O cinema pensa

Reflexão sobre o texto “O cinema pensa” (2006) e texto “WITTGENSTEIN E CABRERA: DIFERENTES PERSPECTIVAS EM TORNO DO PROBLEMA DA INDIZIBILIDADE ÉTICA”,  da Revista Eletrônica de Filosofia da PUC de São Paulo, que apresenta uma relação entre o pensamento do filósofo Wittgenstein e Cabrera.

 

  Mulinari e Silva (2010), cita os problemas éticos e metafísicos como pseudo-problemas por serem problemas indizíveis. Mas é o que fazemos e o que somos que dá sentido as nossas palavras. Nosso comportamento é o que dá significado a nossas palavras. ParaWittgenstein (1889-1951), o que é fundamental à ética só pode ser mostrado, não pode ser dito (indizível). A ética, a estética e a dimensão mística, metafísica são transcendentes. Não estão ao alcance de nossa linguagem. Então, pelo que não se pode falar é melhor calar-se?

Julio Cabrera, em “O Cinema Pensa” (2006), revela como na arte cinematográfica é tanto difícil dizer algo, quanto não dizer nada. No cinema, na tela, o mundo é tudo que acontece. Para Wittgenstein, os limites para a linguagem, são os limites para o mundo. Já no cinema, Cabrera revela que o emocional diz algo a respeito do mundo, do ser humano, da natureza.

A linguagem é poderosa, criadora de mundos, sujeitos.  Nossa lógica cartesiana criou um mundo incompleto, um mundo que não conversa com o irracional, o fantasioso, o imaginário. Não percebemos que as ilusões, as simulações são necessárias. “Até a ciência está cheia de simulações” (CABRERA, 2006, p. 37). Possivelmente, o homem não tenha necessidade de verdade (s), mas de ilusão (ilusões). O cinema nos mostra que a ilusão, a emoção pode ser sentida. Talvez não suportada, mas sentida (Clément Rosset).

Interessante quando Cabrera fala da “universalidade do cinema” pertence a ordem da possibilidade. O cinema como algo universal, no qual algo pode acontecer com qualquer um. Nossa angústia mesmo em situações corriqueiras, cotidianas, nos inquieta. Mas é tal situação angustiante, não dita, que nos dá a sensação de incômodo que nos impulsiona. O cinema é a arte do incômodo. É a compatibilidade das imagens na tela com nossos pensamentos. Quando essa compatibilidade ocorre, e vai ocorrendo ad infinitum, pois o cinema é uma experiência aberta, temos a identificação. Identificamos-nos com o que vemos, com a linguagem do cinema, do filme, da estória − Captamos o mundo.

 

 

CABRERA, Julio. O cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.

 

MULINARI E SILVA, Filicio. Wittgenstein e cabrera: diferentes perspectivas em torno do Problema da indizibilidade ética. Cognitio-Estudos: Revista Eletrônica de Filosofia.  Centro de Estudos de Pragmatismo – Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, Volume 7, Número 2, jul. – dez., 2010, pp. 166-173.Disponível em <  http://www.pucsp.br/pos/filosofia/Pragmatismo>. Acesso em: 13 abr. 2013.

 

 

 

Ero-Guro: O mal na erótica e grotesca literatura de Suehiro Maruo

 

 

Resumo: O presente artigo analisa a representação grotesca do mal em Ero-Guro (2005), obra erótico-grotesca do escritor japonês Suehiro Maruo. Com uma literatura considerada ero-guro-nansensu (erótico-grotesco-absurdo), Maruo traça uma diferenciada cultura japonesa que caminha pelas marginalidades e abjeções. O mangá Suehiro nos apresenta a fantasia, o grotesco, o horror, a maldade e o erotismo em nove contos repletos de intertextualidade. Ero-guro-nansensu era um modo literário dominante do modernismo estético japonês entre 1920 e 1930 e que chega aos dias atuais em novos traços de Maruo, com inspirações profundas na literatura de Edgar Allan Poe, Sade, Rimbaud, Sófocles, psicanálise freudiana, estudos de gênero e sexualidade, criminologia, inspirações em obras de Salvador Dalí e na filosofia de Georges Bataille. Na obra de Suehiro temos: Sodomia, coprofilia, incesto, canibalismo, pedofilia, zoofilia, voyerismo e flagelação. As influências do ero-guro continuam populares e difundidas em formas culturais contemporâneas, além de vários mangás, temos animes, músicas e filmes.

 

 

Palavras-chave: Suehiro Maruo; mangá; erótico; grotesco; literatura

 

 

Contexto histórico para o Ero-Guro

 

 

As décadas de 1920 e 1930 viveram um período entreguerras (1918-1939) e uma Grande Depressão (crise de 1929) na economia. O Japão, que havia sofrido com o terremoto em 1923[1], precisou se reconstruir rapidamente. Foram tantas as transformações durante a reconstrução pós-terremoto que o mundo ocidental adentrou e se mesclou ao universo japonês, política e economicamente. Durante os anos 20, houve o início da radiodifusão (1925), proliferação dos baa (bares), kafuee (cafés), kissaten (salões de chá), o aumento da circulação de ônibus, criação das estradas de ferro suburbanas e o início do sistema de metrô (1927), elementos que ampliavam o termo “sociedade de massa” no Japão.

 A revista Modern Sexuality, publicada pela primeira vez em 1922, era um espaço no qual cada leitor japonês foi introduzido, em locais metropolitanos do Japão, aos novos tipos de prazeres, paixões, ansiedades e esgotamentos desencadeadas pelo capitalismo moderno. Havia os ryōki (caçadores de curiosidades, caçadores de bizarrices eróticas), pessoas que possuíam compulsão em buscar experiências estranhas e incomuns. As revistas para os gurotesuks (apreciadores do erótico-grotesco, ero-guro) e os ryōkis facilitavam certo escapismo das constrições da vida cotidiana japonesa. Devido ao envolvimento com as narrativas, os japoneses foram capazes de fantasiar sobre um estilo de vida diferente do que existia e desejar atividades que rejeitavam a incorporação no programa de construção da nação [2].

No começo de 1930, assuntos eróticos, grotescos (grotesque/gurotesuku) e sem sentido (nonsense/nasensu) circulavam na cultura do Império Japonês. A abreviação “ero-guro-nasensu” torna-se um sucesso atemporal, no qual a maldade, o estranho e o grotesco ganhavam terreno em ilustrações, movimentos artísticos e literários japoneses.  Com o tempo, a abreviação para as imagens e literaturas sobre fantasias eróticas sombrias combinadas com atitudes e objetos abjetos, tornou-se apenas ero-guro.

O termo ero era onipresente na mídia popular da época e ligado a discussões sobre a promiscuidade sexual e a configuração do corpo feminino (e às vezes do corpo masculino). “Contudo, ero pode ser usado em um sentido muito mais amplo, aludindo a uma variedade de gratificações sexuais, expressividades físicas e a afirmação de intimidades sociais”. O termo “grotesco” (guro) era associado a malformações, crimes praticados de forma obscena, desigualdades sociais e consequentes práticas sociais daqueles que viviam dentro de uma cultura de consumo definida pelas dificuldades econômicas da depressão[3].

 Na década de 1930, os recursos visuais desenhados à mão eram uma resposta às pressões econômicas e políticas que censuraram parte do Estado japonês. Com o Japão cada vez mais militarizado, tornou-se longa a história e o fascínio do país com a erótica. Entre civis e militares houve uma intensa exploração sexual, hedonista e sensacionalista de tudo que fosse anormal e tabu, refletindo não apenas desejos sensuais recém-descobertos, mas uma erupção de mudanças políticas.

De 1926 até 1989, o Japão viveu sob o Período Showa (ou era Showa) no qual o país foi tomado pelo totalitarismo político, ultranacionalismo e imperialismo militar. De um país de samurais, o Japão passou a ser um país e comerciantes. A era Showa era altamente mercantilista. O sexo era artigo de venda, as mulheres e crianças eram objetos de exploração e o ero-guro surgiu como reflexo da sensibilidade de uma cultura que estuprava mulheres “cujas idades variavam de 12 e 80 anos”. Muitas eram mortas após satisfazerem as demandas sexuais dos militares. As que não foram assassinadas ou morreram vítimas de enfermidades causadas pelo frio, fome, pelas doenças venéreas ou abortos mal sucedidos, sobreviviam envergonhadas, silenciosas e solitárias[4].

Durante a Guerra do Pacífico (1932-1945) jovens mulheres foram exploradas sexualmente pelos militares japoneses, “entre 80 e 200 mil mulheres foram mobilizadas pelo Exército Imperial Japonês” [5]. Meninas órfãs e jovens de países sob domínio imperial japonês (provinham da Coreia, China, Filipinas, Tailândia, Vietnã, Malásia, Taiwan, Índias Orientais Neerlandesas, Indonésia, incluso o Timor-Leste) teriam sido levadas de seus lares, enganadas por falsas ofertas de trabalho ou contra a vontade. As mulheres eram levadas para o Japão e estabelecidas em locais conhecidos como “postos de conforto” / “estações de conforto”. As habitantes dos postos eram conhecidas como “mulheres de conforto”. Os postos foram criados para evitar a disseminação de doenças venéreas e o estupro de mulheres japonesas pelos militares[6]. As escravas sexuais eram conhecidas como wianbu (em coreano) e ianfu (em japonês) e, em sua maioria, eram coreanas jovens e pobres.

Observa-se que, naquela época, o exército japonês tinha à sua disposição “mulheres de conforto” do Japão (karayuki-san), mas estas eram principalmente ex-prostitutas e mulheres que trabalhavam em serviços de entretenimento, algumas das quais possuíam doenças venéreas. A fim de combater a propagação de doenças e prevenir crimes sexuais por soldados contra as mulheres dos territórios ocupados, a liderança militar sugeriu que o governo recrutasse jovens mulheres solteiras das colônias (presumidas virgens e, portanto, livres de doenças sexualmente transmissíveis) como “mulheres de conforto” para o exército japonês. Uma vez que a Coréia encontrava-se sob o domínio colonial do Japão entre 1910 e 1945, o Governo japonês optou por usar as jovens coreanas como “mulheres de conforto”. (...) o povo coreano era visto como uma raça inferior e suas mulheres mais adequadas para a exploração sexual[7].

Algumas mulheres recrutadas, enganadas, estupradas, exploradas e com sintomas psicológicos e psicossomáticos encontravam um pouco de conforto nas bebidas, enquanto outras cometiam suicídio. Era o reino da decadência japonesa no qual as “mulheres de conforto” se viam na “humilhante tarefa de lavar e reciclar os preservativos usados para evitar a contaminação por doenças sexualmente transmissíveis” [8]. Esse contexto histórico seria pano de fundo para a literatura ero-guro.

Em tão conturbado período da história japonesa, os jovens, os mobos (modern boy) e as mogas (modern girls), passaram a consumir o que representasse o pessimismo, a maldade e a decadência que os circulava, estórias que marcavam grotescamente o corpo sociocultural do Japão, leituras que serviam para “destruição da lógica e de tudo o que nela se apoia. Destruição também da religião, da moral, da família, camisas de força que impedem que o homem viva segundo o seu desejo”[9].

 Escritores como Maruki Sado[10] (transliteração de Marques de Sade em kanji, pseudônimo de Hata Toyokichi), o poeta e tradutor Horiguchi Daigaku (1892-1981) e Yokomitsu Riichi (1898-1947) foram fundamentais para “explorar o que poderia significar o erotismo no cruzamento com a modernidade, a ciência e a antropologia”. Para Yokomitsu, a forma da cultura de massa ligada ao ero-guro poderia ser chamada de “novo barbarismo”, ou seja, junção de modernidade (capitalismo), batalha de desejos para retornar a “simplicidade” e a expressão de um desejo de decadência [11]. Na era Showa, a noção de “dekadansu” (em katakana, do francês décadent), acabou por ser uma bandeira ideológica para um número de escolas e movimentos literários. A noção implícita de “inutilidade” foi transformada em “utilidade” como uma ideologia.

