmãs princesas, uma que gostava de azul e outra de amarelo.