O estilo irrealista de ero-guro foi a maneira que os artistas contemporâneos encontraram para dissecar tabus e, ao mesmo tempo, chocar e normalizar as percepções dos observadores. As personagens das imagens ero-guro ou estão passivamente experimentando o anormal como normal, apreciando o ato, ou estão graciosamente desconfortáveis. Desta forma, os artistas tratam da continuada repressão da humanidade, reconhecendo nossas estranhas e sórdidas fantasias sexuais. Tais imagens eróticas e grotescas poderiam parecer profundamente chocantes para aqueles que não estão familiarizados com a longa história da arte erótica na China e Japão. “O gosto dos japoneses pelo erotismo sempre foi muito intenso. Ainda hoje, as histórias em quadrinhos (mangás) frequentemente têm como tema histórias mais ou menos eróticas” [12].

O ero-guro tornou-se a reificação das imagens modernas, um coquetel cultural de sentimentos marginalizados, abomináveis e misteriosos, um retorno ao que estava recalcado, ao mal reprimido.

 

 

Suehiro Maruo, perversão e o grotesco

 

Suehiro Maruo é um mangaká (desenhista de mangás) reconhecido internacionalmente por seu trabalho como um artista ero-guro. O desenhista retrata cada cena de suas obras com um senso de beleza terrível, de certa maneira.

Artista autodidata da cena underground dos quadrinhos japoneses, vindo de uma família pobre, nasceu em Nagasaki (Japão, 1956). As obras gráficas de Maruo são caracterizadas por uma violência extrema e uma visão mortificante do sexo, muitas de suas histórias são permeadas de um universo inspirado e influenciado por Edgar Allan Poe (1809-1849), pelo Expressionismo alemão, o Surrealismo, as pinturas de Otto Dix (1891-1969), a literatura de Sade (1740-1814), de Kafka (1883-1924), Georges Bataille (1897-1962), as fotografias e esculturas do alemão Hans Bellmer (1902-1975), entre outros. Influências com viés grotesco, horrível e fantástico.

Com uma literatura erótica-grotesca-absurda, Maruo traça uma diferenciada cultura japonesa que caminha pelas marginalidades e abjeções de sentimentos e corpos, provando que o manga é uma arte decididamente livre e sem tabus. O mangaká caminha por um mundo que mescla sexo e sangue, dissecando homens e mulheres, explorando as relações dominador/dominado, revelando um ambiente cheio de desvios éticos e estéticos. Nos mangás de Suehiro há um fascínio pelo macabro, pelas criaturas malditas. “(...) criaturas malditas suscitam, por seu estranho status — metade homens, metade animais —, um fascínio recorrente” [13].

Um dos traços recorrentes nos mangás de Maruo é a presença de figuras perversas, com suas vidas “inomináveis: infames, minúsculas, anônimas, miseráveis” [14]. Figuras que revelam o próprio corpo reduzido a um dejeto, uma abjeção da natureza.

Demoníaco, amaldiçoado, criminoso, devasso, torturador, lascivo, fraudador, charlatão, delituoso, o pervertedor era em primeiro lugar uma criatura dúbia, (...). Embora vivamos num mundo em que a ciência ocupou o lugar da autoridade divina, o corpo o da alma, e o desvio o do mal, a perversão é sempre, queiramos ou não, sinônimo de perversidade. (...) espécie de negativo da liberdade: aniquilamento, desumanização, ódio, destruição, domínio, crueldade, gozo [15].

Os mangás criados por Maruo não são apenas o choque pelo choque. Há uma apelação dos traços? Claro que existe o exagero. Temos a entrada do grotesco nas estórias criadas pelo artista japonês. “O grotesco em geral emana do polo de uma alteridade que se mostra, por vezes, desorientadora, incompreensível, incerta ou mesmo hostil ao senso comum” [16].

 Diante da sociedade e da cultura japonesa aniquilada e subjulgada pela cultura ocidental, o grotesco não é apenas mera representação burlesca, mas uma angústia complexa e perplexa diante da erosão do ser humano, do aniquilamento do mundo. “O grotesco adquire uma relação subterrânea com a nossa realidade, e um teor de ‘verdade’” [17]. Observar qualquer mangá ero-guro é estar diante do repentino e da surpresa, partes essenciais do grotesco e da maldade presente no humano.

 

 

Nove contos inorgânicos

 

Há quem acredite que um mangá cheio de imagens eróticas e grotescas não seja uma obra literária, mas a literatura de Suehiro é inorgânica e “sendo inorgânica, a literatura é irresponsável. Nada pesa sobre ela. Pode dizer tudo” [18].

Nosso artigo analisa o modo como o mal se mescla ao erótico e ao grotesco presente nos nove contos da obra “Ero-Guro”, lançada no Brasil pela Editora Conrad, em 2005. São nove contos permeados de perversão, horror, sexo e dejetos. Na obra de Suehiro temos: Sodomia, coprofilia, incesto, canibalismo, pedofilia, zoofilia, voyerismo e flagelação. Em traço preto e branco, o mangá nos mostra que a maldade tem uma sensibilidade irônica, revelando detalhes sobre alimentação, habitação, modos de entretenimento popular e atitudes em relação à sexualidade. O estilo fantástico e irrealista de ero-guro foi uma maneira que os artistas contemporâneos encontraram para dissecar tabus e normalizar as percepções dos espectadores.

Maruo cria nove contos, com relatos distintos, repletos de referências literárias e cultura ocidental. As histórias, na ordem, são: “Noite podre”; “O garoto da latrina”; “Uma temporada no inferno”; “Receita para uma sopa de merda”; “O grande masturbador”; “Noite podre / O corvo de Édipo”; “O paraíso do garoto da latrina”; “O voyeur do sótão” e, finalmente, “A cidade que sucumbe”.

As narrativas imagéticas e textuais nesta obra são complementares
para a representação da expressão estética de Maruo. A profusão de vozes ao longo dessa narrativa evidencia a presença exatamente do que Bakhtin aponta como dialogismo, isto é, um discurso que representa a constituição do sujeito em relação com o mundo, através de diálogos já existentes, dando origem a um novo texto [19].

 

As influências diretas encontradas nos contos de Maruo são perceptíveis: “O Corvo” (Edgar Allan Poe); “O Grande Masturbador” (Salvador Dalí); “Uma temporada no Inferno” (Rimbaud); e “A História do Olho” (Georges Bataille). Essas são as influências mais claras, explícitas até nos título de alguns capítulos.

Corpos dilacerados, violentados, devorados, esta é a imagem recorrente do corpo humano nos contos de Maruo. Porém, nenhum corpo está na obra sem uma razão. Devemos olhar para além dos sangramentos, cortes, dejetos, perversões sexuais, para ver uma crítica mais profunda aos movimentos políticos e as convenções sociais japonesas. Maruo não retrata personagens abastados. O que interessa ao mangaká é o que acontece no mundo dos humildes, dos famintos, dos desvalidos. Nos nove contos temos um dominador grotesco e maligno que domina outros, mas também é dominado pelo sistema econômico e sociocultural.

No conto que abre a obra, “Noite Podre”, Suehiro traz elementos do filme surrealista francês “Um Cão Andaluz”, lançado em 1928, dirigido por Luis Buñuel e roteirizado por Buñuel e Salvador Dalí. Temos a mutilação sofrida pelo corpo, o olho/lua trespassado pela lâmina. O conto nos dá um marido (um homem mais velho) que sente prazer ao praticar “sexo selvagem” com sua jovem esposa. O marido é carrasco que sente mais excitação com pequenos cortes feitos no corpo da esposa. Cansada de tanta humilhação, a jovem e seu amante resolvem matar o marido. Esposa e amante acabam sendo retalhados pelo marido, perdem braços e olhos. Mesmo dilacerada, a esposa é violentada pelo marido. O carrasco violenta a esposa ensanguentada como se fosse um Perseu vitorioso segurando a cabeça da Medusa. É o triunfo do poder, do patriarcado, do corpo político e militar japonês. Buñuel e Dalí, cinematograficamente, cortam o olho; o marido retira os olhos da esposa, não haverá mais como fixar a face da alteridade, não será reencontrada a figura humana. Maruo cria um “imaginário do dilaceramento” como se desejasse “alterar a forma humana a fim de lançá-la aos limites de sua desfiguração” [20].

Em “O Garoto da Latrina”, temos a imagem de Marlene Dietrich quase voyeur na cena. Dietrich aparece em um pôster [21] pendurado na parede da latrina, na parte inferior, no mesmo local em que vive o garoto da estória. Outro conto que revela a crise social japonesa no qual mulheres abortavam ou abandonavam os filhos, como fizeram várias “mulheres de conforto”. Certo dia uma mãe jogou o próprio bebê na latrina, mas criança sobreviveu e cresceu em meio aos dejetos.

O garoto veio dos condutos sexuais que evacuaram dejeções, nossas “partes pudendas”, e passou a habitar a área da imundície, da corrupção e, futuramente, para o garoto, local de sexualidade. Inter faeces et urinam nascimur: “Nascemos entre fezes e urina” [22]. O garoto cresceu e tornou-se um psicopata escatológico. Vivendo no campo da repugnância e da náusea o jovem lutou com a morte e fez da latrina seu túmulo e lar, sua fonte de alimento e prazer. “Não há melhor meio de se familiarizar com a morte do que associá-la a uma ideia libertina” [23].

No conto “Uma temporada no inferno” um jovem que circula pela cidade como se percebesse todo caos ao redor e, mesmo assim, não é afetado pelo horror. É um conto simples sobre um doce inferno de existir e resistir destruindo a beleza, como fez Rimbaud em obra homônima. É a visão pessimista e decadente do mundo pelos olhos de um jovem oriental. Um jovem, em pleno sentimento de decadência social, caminha lado a lado com á própria inocência em uma temporada no submundo japonês do entre guerras. Ao fazer o caminho usual para a escola o rapaz vê três corpos mutilados na estrada, uma jovem e um casal de meia-idade, e decide não se envolver com a situação.

 Temos um garoto que odeia a própria vida, a família, usa tapa-olho e recebe a constante visita de uma grande lesma falante. Heil Hitler é como o jovem recebe a lesma. Há uma cumplicidade entre o rapaz e o molusco, uma relação Japão-Alemanha. A atmosfera é surrealista e o jovem é um enfant terrible rimbaudiano que sonha eroticamente com a moça dilacerada na estrada. Para o rapaz que parece viver num pesadelo e num deslumbramento, a garota morta se parece com a jovem Audrey Hepburn[24], o que nos dá uma indicação de tempo, possivelmente entre as décadas de 1940 e 1950.  Para o rapaz, há a constante vontade de morrer, uma sensação de incompreensão familiar. Viver é uma estadia no inferno.  O inferno é uma ideia frágil que Deus nos dá involuntariamente de si mesmo. O ser se convida a si mesmo para a terrível dança cuja síncope é o ritmo dançante, e que devemos aceitá-la como ela é, já sabendo do horror que a acompanha[25]. O mundo, as pessoas, a história em fragmentos, em ruínas, e o que resta ao jovem é a memória de corpos dilacerados pelo caminho. Vivendo no caos, no horror, na decadência da existência, em um inferno psicossocial em meio a tantas guerras, a luta do jovem é com seus próprios fantasmas, com a sombra que o persegue. Tornar-se mal é encontrar a si mesmo, mas na escuridão. “O Bem é o passivo subordinado à Razão. O Mal é o ativo que nasce da Energia. O Bem é o Céu. O Mal é o Inferno...” [26].

No conto “Receita para uma sopa de merda”, nitidamente inspirado na obra “História do Olho” (Histoire de l'oeil, 1928) de Georges Bataille, três jovens realizam desejos sexuais, explorando jogos de amor. Dois rapazes e uma moça[27] brincando com um olho de vaca, como ocorre no livro de Bataille. Sêmen e fezes são os bizarros objetos de desejo. No conto reina a parafilia (voyeurismo, sexo grupal, coprofagia) para fragmentar e dispersar o corpo, revelando a fragmentação do ser. O corpo é o primeiro alvo a ser atacado na perversão, um ataque que fascina o observador. “(...) os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos” [28].

Ao fim do conto, depois de tantas fantasias sexuais, os jovens se jogam de um precipício. O gozo da sujeira, dos excrementos, da urina, do sêmen, liberta os pervertidos do tempo e dos limites. Os três tornam-se “Uno” na queda, na morte, no vazio. “O sentido último do erotismo é a fusão, a supressão do limite. O sentido último do erotismo é a morte” [29].

Ainda sobre o gozo derivado do desejo pelo olho e o caos que é o decompor da forma humana, presente tanto em Battaile, nos surrealistas, quanto em Maruo, temos o conto “O Grande Masturbador”, referência ao quadro homônimo pintado por Dalí em 1929. Há no conto uma relação conflituosa em relação ao ato sexual. Um rapaz que tem desejo sexual pela tia-avó morta é a própria associação de sexo e decadência, do incesto. Ao se masturbar no túmulo da anciã, o jovem encontra prazer no caos, no solo sagrado do cemitério, em uma atmosfera fantasmática que deveria causar medo, mas causa tensão sexual. O corpo está em crise e somente será restaurado através do desejo. Passamos, em tal conto, do corpo fragmentado para o corpo ausente. A tia-avó não está viva, presente e, ainda assim, o jovem sente prazer em seu corpo ausente, através da memória. Gozar sobre a cova da avó morta é o próprio êxtase solitário. “Aquele que apreende um instante o valor do erotismo percebe depressa que este valor é o da morte. É talvez um valor que a solidão sufoca”. Temos, ainda no conto, imagens de animais saindo do órgão sexual feminino e cenas de dilaceramentos realizados por homens de usam o que parece ser um chapéu do Exército Imperial Japonês. É a transgressão do corpo em tempos de guerra, “é sempre a transgressão, a violação dos interditos em que repousa a civilização” [30].

No conto “Noite Podre/ O corvo de Édipo” teremos a perversão do incesto. Uma filha cuida do pai mutilado. O homem não tem pernas, braços, e faltam vários dentes, há uma grande barriga cheia de cicatrizes, um rosto coberto por ataduras e problemas na fala. Temos uma relação de prazer e dor entre as personagens. O homem não parece humano, mas uma forma monstruosa, uma deformidade ameaçadora. O animal habita o homem inacabado como se fosse um desvio da natureza que existe apenas para gemer, comer e evacuar. Ao efetuar felação no pai, a filha arranca um pedaço do pênis. O corvo de Édipo carrega a morte no bico. Quem é o monstro? O pai, um corpo mutilado? Ou a filha, um ser que pode mutilar? “(...), a espécie humana não consegue manter-se indiferente diante de seus monstros” [31].

“O Paraíso do Garoto da Latrina” é uma continuação do conto “O garoto da latrina”. Fazendo alusão ao conto “O Flautista de Hamelin” dos irmãos Grimm[32], Maruo nos mostra um garoto que atrai moças orientais, colegiais, para uma orgia. As jovens, hipnotizadas, como os ratos do flautista de Hamelin, seguem o odor de sêmen e excrementos que o garoto exala e acabam em uma sodomia com homens mais velhos. O paraíso aqui é uma paródia, uma simulação do delírio, da moralidade japonesa. Homens gordos e mais velhos como representação do corpo militar e social de um período bélico. A exploração de jovens orientais por homens, em sua maioria militares, tanto orientais quanto ocidentais. O garoto da latrina é a personificação do desejo, da natureza traumática, da satisfação mórbida, das “irregularidades escandalosas” propostas por Sade. Orgias como contestação, como crítica histórica e como fonte de prazer doentio. “(...) é possível ter tanto prazer durante as orgias, matando ou torturando, quanto arruinando uma família, um país, ou simplesmente roubando” [33]. A noção paraíso do garoto que cresceu em uma latrina é grotesca para quem observa, mas não para quem participa de tal paraíso, pois há uma partilha do sagrado através do ato orgiástico e escatológico. O paraíso do garoto que habita a latrina é um universo batailleano no qual o corpo agonizante ganha relevo, um mundo cheio de dor e prazer simultaneamente.

Há em “O Voyeur do Sótão” um personagem que nos faz lembrar o sonâmbulo Cesare do filme expressionista alemão “O Gabinete do Doutor Caligari” (1920). O jovem, que fica escondido no desvão do que parece ser uma velha casa, tem imenso prazer voyeurístico por uma moça grávida. A gravidez parece ser indesejada, o feto é assassinado e a moça joga o pequeno corpo morto no desvão, no mesmo local no qual o jovem fica espionando. O voyeur devolve o feto para o quarto da mãe, encontrando imenso prazer em torturá-la. O feto sobe e desce numa zona de indesejo, numa perda de unidade do corpo, num prazer maldoso. Não é mais um filho, uma vítima, é apenas uma prova do crime cometido pela mãe. O feto é uma paródia do voyeur ou da mãe – é um ser que só observa. Somos, os leitores, paródias do feto, pois apenas observamos o ir e vir do corpo morto. “(...), cada coisa que se vê é uma paródia de outra coisa, ou da mesma coisa sob uma forma decepcionante” [34].

No último, mais extenso e político conto da obra de Suehiro Maruo, “A cidade que sucumbe”, temos uma contundente crítica aos tempos fraturados do entreguerras e ao sofrimento dos menos favorecidos. A cidade é Tóquio, o ano é 1946, um ano após o ataque atômico contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki[35] e o fim da Segunda Guerra Mundial. O cenário é de decadência, fome, mutilações, febre tifoide e mortes.

A trama gira em torno de um anão sádico (Senhor Hirai), uma pobre mãe e seu pequeno e faminto filho. Enquanto o marido foi para a guerra, a mulher tenta cuidar sozinha do filho e vender velas na rua. Para seduzir a mulher, o anão oferece comida. Ela recusa, mas aceita trabalhar como vendedora de churrasquinhos para o insistente desconhecido. Em meio à falta de total higiene sanitária, a criança se alimenta dos próprios vermes. Temos uma Tóquio suja, cheia de animais peçonhentos, vermes, moscas, cães sarnentos, casas sem energia elétrica, militares semelhantes a zumbis retornando para casa. Maruo também nos oferece imagens do mainstream norte-americano, entre imagens de miséria que sucumbe a cidade de Tóquio.

Mulheres japonesas são molestadas por soldados ocidentais. O próprio anão do conto é um ator pornô, para um militar/diretor, nas horas vagas. Uma forma que Maruo usou para mostrar a submissão do oriente para com o ocidente. Um conto grotesco que mostra o declínio e a expressão sombria da sociedade e o corpo.

Hirai mata o filho da amante e faz churrasquinho da carne da criança. A própria mãe come pedaços do filho sem saber. É a fome, é o caos. Se não fosse desgraça suficiente, a mulher se descobre grávida do anão. Em um final bizarro e apoteótico, a mulher arranca do próprio corpo o feto do monstro − Seppuku[36]. O corpo da mãe é como o corpo social japonês em período bélico. “O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos, lugar de dissolução do Eu, volume em perpétua pulverização” [37].           Em “A cidade que sucumbe”, além do corpo, Maruo explora o lado psicológico das personagens. Não há amor, apenas necessidade de sobreviver, como humano ou como animal, em um mundo medonho que leva a todos ao caos e a morte.

Uma mãe joga o filho na latrina, a outra arranca o filho do próprio ventre, o filho mata os pais, a filha mutila o pai, os jovens se jogam do penhasco... Cada ser foi tocado no ponto em que sucumbia − no próprio futuro, na ferida aberta de uma triste e maldosa realidade pós-guerra. O grotesco encontra a morbidez na obre de Maruo. O abjeto como algo que é necessário ser usado para se tornar humano. Não há limites para a imaginação humana, nem para as imagens do “mal”. Há um fascínio angustiante pelas formas degeneradas. 

 

 

Considerações finais

 

Suehiro Maruo usou imagens grotescas, abjetas do corpo para inscrever os conflitos existentes na sociedade japonesa em tempos de guerras. Com seus contos eróticos grotescos, Maruo retira a máscara que aliena o rosto da história oriental. O outro, o puro caos, o estranho, está dentro e fora do corpo mutilado pela dor, pela pobreza, pela violência, pela maldade. A morte parece ser a única saída. O erótico grotesco é a única brutalidade capaz de romper com aquilo que sufoca, assim como o horror.

Durante nove contos, caminhamos por aquilo que a cultura ocidental quase sempre rejeitou – a imperfeição, o corpo monstruoso e dilacerado, a maldade e a convulsão sexual. As estórias são feias, não banais; grotescas, não populares; imorais, mas jamais injustas. É o mal e a marginalidade como uma possibilidade de redescobrimento cultura de um povo. Maruo nos propõe pensarmos nossa fatídica imperfeição diante do caos do mundo. O mangaká desenha a crueldade dos fatos de forma sensível, repletas de obscenidades e desencanto. Mergulhamos, em cada conto, nos traumas da vida de olhos bem abertos, testemunhando de modo obsceno as luzes e as sombras do ser humano.

O mundo que Suehiro nos apresenta não é um mundo completamente estranho, é apenas um mundo às avessas de um imaginário assustador que povoa nossa história, nossa cultura. “Uma critica que engloba, portanto, além da sexualidade, do corpo e de seus orifícios, a ordem política, social, moral e cultural” [38].

O movimento cultural ero-guro representou uma fascinação pelos instintos mais primitivos, irracionais, eróticos e tanáticos, normalmente reprimidos pela lógica, pela civilização do superego e pela ética sociocultural. As imagens grotescas, surreais e macabras influenciaram e influenciam artistas japoneses e ocidentais. Imagens que possuem muito sangue, vísceras, várias abjeções, tudo misturado ao erótico e a violência, causando angústia e/ou curiosidade aos observadores. As influências do ero-guro continuam populares e difundidas em formas culturais contemporâneas, além de vários mangás, há animes, músicas e filmes. Maruo nos deu a parte mais obscura de sua cultura, para nos mostrar que a perversão é também uma criatividade, superação de si, expiação da maldade.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AMANO, Ikuho. Decadent Literature in Twentieth-Century Japan: spectacles of idler labor. New York: Palgrave Macmillan, 2013.

BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1970-1988, t. I a XII.

__________________. O erotismo. Tradução de Antonio Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987.

__________________. A Literatura e o Mal. Porto Alegre: L&PM, 1989.

__________________. História do Olho. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

BUCKLEY, Sandra. The Encyclopedia of Contemporary Japanese Culture. New York: Taylor & Francis e-Library, 2006.

CASTURINO, Márcia. Suehiro Maruo: o sublime e o abjeto como estética da existência. Rio de Janeiro: UFRJ/EBA, 2010. Disponível em: < https://issuu.com/marcia.casturino/docs/dissertacao_marciacasturino>. Acesso em: 15 jan. 2016.

FRÉDÉRIC, Louis. O Japão: dicionário e civilização. São Paulo: Globo, 2008.

KAYSER, Wolfgang. O grotesco. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2003.

KING, James; IWAKIRI, Yuriko. Japanese Warrior Prints, 1646-1904. Boston: Brill Academic Pub, 2006.

LAPSKY, Igor. LEÃO, Karl Schurster Sousa. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. (Orgs.). O Cinema vai à Guerra: Guerras, Conflitos e Revoluções através das lentes de grandes filmes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

MACHADO, R. (Org.). Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. (Edição com base em textos de Michel Foucault), 1979.

MARUO, Suehiro. Ero-Guru: O erótico-grotesco de Suehiro Maruo. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2005.

MCLELLAND, Mark. Love, Sex, and Democracy in Japan During the American Occupation. New York: Palgrave Macmillan, 2012.

MORAES, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana: de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Iluminuras, 2002.

NADEAU, Maurice. História do Surrealismo. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1985.

OKAMOTO, Julia Yuri. As “mulheres de conforto” da Guerra do Pacífico. Revista de Iniciação Científica em Relações Internacionais (ISSN: 2318-9452), 2013. RICRI Vol. 1. Disponível em: <http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ricri/issue/view/1344>. Acesso em: 20 jan 2016.

ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos. Tradução André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

SANTOS, Fabiano Rodrigo da Silva. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. (Coleção PROPG Digital - UNESP). ISBN 9788579830266. Disponível em: <http://hdl.handle.net/11449/109120>. Acesso em 19 jan 2016.

SCHENKING, J. Charles. The Great Kanto Earthquake and the Chimera of National Reconstruction in Japan. New York: Columbia University Press, 2013.

SCHODT, Frederik L. Dreamland Japan: Writings on Modern Manga. California: Stone Bridge Press, 2011.

SILVERBERG, Miriam Rom. Erotic Grotesque Nonsense: The Mass Culture of Japanese Modern Times. Berkeley: University of California Press, 2006.

SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: MAUAD, 2002.

URBANO, Krystal Cortez Luz; AZEVEDO, Vinícius Reis. Introdução à arte erótica e grotesca de Suehiro Maruo: uma análise intertextual do mangá Ero-Guro (2005). IX ENECULT. Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Bahia-Salvador. 11-13 de setembro de 2013. Disponível em: < http://www.academia.edu/4169207>. Acesso em 05 fev. 2016.

 

SITE VISITADO:

ROBERTA, Caroline.  Ero-Guro: O erótico grotesco de Suehiro Maruo. Elfen Lied Brasil, 13 de mar. 2011. Disponível em: < http://www.elfenliedbrasil.com/2011/03/18-ero-guro-o-erotico-grotesco-de.html> Acesso em: 17 jan 2016.

 



[1]  No dia 1º de setembro de 1923, um terremoto de magnitude 7,9 atingiu a planície de Kanto, no Japão, e destruiu Tóquio, Yokohama e arredores. Cerca de 140 mil pessoas morreram no que ficou conhecido como o “Grande sismo de Kantō”. Cf. SCHENKING. The Great Kanto Earthquake and the Chimera of National Reconstruction in Japan.

[2] MCLELLAND. Love, Sex, and Democracy in Japan During the American Occupation, p. 32-33.

[3] SILVERBERG. Grotesque Nonsense: The Mass Culture of Japanese Modern Times, p. 29-30.

[4] OKAMOTO. As “mulheres de conforto” da Guerra do Pacífico.

[5] OKAMOTO. As “mulheres de conforto” da Guerra do Pacífico, p. 91.

[6] LAPSKY; LEÃO; SILVA. O Cinema vai à Guerra: Guerras, Conflitos e Revoluções através das lentes de grandes filmes.

[7] OKAMOTO. As “mulheres de conforto” da Guerra do Pacífico, p. 94.

[8] OKAMOTO. As “mulheres de conforto” da Guerra do Pacífico, p. 96.

[9] NADEAU. História do Surrealismo, p. 63.

[10] Hata Toyokichi (1892-1956) era escritor e tradutor. Traduziu obras de Goethe e Erich-Maria Remarque. Com o pseudônimo de “Maruki Sado” escreveu novelas e romances eróticos.

[11] AMANO. Decadent Literature in Twentieth-Century Japan: spectacles of idler labor, p. 22.

[12] FRÉDÉRIC. O Japão: dicionário e civilização, p.254- 255.

[13] ROUDINESCO. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos, p. 08.

[14] FOUCAULT apud ROUDINESCO. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos, p.07.

[15] ROUDINESCO. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos, p.11.

[16] SANTOS. Lira dissonante: considerações sobre aspectos do grotesco na poesia de Bernardo Guimarães e Cruz e Sousa, p.138.

[17] KAYSER. O grotesco, p.31.

[18] BATAILLE. História do Olho, p. 10.

[19] URBANO; AZEVEDO. Introdução à arte erótica e grotesca de Suehiro Maruo: uma análise intertextual do mangá Ero-Guro.

[20] MOARES. O corpo impossível: a decomposição da fi gura humana: de Lautréamont a Bataille, p.19.

[21] Imagem de Marlene Dietrich, referência ao filme expressionista/realista alemão Der Blaue Engel (“O Anjo Azul”, 1930). Dietrich representa Lola Lola, uma atriz do “Cabaré Anjo Azul” que seduz um professor ginasial que tem sua vida degradada pela atriz.

[22] SANTO AGOSTINHO apud BATAILLE. O erotismo, p. 38.

[23] BATAILLE. O erotismo, p. 18.

[24] Audrey Hepburn (1929-1993), premiada atriz e humanitária britânica que estrelou diversos filmes, entre eles Bonequinha de Luxo e A Princesa e o Plebeu.

[25] BATAILLE. O erotismo, p.174.

[26] BLAKE apud BATAILLE. A Literatura e o Mal, p. 80-81. Texto presente em “O Casamento do Céu e do Inferno” de William Blake.  No original francês: “Le Bien est le passif subordonné à la Raison. Le Mal est l'actif naissant de l'Énergie. Le Bien est le Ciel. Le Mal est l'Enfer...”

[27]  Em “História do olho” temos um rapaz (não nomeado), Simone e Marcela realizando fantasias sexuais.

[28] ROUDINESCO. A parte obscura de nós mesmos: uma história dos perversos, p.13.

[29] BATAILLE. O erotismo, p. 85-94.

[30] BATAILLE. O erotismo, p. 169.

[31] BATAILLE apud MORAES. O corpo impossível: a decomposição da fi gura humana: de Lautréamont a Bataille, p.185.

[32] Os irmãos Grimm, Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859), percorreram povoados da Alemanha, durante a ocupação napoleônica, e ouviram várias versões dos contos que hoje fazem parte do imaginário e cotidiano de muitos leitores. Jacob Ludwig Karl Grimm e Wilhelm Karl Grimm foram dois irmãos, ambos acadêmicos, linguistas, poetas e escritores que nasceram no então Condado de Hesse-Darmstadt, atual Alemanha.

[33] BATAILLE. O erotismo, p.128.

[34] BATAILLE, Oeuvres complètes, p.81).

[35] Hiroshima foi atacada, em 06 de agosto de 1945, pela bomba atômica de fissão denominada Little Boy, lançada pelo governo dos Estados Unidos. No dia 09 de agosto do mesmo ano, outra bomba ataca a cidade de Nagasaki.

[36] Ritual suicida japonês reservado à classe guerreira, principalmente samurai, em que ocorre o suicídio ao abrir o ventre e extrair seus órgãos internos com arma branca.

[37] MACHADO. Microfísica do poder, p. 22.

 

[38] CASTURINO. Suehiro Maruo: o sublime e o abjeto como estética da existência, p. 214-215.

Noite e Cultura: a Noite como criadora e criatura

O dia é vulgar, mas a noite é sempre a noite,

o raro teatro do imaginário.

João de Jesus Paes Loureiro

 

 

A noite é poderosa, criadora de mundos, situações, criaturas. Nossa lógica cartesiana possivelmente criou um mundo incompleto, um mundo que não conversa com o irracional, o fantasioso, o imaginário. Não percebemos que as ilusões, as simulações são necessárias. Talvez por isso, toda noite, dormimos e sonhamos para dar vazão ao imaginário, as ilusões, as fantasias, as liberações dos afetos. Para Francisco Goya (1746-1828), bastava adormecer a razão para que a criação de monstros começasse (liberdade ao subconsciente). [1]

Para entender o imaginário monstruoso e devaneante que possuímos, é necessário realizar certa viagem ao passado cultural das maiores civilizações da antiguidade para entendermos de onde veio o fascínio pela noite, as trevas, o escuro e como isso afetou nossa criação pelos seres horrendos que deram vazão ao que estava escondido em nosso inconsciente.

O historiador britânico Arnold Joseph Toynbee (1889-1975), na obra “An Historian’s Approach to Religion”, definiu o homem como um animal amphibium, ou seja, um ser que vive simultaneamente em dois mundos: dos afetos e do intelecto. Na verdade, Toynbee retoma um conceito criado pelo escritor inglês Sir Thomas Browne (1605-1682), na obra “Religio Medici”. O homem como um grande amphibium, que está disposto a viver em mundos divididos e distintos, a viver entre o visível e o invisível. [2]

A natureza humana é, na verdade, uma união de opostos que não são apenas incongruentes, mas são contrários e conflitantes: o espiritual e o físico; o divino e o animal; consciência e subconsciência; poder intelectual e fraqueza moral e física; altruísmo e egoísmo; santidade e pecaminosidade; capacidades ilimitadas e força e tempo limitado; em suma, grandeza e miséria. Mas o paradoxo não termina aqui. Os elementos conflitantes na natureza humana (...) são inseparáveis um do outro. A natureza humana é um enigma; mas a natureza não-humana é um enigma também. [3]

Usamos a cultura para produzir obras com fins estéticos e lúdicos. Porém, nossa cultura também concebe efeitos cognitivos (ajuda a pensar) e propósitos pragmáticos (motiva e orienta nossas ações individuais ou coletivas).

 [...] abarcando o mito e a religião, a linguagem e a arte, a história e a ciência, enfim, todas as obras da cultura, pelas quais o ser humano imprime sua marca espiritual na realidade, dá-lhe a sua feição, impondo a sua presença no mundo. [4]

 Dentro de cada cultura vivemos entre o visível (luz) e o invisível (escuridão, trevas). Segundo o historiador Luís da Câmara Cascudo, as pessoas do interior do Brasil acreditam que “as horas das trevas são sinistras, e o mundo se povoa de seres estranhos e poderosos. [...], o ‘pino da meia-noite’, hora horrível, é de universal assombro fantástico”. [5] A presença de um ser noturno pode anunciar uma desgraça, uma vontade divina, uma subversão. “O monstro vem para avisar e encher os homens de angústia”. [6]

A noite, em algumas obras de arte, literárias e fílmicas, é o momento sinistro em que os animais maléficos e monstros infernais se apoderam dos corpos e das almas. Noite é mistério. “A noite negra aparece assim como a própria substância do tempo. As trevas são sempre caos e ranger de dentes”. [7] E é no silencio da noite que um ruído se torna medonho gemido. “A obscuridade é amplificadora do barulho, é ressonância”. [8]

Na história cultural, a noite figura como entidade que engendra seres reguladores (do sono, da morte, das colheitas, dos sonhos, das marés, das decisões). Na cultura de cada povo (ocidental ou oriental) a noite surge como criadora de monstros, de seres que “surgem assim que a noite cai: na Mesopotâmia, no Egito, na Índia, no Japão, na China, na Grécia”. [9]

A vida egípcia acontecia ao redor do deus-sol Atum-Ra/Rá. O deus-sol era promessa de continuação da vida e triunfo sobre a morte. O Sol marcava o início e o fim de uma viagem épica. Todos os dias, viajava pelo céu do leste a oeste em um barco solar sobre as águas do Nilo celeste. À noite, voltava a correr nas águas puras do abismo e descia ao submundo, o domínio dos mortos. Era um ciclo completo. Em tal ciclo, na viagem noturna, cruzava o submundo, um lugar perigoso, pois havia uma hoste de horríveis demônios, habitantes da escuridão, que queriam destruir .

Apófis (Apópis/Apep/Apophis/Apôpis) era o adversário mais perverso e eterno de , o único ser que poderia virar e destruir o barco solar através das horas da noite, tornando impossível o sol aparecer no horizonte a cada dia. Era uma serpente gigantesca (Apophis, “cobra gigante”) que se escondia no rio Nilo, devorando suas margens e atacando a viagem noturna do barco de Apófis também é visto como um dragão. “[...], o Dragão é a figura exemplar do Monstro marinho, da Serpente primordial, símbolo das Águas cósmicas, das trevas, da Noite e da Morte – numa palavra, do amorfo e do virtual, de tudo o que ainda não tem uma forma”. [10] O monstro poderia também assumir a forma de um crocodilo gigantesco e atacar o deus do sol na terra ou na água. Apófis é a “encarnação monstruosa do senhor dos infernos e prefiguração do Satanás bíblico” é uma força hostil, o Mal intrínseco, o primeiro príncipe das trevas que representava tudo o que é mal-intencionado. [11] Como uma força primitiva da escuridão e do caos, Apófis era o oposto do deus-sol. O som de sua voz era tão terrível que até o grande deus estremecia quando a serpente rugia. Apófis representa a primeira força primitiva prosperando no caos e na escuridão; ser que costumava aparecer no crepúsculo  ̶ imagem espaço-temporal: o instante suspenso(a morte de um é anunciadora do outro). Crepúsculo é a hora da melancolia. [12] A noite era tão importante no Egito Antigo, não apenas pelo embate que era travado cotidianamente entre e Apófis, mas pela ligação que os vivos traçavam com os deuses. Durante a noite, os que dormiam e sonhavam poderiam descer ao submundo para conversar com os deuses. Um sonho era considerado uma “revelação da verdade”. Alguns egípcios com problemas (de qualquer tipo) podiam pagar para outros sonharem por eles.

A arte e o comércio do sonho no antigo Egito era prática corrente e estas práticas mágicas estavam ligadas aos cultos religiosos, antes e depois da morte. Os egípcios cultuavam o deus do sono, Serápis. Nos templos de Serápis moravam intérpretes profissionais de sonhos (os “escolados na biblioteca da magia”). Pessoas comuns iam aos templos para dormir, com o objetivo de receber dos deuses um sonho, uma resposta para determinada tormenta ou angústia (prática conhecida como “incubação”, comum no mundo antigo). [13]

Outra criação noturna é o demônio Alȗ, da antiga Mesopotâmia. Alȗ é o demônio do “terror noturno” e, também, considerado como demônio da tempestade, podendo aparecer como um cão negro. Alȗ se espalha sobre o homem, dominando-o em cima de sua cama, atacando seu peito e causando bennu (epilepsia) [14]. Esse era um dos temores sofridos pelos mesopotâmicos, particularmente os babilônicos, durante as noites.

Algumas composições monstruosas da Babilônia podem sugerir vagas e exageradas lembranças de pessoas, afetadas pelo terror, ao vislumbrarem estranhos animais selvagens no entardecer ou no meio de pântanos de juncos. Enquanto os animais eram frequentemente identificados com os seres sobrenaturais e os estrangeiros eram chamados de “diabos”, seria errôneo afirmar que o mundo espiritual refletisse apenas memórias folclóricas confusas de inimigos humanos e bestiais.

Mesmo quando um demônio tinha uma forma humana concreta, permanecia essencialmente não humano: nenhuma arma comum poderia causar lesão e as leis naturais não o controlariam. Os espíritos da doença, da tempestade e da escuridão eram criações da fantasia: simbolizavam estados de espírito, causadores do engendramento de monstros.

No Império Persa, foi no campo religioso que se deu a mais original contribuição dos persas para com as outras culturas  ̶  o Zoroastrismo. Aldous Huxley, na obra Os demônios de Loudun, mostra como o embate entre luz e escuridão justifica a dominação do outro pelos que são “iluminados”.

Hoje é evidente — em qualquer lugar que seja — que nos achamos na região da luz e que os outros estão afundados na escuridão. E estando na escuridão ou trevas, merecem ser castigados e devem ser liquidados (já que nossa divindade justifica tudo) fazendo uso dos meios mais diabólicos que tenhamos a nossa disposição. Adorando-nos idolatricamente, nós mesmos como se fôssemos Ormuz e olhando aos outros como se fossem Arimán — princípio do mal — nós, homens do século XX, não fazemos a não ser o melhor que se pode fazer para garantir o triunfo do diabolismo em nosso tempo. [15]

Zaratustra propõe uma religião monoteísta e dualista, como resposta às condições sociais de seu tempo; época de transição, comunidade agrícola e pastoril sendo ameaçada por tribos predatórias, de vida nômade com “culto orgiástico das confrarias iniciáticas de homens guerreiros”. [16]

Zaratustra proclama um credo acentuadamente ético, com a luta entre as forças do bem e do mal como forças que permeam o universo. A existência do mal deveria ser explicada e Zaratustra a fez, em termos do livre-arbítrio.

No início dos tempos dois espíritos foram criados por Ahura-Mazdȃ: o espírito bom (mais tarde chamado de Ormuzd) e o espírito mal e destrutivo, Angra-Mainyu (mais tarde chamado Arimã). O último, embora sua existência se devesse a Deus, tornou-se mau por sua própria e livre escolha. [17]

Ahura-Mazdȃ é o “Senhor Supremo”, o “criador de todos os contrastes”, a Verdade (Asha). Ahura Mazdȃ é um nome, com duas partes, que pode ser traduzido como “Sábio Senhor”. O epíteto “Ahura” pode significar “aquele que gera”. A palavra “Mazda” pode ser traduzida como “aquele que é sábio” ou “aquele que mantém o controle mental”. Para os zoroastristas, foi pela atividade mental (o “pensamento”) de Ahura-Mazdȃ que o cosmos foi ordenado e se manteve.

Houve uma tendência a identificar Ahura-Mazdȃ com o espírito bom, Ormuz. Mircea Eliade fala do “Senhor Supremo” que cria os gêmeos (bem e mal). [18] G.J. Whitrow afirma que tal tendência foi desconcertante. “De fato, Zaratustra falara dos espíritos bom e mau como gêmeos, implicando assim que tinham uma origem comum”. [19] Para o espanhol Francisco Lacueva (1911-2005), doutor em teologia dogmática evangélica e autor de o “Dicionário Teológico Ilustrado”, Ahura-Mazdȃ no idioma pahlavi/pahlevi/palávi é “Ormuz”, senhor do bem e da ordem:

[...] hay dos princípios distintos: Ahura-Mazda (Ormuz, em pahlavi) = El Señor-Luz, que es todo bondade y perfección, al cual invoca diciendo: “¡Oh, Creador, Dios santo!”, y Angra Mainyu (Ahrimãn, em pahlavi) = Maligno. Original, El diablo que trabalha para destruir la obra de Dios. [20]

Tanto Ormuz quanto Arimã deveriam escolher, por própria e livre escolha, entre a verdade e a mentira (druj), em seus pensamentos, palavras e atos (bons ou maus). Ormuz torna-se ashavan (ser da verdade). Já Arimã escolheu druj, tornando-se o “Pai da Mentira”. [21]

Como Ormuz é toda a luz, pureza e excelência, habitando a luz primordial. Assim, Arimã é toda a escuridão, impureza, e maldade, habitando a escuridão primordial. Ormuz e Arimãn parecem contemporâneos. A primeira produção de Ormuz foi o Olinover (ou Honover), A Palavra, através do qual ele criou às coisas materiais, o céu, as terras e tudo o que eles contêm. [22]

Temos, então, com a figura de Arimã, representação das trevas/escuridão, forte ligação com a mentira, a sujeira, a crueldade, a destruição, a falsidade, a malícia. As criaturas de Arimã são demônios que atormentam a humanidade. São demônios da ruína, dor, envelhecimento (zvaran), são os produtores de bílis que sobrevivem da tristeza (nivagih), são a prole da melancolia,  portadores do mau cheiro, decadência e vileza. São muito numerosos e uma parte de todos eles está misturada aos corpos humanos.

 Na mitologia fenícia temos o Princípio primordial, Omichle, o elemento da escuridão que se funde ao Ser primordial, Pothos, gerando a força espiritual (Aer); os elementos espirituais e físicos do cosmo. Pothos é o desejo, a manifestação viva da Aura. [23] Na mitologia grega, Pothos será um deus alado conhecido como um dos “erotes” (plural de eros, “desejo”) e fará parte da comitiva de Afrodite. Em outras versões do mito, Pothos é filho ou um aspecto independete de Eros. [24]

Com os gregos passamos a “devanear” noturnamente, segundo proposta de Gaston Bachelard em sua obra “A poética do devaneio”.

O sono abre em nós um albergue de fantasmas. Temos necessidade da aurora para varrer as sombras; devemos, a golpes de psicanálise, desalojar os visitantes retardatários e até mesmo desentocar, do fundo de abismos, monstros de uma outra Era, o dragão e a serpente fabulosa, todas essas concreções animais do masculino e do feminino, inassimiladas, inassimiláveis. [25]

Na criação teogônica [26], “há nítido predomínio do mundo ctônio”, um começo das trevas para a luz (Olimpo). “No princípio era o Caos (vazio primordial, vale profundo, espaço incomensurável)”; depois veio Gaia (Terra), Tártaro (habitação profunda) e Eros (Amor). De Gaia nasceram o Urano (Céu) e Pontos (Mar). Caos deu origem a Érebo/Érebos (escuridão profunda) e Nix/Nyx (Noite). Nix com Érebo gerou Éter (personifica o brilho no ar superior) e Hemera (Dia).

Para Hesíodo, parece comum que esses seres radiantes tenham nascido em uma família das trevas, pois Noite e Dia (escuridão e brilho) são opostos inter-relacionados que se sucedem. [27] Na mitologia grega o cosmo parece se desenvolver ciclicamente, de baixo para cima, passando das trevas à luz. [28] A claridade entra no mundo marcando um avanço positivo no desenvolvimento do universo. Primeiro trevas, depois fez-se luz até o Olimpo.

Observamos que o caos não é simplesmente “caótico”, não apresentando conotações de desordem ou confusão. O Caos é a representação de uma realidade sombria que será percebido como a fonte de muito do que é escuro e negativo no mundo. O Caos deu origem a Érebos (escuridão profunda, trevas subterrâneas inferiores) e Nix (Noite, trevas superiores). Nix é mãe do principal ramo da família do Caos, gerando uma sombria ninhada de monstros a partir de si mesma.

“[...] entrar na noite é voltar ao indeterminado, onde se misturam pesadelos e monstros, as ideias negras. Ela [noite] é a imagem do inconsciente e, no sono da noite, o inconsciente se libera”. [29]

Os filhos e netos de Nix não serão apenas figuras míticas de qualquer matéria, mas personificações de forças obscuras, destrutivas e negativas dos gregos. “Destruir monstros é destruir as coisas sombrias”. [30]

Nix é responsável por trazer libertação das preocupações do dia, bem como Hypnos, seu filho. “Percorre o céu, coberta por um manto sombrio, sobre um carro puxado por  quatro cavalos negros”. [31] A Nix era creditado poderes proféticos, tendo alguma ligação com oráculos.

Com seu irmão Érebos, Nix teve Éter (luz celestial) e Hemera (dia). Mas foi por conta própria, sem recorrer a um parceiro (partenogênese), que Nix concebeu as forças escuras e negativas e as personificações do mal: Moro (Destino); Tânatos [32] (a Morte personificada), a pior de todas as forças negativas, pois anula a nossa própria existência; Hipno (Sono) é irmão gêmeo da Morte; Momo (Sacarsmo), a personificação da busca de falhas, que aparece em fábulas e similares como uma espécie de bobo da corte; Hespérides (Ninfas do Poente, filhas da Noite [33]); Queres (espíritos de morte e destruição),monstros que aparecem em cenas de batalhas, representadas como gênios alados, vestidas de preto, com longas unhas aduncas para despedaçarem os cadáveres, bebem o sangue dos mortos e feridos; Moîras [34] (personificam o destino individual), é a projeção de uma “lei” que os deuses podem descumprir (deuses não podem intervir em assuntos humanos); Nêmesis (personificação da justa indignação, punidora do excesso); Guéras (a Velhice) e Éris (Discórdia).

Tanto gregos quando romanos prestavam culto à Noite, pois era Nix que trazia a melhor sentença aos pacientes. Os gregos a chamavam, também, de Eufronia/Eufronê (“a Benfazeja”, “a boa nova”) e Eubulia/Embulia (“Mãe do Bom Conselho”). Noite como lenitivo.

Na Idade Média, a noite era ligada as mazelas da alma. O diabo e as feiticeiras eram ligados à noite. Assim como os judeus e os leprosos, as mulheres, em estado de transe (bruxas) e participantes de conciliábulos (reuniões às noites de sábado), foram demonizadas. Brujas (espanhol), strega (italiano), sorcière (francês), hexe (alemão), witch (inglês) eram mulheres que possuíam, segundo os inquisidores medievais, profundas ligações com os elementos noturnos. Nos documentos latinos, a partir do século XIII, os vocábulos incantatrix/maléfica/lâmia denominavam as mulheres que saiam para uma viagem noturna com o intuito de encontrar outras mulheres que compartilhavam das mesmas crenças. Mulheres que iam para um local afastado, geralmente florestas, onde consagravam um culto a um demônio ou ao diabo durante horas escuras.

Nas noites de sábado, o diabo era invocado para batizar meninos e sapos. “Os meninos eram apresentados pela bruxa (a madrinha) vestidos de veludo granado. Parece que o diabo e as mulheres têm paixão pelo veludo”. O galo era odiado, pois dispensava os conciliábulos, mas a galinha preta era comum em galinheiros de mulheres consideradas bruxas. Para evitar que as bruxas entrassem nas casas à noite e “sugassem o tutano” de crianças, bastava colocar uma vassoura atrás de uma porta (“melhor sentinela”). [35] As bruxas, seres míticos, tinham talento especial para metamorfoses e, assim, entrar em qualquer ambiente causando destruição.

Na obra “Deus, um delírio”, o zoólogo, etólogo e escritor Richard Dawkins relata a pesquisa de Pascal Boyer, antropólogo francês, sobre como as crenças religiosas soam estranhas quando não são familiares e cita a crença do povo fang (Camarões, África) em bruxas. Para o povo fang, “as bruxas têm um órgão interno extra, parecido com um animal, que sai voando à noite e arruína as plantações das pessoas ou envenena seu sangue”. [36]

Em uma direção menos sombria e mais mística temos, no século XVI, o poeta e cristão espanhol São João da Cruz que fez distinção entre a noite dos sentidos (parte exterior do homem: cinco sentidos, vida emocional, as paixões, sensações que dão prazer, a imaginação e a própria inteligência dependente dos sentidos) e a noite do espírito (parte interior: morada da vontade, do amor, da inteligência que não depende dos sentidos, do sentimento de paz). Tal distinção é chamada de “Noite escura da alma”, termo usado pelo cristianismo para referir-se a crise espiritual em jornadas rumo à comunhão com Deus. A noite escura da alma é um momento de descrença na fé e nas certezas que guiam aquele que crê. É na noite do espírito (lugar livre do pecado original) que, segundo os místicos, o diabo não tem acesso. O homem que não adentra na noite escura da alma por temê-la, pode entrar em desarmonia com seus sentidos. Para passar do exterior (sentidos) para o interior (espírito) devemos atravessar a noite. Para Chevalier e Gheerbrant, a noite é rica em todas as virtualidades da existência e entrar na noite é voltar ao indeterminado. Noite como imagem do inconsciente. “Como todo símbolo, a noite apresenta um duplo aspecto, o das trevas onde fermenta o vir a ser, o da preparação do dia, de onde brotará a luz da vida. [...], como obscuridade, a noite convém como à purificação do intelecto”. [37]

Noite é caminho, é jornada para libertação. Porém, fraquejamos e os monstros (crias da noite) nos encontram.

Agentes do bem e do mal, que compartilham características-chave: todas as espécies de demônios são espíritos sobrenaturais ou de posição semidivina, com energia ilimitada, natureza excessivamente apaixonada, talentos para mudar de forma e preferência pela ocultação, por ‘morada no íntimo’ da escuridão. (...) Eles deslizam para dentro da sua mente e se tornam seu ‘eu’. Outros demônios são personificações de nossas próprias paixões, impulsos e desejos, escondendo-se no território escuro e oculto de nosso inconsciente. A ampla gama de papéis e funções dos demônios é tão fascinante quanto suas personalidades intensas. (...) Em todas as culturas, a própria presença de um demônio ─ ou sua reputação de se esconder em um local determinado ─ alerta o viajante sobre um tabu que, em si mesmo, indica a presença de poderes divinos. (...) o demônio é considerado um espírito incorpóreo que pode se manifestar de várias formas, embora, em geral, seja retratado como um híbrido grotesco: parte Homo sapiens, parte besta selvagem, ele sempre anda ereto. (...) os demônios estão na classe dos espíritos subversivos sobrenaturais, que compartilham muitos traços, hábitos e tradições. [38]

Os demônios são descritos como imprevisíveis, mágicos e intrigantes, seres que viviam por perto, adversários a serem combatidos, mas, também, são fonte de segredos sobre-humanos. Diabos, demônios, são seres que habitam as trevas, a escuridão, o noturno, filhos da noite.

 Lembrando o romântico alemão Novalis, em “Hinos à noite”, é no seio escuro da “santa, inefável, misteriosa noite, “nas moradas da Noite” que não teremos mais inquietação, pois ultrapassaremos o Tempo”.[39] As terras onde habitam a luz é mundo de angústia. É no “fervor das noites” que temos sonos sagrados. E tendo sono, teremos o latejar das forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação. [40]

Na obra “Fenomenologia da Percepção”, Merleau-Ponty nos fala do quão envolvente pode ser a obscuridade:

Ela (noite) não é um objeto diante de mim, ela me envolve, penetra por todos os meus sentidos, sufoca minhas recordações, quase apaga minha identidade pessoal. Não estou mais entrincheirado em meu posto perceptivo para dali ver desfilarem, à distância, os perfis dos objetos. A noite é sem perfis, toca-me ela mesma,[...]. Até mesmo gritos ou uma luz distante só a povoam vagamente, é inteira que ela se anima, ela é uma profundidade pura sem planos, sem superfícies, sem distância dela a mim. [...] a noite ainda não é a nossa experiência mais notável do irreal. [41]

Dos acontecimentos culturais para as telas, a noite e suas criaturas são como frutos dos esforços humanos para encontrar uma explicação lógica para o problema do medo, do mal, da angústia, da solidão. A soturnidade está incrustada em nós. Não acreditar na existência de monstros que surgem através da noite equivale a fazê-los existir. “O homem representa-se demônios, deuses e santos à sua imagem [...]. Ficção e realidade entremeiam-se ao seu serviço, e a ficção obscurece a realidade”. [42]

Buscamos fugir de tudo que nos lembre de nossa insignificância, de nossa mortalidade. Criamos seres que podemos controlar, manipular, repudiar e também amar. A noite é ambiente desconhecido que alimenta nosso imaginário, nossa cultura. É durante o momento noturno que nossos medos ganham forma. Noite é vida em fermentação. É sempre à noite que os seres que imaginamos criam forma. Formas imensas das quais não conseguimos desviar o olhar. Vários são os relatos de seres que nascem, crescem e vivem da/na noite. Pensar o noturno é se tornar consciente da escuridão, é deixar ela [noite] e suas crias nos envolverem nas artes, na literatura, na cultura.

A cultura noturna é tão digna de investigação quanto às ações visíveis da humanidade. Do nosso medo noturno e ancestral de animais desconhecidos ao nosso medo contemporâneo de alienígenasque cruzam galáxias escuras, correr riscos e enfrentar os medosque nos rondam todas as noites tornou-se um tipo de processo adaptativo que tem como meta exorcizar monstros/demônios/fantasmas.



[1] Gravura El sueño de la razón produce monstruos (1799), da série Los Caprichos, do pintor espanhol Francisco de Goya. É a estampa de número 43 de um total de 80, publicadas a partir de 1799.

[2] BROWNE. Religio Medici, p. 66.

[3] TOYNBEE. An historian's approach to religion: Based on Gifford lectures delivered in the University of Edinburgh in the years 1952 and 1953, p. 289. Tradução minha.

[4] BARRETO. Imaginação Simbólica, p.13.

[5] CASCUDO. Dicionário do folclore brasileiro, p. 527.

[6] GIL. Monstros, p. 80.

[7] DURAND. As estruturas antropológicas do imaginário, p. 92.

[8] DURAND, loc. cit..

[9] MANGUEL. Contos de horror do século XIX, p. 09.

[10] ELIADE. O sagrado e o profano. A essência das religiões, p. 29.

[11] CHEVALIER; GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos, p. 818.

[12] CHEVALIER; GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos, p. 300.

[13] BELANGER. A enciclopédia dos pesadelos, p. 151-153.

[14] Segundo textos babilônicos, epilepsia (bennu, an.ta.šub.ba) e lepra (epqu) eram doenças causadas por demônios. Segundo antigos textos babilônicos, a ideia de epilepsia causando tremores (šuruppȗ) e calafrios (hurbašu) a vítima era uma punição divina.  REINER; PINGREE. Babylonian Planetary Omens, p. 06-21.

[15] HUXLEY. Os demônios de Loudun, p. 178.

[16] ELIADE. Dicionário das Religiões, p. 278.

[17] WHITROW. O tempo na história, p. 48.

[18] ELIADE. Dicionário das Religiões, p. 279.

[19] WHITROW. O tempo na história, p. 49.

[20] LACUEVA. Diccionario Teológico Ilustrado, p. 617.

[21] Ver BIERLEIN. Mitos Paralelos.; ELIADE. Dicionário das Religiões.; ROSE. Zoroastrianism.

[22] TRANSACTIONS of the Literary society of Bombay. Tradução minha.

[23] JORDAN. Dictionary of Gods & Godesses, p. 250.

[24] CONNER; SPARKS; SPARKS. Encyclopedia of Queer Myth Symbol and Spirit,  p. 270.

[25] BACHELARD. A poética do devaneio, p. 60.

[26] “Teogonia”, obra de Hesíodo.  Estudo e tradução do professor em língua e literatura grega, Doutor Jaa Torrano.

[27] HESÍODO. Teogonia, p. 36

[28] BRANDÃO. Mitologia Grega. v.1, p. 190

[29] CHEVALIER; GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos, p. 640.

[30] CAMPBELL. O poder do mito, p. 162.

[31] BRANDÃO. Mitologia Grega, v.1, p. 191.

[32] De acordo com Junito Brandão (Mitologia Grega, v.1, p. 225-227), o “morrer”, no caso, significa ocultar-se, ser como sombra, uma vez que na Grécia o morto tornava-se eídolon (imagem), um como que retrato em sombras, um “corpo insubstancial”. O simbolismo geral da Morte aparece ainda no décimo terceiro arcano maior do Tarô, arcano que não tem nome, como se o treze já lhe conferisse identidade definitiva ou se temesse nomeá-lo.

[33] As ninfas não são monstros, mas auxiliam alguns monstros.

[34] Três irmãs que cuidavam do destino de deuses e homens: Cloto (“fiar”, segura o fuso e tece o fio da vida), Láquesis (“sortear”, enrolar o fio da vida e sorteia o nome de quem morrerá) e Átropos (“não volta atrás”, corta o fio da vida).

[35] PALMA. Anais da Inquisição de Lima, p. 94.

[36] DAWKINS. Deus, um delírio, p. 235.

[37] CHEVALIER; GHEERBRANT. Dicionário de Símbolos, p. 640.

[38] MACK. Um Guia para demônios, fadas, anjos caídos e outros espíritos subversivos, p. 13-24.

[39] NOVALIS apud CHEVALIER; GHEERBRANT, Dicionário de Símbolos, p. 640.

[40] BOSI. História concisa da literatura brasileira, p. 93.

[41] MERLEAU-PONTY. Fenomenologia da percepção, p. 380-381.

[42] SCHOPENHAUER. As dores do mundo, p. 50.


REFERÊNCIAS

 

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

BARRETO, Marco Heleno. Imaginação Simbólica. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

BELANGER, Jeff.  A enciclopédia dos pesadelos: a interpretação dos seus sonhos mais sombrios. Tradução Frank de Oliveira. Rio de Janeiro: Prestígio, 2007.

BIERLEIN, J. F.. Mitos Paralelos. Tradução de Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1987. 3 v.

BROWNE, Sir Thomas. Religio Medici. New York: John B. Alden (Publisher), 1889. Disponível em: < http://books.google.com.br/>. Acesso em 09 abr. 2014.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte; Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

CONNER, Randy P.; SPARKS, David H.; SPARKS, Mariya. Cassel’s Encyclopedia of Queer Myth Symbol and Spirit. UK: Cassel, 1997.

DAWKINS, Richard. Deus, um delírio. Tradução Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ELIADE, M. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

___________. Dicionário das Religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GIL, José. Monstros. Tradução José Luís Luna. Lisboa: Relógio D’ Água, 2006.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.

HUXLEY, Aldous L. Os demônios de Loudun. Rio de Janeiro: Globo, 1982.

JORDAN, Michael. Dictionary of Gods & Godesses. New York: Facts on File, 2004.

LACUEVA, Francisco. Diccionario Teológico Ilustrado. Barcelona: Editora Clie, 2001.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Café central: o tempo submerso nos espelhos. São Paulo: Escrituras Editoras, 2011.

MACK, Carol K. Um Guia para demônios, fadas, anjos caídos e outros espíritos subversivos. Tradução Rosalia Munhoz. São Paulo: Madras, 2010.

MANGUEL, Alberto. Contos de horror do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima. Tradução Claudio Giordano. São Paulo: Giordano-EDUSP, 1992.

REINER, Erica; PINGREE, David. Babylonian Planetary Omens: Part three. Groningen: Styx Publications, 1998.

ROSE, Jenny. Zoroastrianism: a guide for the perplexed. New York: Continuum, 2011.

SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1951

TOYNBEE, Arnold Joseph. An historian's approach to religion: Based on Gifford lectures delivered in the University of Edinburgh in the years 1952 and 1953. London: Oxford University Press, 1956.

TRANSACTIONS of the Literary Society of Bombay. London: John Murray, 1820.

WHITROW, G.J. O tempo na história: concepções de tempo da pré-história aos nossos dias. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

POESIA, ESPAÇO E APRENDIZAGEM

 

Por Gustavo de Castro[1]

Universidade de Brasília-UnB

 

Verônica Brandão[2]

Universidade de Brasília-UnB

 

 

Resumo

Este artigo busca uma visão ampliada de educação, para além das fronteiras e temporalidades disciplinares e dos ambitos das instituições formativas. Educação estética, narrativa e experiência urbana são interpretadas aqui como traços de um possível aprendizado a partir da cidade e a partir de suas poéticas (visuais, sonoras e textuais). Focalizando sua leitura em alguns agentes urbanos (flâneurs, poetas, cronistas e vagabundos) que atuam poeticamente no trânsito vital entre experiência, linguagem, educação e arte, nosso problema central é: O que pode nos ensinar sobre poética os espaços urbanos?

Palavras-chave: Poesia, espaço, afeto, aprendizagem, cidade.

 

Introdução

Se é verdade o que registra o famoso verso de F. Holderlin (1991): “Poeticamente habita o homem a terra”, podemos dizer que não há habitar dissociado de saber e de experiência imaginária, seja ela lírica ou monstruosa. Entendemos que as cidades nunca deixaram de ser o espaço dos mitos e das fantasmagorias da modernidade, repleto de imagens de sonhos e desejos. Nas cidades, a multidão é como um véu através do qual o observador se transforma em uma sombra, uma fantasmagoria. O observador como parte da paisagem, mas não mais como um badaud (basbaque), ou seja, aquele que faz a leitura confortável da cidade, um ser impessoal, parvo — o público.

 Cidades como locais de polimorfia (novo e antigo coexistindo). Hoje sabemos que não só as cidades comportam um volume inesperado de narrativas como seus diversos rincões, praças, vias, esquinas e bairros servem para emoldurar um volume inacreditável de imaginários tridimensionais (pulsional, social e sacral), a depender de quem conta e da peripécia da história contada.

Poucas vezes a relação espaço – poesia – aprendizagem foi tão bem articulada como na tese de doutoramento de Eloíza Pires Gurgel (2012) para quem o fluxo, o saber, as construções e as interações das pessoas nos espaços urbanos, é percebido a partir do olhar do poeta. Sob sua análise estão duas cidades em espacial: Paris e Rio de Janeiro, ambas, cidades-mosaicos, carregadas de relatos, arabescos e detalhes que incitam o olhar curioso a enfrentar e investigar os limiares dos espaços vistos, sentidos e vividos.

Gurgel nos mostra que, nestas cidades (embora isto possa ser percebido em qualquer outra) os relatos dos lugares e as experiências das pessoas podem ser revistos a luz da ultrapassagem de seu cotidiano, isto é, na contemplação poética, claro, a depender da capacidade de observação e curiosidade despertada pelo fruidor/narrador/sentipensador experiente ou ingênuo. Este narrador sabe, sem muita firula, que a diferença entre espaço imaginal e real, na cidade, sofre a variação mesma dos limiares.

Ultrapassar o cotidiano, seguindo um suposto destino ou flutuando sem rumo, buscando passagens ainda não reconhecíveis para que se possa experenciar o limiar. Pontes são construídas (ligam passado/presente), passagens são criadas, labirintos citadinos são engendrados e rompidos a cada caminhar, para (novamente) serem conquistados. O fruidor está em constante  atitude de espera, mas de uma espera em ação. Observar o passado para anular fronteiras no presente, estendendo os limites. Novas relações móveis são criadas entre o observador e o espaço. O observador errante, então, cria seu próprio tempo e lugar, longe do “fetiche da mercadoria”, cria limiares.

 

Limiar e poesia

O limiar é uma zona, espaço de mudança, passagem e flutuação. É justamente esse sentido de fronteira, típico das passagens parisienses, dos umbrais das portas e das janelas que demarcam tanto o interior quanto o exterior, o presente e o passado, o tempo e o espaço, que ela explora do ponto de vista educacional. Em alemão usa-se o termo “Schwelle” para o espaço de transição em que ocorre a narrativa que, por sua vez, se integra ao corpo ambíguo da linguagem, possibilitando não só a emergência de novos discursos, como também propicia oportunidade de se equilibrar no “limiar” da significação. Se o conceito de limiar em Benjamin permite um pensamento por imagem este será o de quiasma [3].

“Limiar (Schwelle) deve ser rigorosamente diferenciado de fronteira (Grenze). O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo, estão contidos na palavra schwellen [linchar, intumescer], e a etimologia não deve negligenciar estes significados”. Benjamin (2006, p. 535). O conceito de fronteira (Grenze) remete à contenção de algo, evitando seu transbordamento; define os limites, os contornos de um território, bem como as limitações do seu domínio. O limiar é soleira, umbral, designa processos intelectuais e espirituais, mas também se inscreve como registro de movimento, de ultrapassagem, de passagens, de transições (Ubergang). No campo da arquitetura é atribuído ao limiar a função de transição – permite ao andarilho ou aos citadinos que possam transitar de um lugar para outro sem maiores dificuldades. Ele não apenas separa dois territórios (como a fronteira), mas possibilita o transito da duração variável entre dois territórios.

O limiar é da ordem do tempo e do espaço. Benjamin aproxima a palavra Schwelle (na qual há o registro da palavra welle – onda) do verbo schwellen, que significa inchar, dilatar, inflar, ressaltando que o limiar é uma zona, às vezes indefinida – expansiva – diferente da fronteira que estabelece contração, limite e domínio. O limiar remete às viagens e aos desejos, aos fluxos e contra-fluxos; significa não somente separação, mas também aponta para um lugar e um tempo intermediários: habita zonas que a maioria das filosofias prefere entender como se fossem oposições demarcadas e claras (masculino / feminino; público / privado; sagrado / profano, etc.), o que não é o caso. A poesia é aquele que sabe dialetizar tais dicotomias. O tempo do limiar relaciona-se aos processos educativos, significa expor-se ao desconhecido; enfrentar as vicissitudes da história. Em Benjamin esse tempo indeterminado também está ligado à dialética do sonho e do despertar, na qual os aspectos oníricos encontram-se no âmago mesmo da realidade, tida como “vigília”.

Benjamin busca, semelhante a um arqueólogo, o inconsciente da modernidade do século XIX, investigando suas construções arquetípicas: passagens ou arcadas, galerias construídas de vidro e ferro, pelas quais a multidão se desloca. Ler uma cidade implica em ler a sua psyche, acessar um território que se encontra entre o sonho e a vigília do cotidiano urbano. No limiar, Benjamin reconhece as transformações sociais e culturais do capitalismo marcadas pelas mudanças do modo de produção nas cidades. Com a educação não é diferente. A hipervalorização às disciplinas faz com que a educação de nosso tempo esteja mais próxima da noção de fronteira do que àquela de limiar. Os pontos de transição interdisciplinar, no processo formativo e no campo do conhecimento, salvo raras exceções, são desvalorizados. Estas transições são muitas vezes encurtadas ou aceleradas, pois não se pode “perder tempo” ou demorar-se “inutilmente” no limiar e na transição.

Assim é que, de acordo com Benjamin, nos tornamos pobres em experiências limiares.  Há um esvaziamento do tempo de reflexão e maturação, encurtando assim, o percurso do processo de aprendizagem para que se possa planejar trajetórias e regular itinerários claramente definidos e sem ambiguidades, que não incluam a possibilidade de erro, ou de territórios limiares indeterminados e expandidos. A dimensão educativa é reduzida à questão técnica, a história pessoal e a história da cidade não dialogam: são limiares que não se cruzam.

O que Gurgel chama de “aprendizado da cidade” é antes um experimentun linguae. Ela entende, a partir de Benjamin, que o contexto urbano é permeado de poéticas visuais, sonoras, textuais, que se apresentam como um saber coletivo; uma estrada-texto aberta a possíveis leituras/escrituras que são compartilhadas como experiências, vivências e formas de conhecimento. Em uma escrita inspirada e brilhante, ela consegue perceber os muitos limiares presentes, por exemplo, na escultura de Carlos Drummond de Andrade, no posto 6, em Copacabana, Rio de Janeiro. A escultura do poeta foi alçada a um dos cartões postais da cidade. A interação dos passantes com a imagem do poeta ampliou e resignificou um pequeno espaço da praia. A concentração de populares para bater foto, realizar saraus de poesia e “conversar” com o poeta, tornou o ponto um espaço de abertura ao poético e, no mínimo, à evocação deste. Drummond, “O pensador da praia”, como alguns gostam de chamar a escultura, em vez de ter sua imagem representada como flâneur, caminhando pelas ruas do Rio, ao contrário, aparece, sentado, de pernas cruzadas, levemente voltado à esquerda, observando os transeuntes, sentado em uma ponta do banco, solícito e simpático, quase que intencionalmente convidando o passante a sentar-se na outra ponta.

Sabemos que os poetas desenvolvem um saber alegórico sobre a cidade a partir de suas experiências. O desafio do poeta é o de estar na metrópole moderna e dizê-la, a contrapelo, em sua poesia, tornando visíveis as suas imagens, atualizando-as “nas dobras da linguagem transparente”. Seguindo os passos de Drummond, Gurgel encontrou na crônica “Andar a pé” o ritmo de um olhar particular sobre a cidade do “cronista-flâneur”, que “exerce assim a felicidade em movimento”. Drummond contrapõe ao mero “andar na rua” do flâneur baudelairiano, ao “andar em mim”, como experiência de outro deslocamento, digamos, por invenção, improviso, pois cheio de idas e vindas, variações. O saber sobre a cidade se desvela a partir de um saber sobre si mesmo. O “andar em mim” reúne caminho e sujeito, atribuindo ao fato do caminhar ser uma construção em si. O poeta observa o movimento das ruas e a complexidade das relações no mundo moderno e, nas tensões problematizadas em sua poesia, registra o isolamento, a solidão, o mal-estar, a desilusão, o pessimismo e, junto a isso, a esperança.

O “flâneur” é como um “ser vagabundo”, um “Zé-ninguém”. Suas características principais são: movência, anonimato; ser alguém-ninguém misturado em meio aos deslocamentos. Não se trata de um sonhador idílico, mas de um estado espírito diante do Aberto. Perambular com inteligência, ideia de João do Rio, significa caminhar com reflexão.  Segundo João do Rio “é preciso ter o espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com o perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele a que chamamos de flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar” (RIO, 2005). O flanar é um caminho que tateia. A poesia assim como a cidade passa a ser, para o poeta, um “medium-de-reflexão”.

Sabemos pelos poetas e pensadores que os limiares das cidades possuem também ensinamentos e aprendizagens. Alguns poetas, entre eles Baudelaire, fazem girar em torno dela sua noção de “flâneur” para quem “o observador é um príncipe que frui por toda a parte do fato de estar incógnito”. O flâneur é um investigador, um “detetive”, um “caçador” nas alegorias de Walter Benjamim, mergulhado no ambiente do caos urbano. O flâneur é o vagabundo “a fazer botânica no asfalto”. Para Baudelaire as grandes cidades do século XIX não podiam ser descritas senão pelos sentimentos de estupor, espanto e fascínio. Nele, a figura do artista é mais do que um iluminado, acima da condição humana, mas ao contrário, assumirá por completo as características do homem comum, livre para viver os prazeres da cidade.

Outro poeta-pensador, que teve o olhar aguçado para a aprendizagem a partir das cidades foi Ítalo Calvino. Em seu livro Cidades Invisíveis[4], publicado em 1972, a noção de espaço surge como espécie de atlas do sonho geométrico humano. O livro é um relato metanarrativo da relação entre os afetos das imagens e as formas arquitetônicas. As cidades servem para uma interpretação do próprio imaginário e dos afetos do poeta. Eles são entendidos mediante a não-linearidade ou a descontinuidade espacial. Atrás da noção de “invisível” encontramos no fundo níveis de visibilidade, enquanto níveis de interações sensíveis com o que nos rodeia. As cidades são para os poetas extensões do afeto e do imaginário, releituras e reflexões; encantos e desencantos; utopias e distopias.

As cidades parecem nos questionar: habitamos espaços geométricos ou espaços de monstruosidade poética? Habitamos a realidade matemática dos cumprimentos, alturas e larguras ou a emoção e a incerteza dos espaços intermitentes? Algumas cidades parecem evocar a relação distância/proximidade, abstrato/tangível, beleza/monstruosidade como parâmetro estético.  Os espaços (as cidades) nunca são o que pensávamos ser.

Podemos jogar com a noção de espaço a título de reflexão, divertimento ou poesia, mas não é nossa intenção aqui o jogo, e sim a reflexão da experiência do espaço intermitente do poeta pela cidade. Calvino nos revela mediante o seu livro que os espaços dialogam com os afetos, sobretudo se soubermos extrair deles o que evocam de imagens e sensações. Aprendemos assim o que ensina a última das cidades do livro: as formas de Berenice são sucessões no tempo e estão todas presentes, neste instante, umas dentro das outras. Apertadas espremidas inseparáveis[5]. Os espaços, assim, não se separam no tempo, ao contrário, evocam outros espaços e outros tempos.

Esta aprendizagem nos leva a uma questão que nos parece importante aqui acerca do afeto: por que não entender o afeto também como espaço de flutuação/intermitência do corpo e da alma? E quando dizemos espaço de flutuação nos referimos a dimensão não-linear das sensações, emoções e percepções que nos fazem entender de modo frágil e complexo qualquer um dos nomes para os afetos humanos. Os afetos equilibram-se na não-linearidade entre o que é frágil e transitante e entre o que é complexo e duradouro. O que sustenta a nosso ver essa fragilidade e complexidade é a sua capacidade de ser flexível e durável; passageiro e fixo ao mesmo tempo. Aceitar os espaços e estados de intermitência emocional (e imaginária) nos parece razoável para o poeta.

Conclusão

A educação estética também é um processo de errância. A poesia, por sua vez, chama a atenção para a necessidade de educação global do ser humano mediante a arte e a sensibilidade.  “Intervir na formação do espírito e, por conseguinte, da realidade como um todo” é a definição de Tzevan Todorov, no Literatura em perigo (2009) para a poesia, que nos faz localizar, nos dias de hoje, conforme destaca Eliana Yunes, uma “função” para o poeta. A poesia é “alento de renovação da vida política e social por olhares desautomatizados, desviados da alienação do mesmo e com poder de suscitar o desejo efetivamente inconformista com a medida da ordem convencionada e estabelecida”. O poeta constrói mundos paralelos, cria ele mesmo canais de conexão ou faixas vibratórias com aquilo que o ultrapassar e atravessa, realiza conversações com o inútil, o efêmero, a metáfora, o sublime, quase sempre dando a todos a mesma importância estética e filosófica. Ele também percebe a perplexidade frente à potência da palavra insubordinada à lógica. O poeta não almeja a rebeldia gratuita, mas compreende o “inominado que obriga o ser a uma dilatação”.

As imagens estão por todos os lados e nos consomem. “(...), saber ver é saber narrar. A cidade apresenta-se como um palimpsesto, espaço de produção de narrativas e de imagens” (GURGEL, 2012). É na multidão apressada que devemos reencontrar o laço que une o sujeito a leitura de mundo. A cidade como meio (medium), um cenário em constante mutação em busca de significações, carecendo de constantes poetizações. Vagar em limiar, fluir para fruir, perpassando pelo imaginário-simbólico-imaterial de forma lúdica, unindo poesia, espaço e aprendizagem em um  movimento de reflexão.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BENJAMIN, Walter. (2006). Passagens. UFMG/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Belo Horizonte e São Paulo

CALVINO, Ítalo. (1972). Cidades Invisíveis. Cia das Letras. São Paulo.

GURGEL, Eloíza Pires. (2012). Educação, Poesia e o Aprendizado da cidade. Tese. Faculdade de Educação/UnB. Brasília.

HOLDERLIN, F. (1991). Poemas. Ed. Relógio D’água. Lisboa.

RIO, João. (2005). João do Rio/por Renato Cordeiro Gomes. Agir. Rio de Janeiro.

TODOROV, Tzvetan. (2009). A literatura em perigo. Tradução Caio Meira. DIFEL. Rio de janeiro.

 

 

 



[1] Gustavo de Castro é poeta, editor e professor na Faculdade de Comunicação/UnB. Doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP, mestre em Educação pela UFRN, graduado em Comunicação Social - Jornalismo pela UFRN. Tem catorze livros publicados. Contato: gustavodecastro@unb.br

[2] Verônica Guimarães Brandão é doutoranda no PPGCOM / FAC na Universidade de Brasília (UnB), na linha de Imagem e Som. Graduada em Audiovisual, na Universidade Estadual de Goiás (UEG), Mestre em Comunicação (UnB) com o trabalho: “Estética da Monstruosidade” (2013). Contato: vguibrasil@gmail.com

[3] Quiasma é, na expressão de Merleau-Ponty, o que reflete uma relação com o Ser que se opera no seio do próprio Ser e a expressão fundamental da “Carne do Mundo”. Em sentido ótico, o quiasma é a ação de dispor em cruz. O “X” (Chi), letra grega para cruzamento. Duas vias que desambiguadas se tocam em um ponto, justamente o centro do X. Este ponto de encontro é o quiasma.

[4] Mas não só. Nos livros Marcovaldo ou a Estações da Cidade (1963), Se um viajante numa noite de inverno (1979) e em vários contos, como A Nuvem de Smog, Vida Difícil, entre outros, a cidade é um tema importante para o escritor italiano.

[5] Calvino, I. As cidades invisíveis, op. Cit. p. 147.

Nós precisamos de monstros

Somos, a todo o momento, bombardeados com imagens de monstros. Vampiros, lobisomens, zumbis, bruxas e toda uma sorte de demônios que saem das sombras para dominar pessoas, casas e objetos. Os monstros nunca descansam. Os monstros são imagens, ás vezes semelhantes a nós, um pouco como nós.

Desde a tenra infância, somos moralizados pela figura do monstro: boi da cara-preta, bicho-papão, monstro do armário, fantasma que mora debaixo da cama, homem do saco, saci, ciganos... Todos estes foram citados em algum momento de nossas vidas, apenas para nos fazer dormir na hora estipulada pelos pais; comer verduras; tomar banho ou somente para nos amedrontar. Com o tempo, a figura do monstro foi perdendo lugar para a violência urbana.

Medo (do grego: phobos, do latim: metus) é sentimento de viva inquietação ante a noção de perigo real ou imaginário. Por que temos medo de monstros? O monstro (o Outro) pode matar e o medo é fundamentalmente o medo da morte, segundo o historiador francês Jean Delumeau.

O que é o monstro? Do latim temos o vocábulo mōnstrō (monstrum, com perda do sentido religioso), mostrar (a alguém um caminho, um objeto), indicar, designar; fazer ver, fazer conhecer, dar a conhecer; prescrever, advertir, aconselhar, denunciar, acusar. Monstros são aqueles seres que pretendem provocar a sensação de desconforto, medo, sentimento que proporciona um estado de alerta, uma relação de estranheza entre nós e o mundo que nos cerca. Nós temos uma habilidade inesgotável de imaginar, de criar seres e depois colocá-los para agir.

O escritor e filósofo francês Jean Chevalier (1906-1993), no Dicionário de Símbolos, afirma que o monstro simboliza nossos “ritos de passagem”, onde está o monstro está o tesouro (sinal do sagrado), pois são raros os tesouros ─ diamantes, pérolas, vias de riqueza, glória, conhecimento, saúde, imortalidade ─ que não sejam guardados por monstros e não necessitem de atos de bravura e heroísmo. O monstro, como símbolo de ressurreição, devora o homem velho para que nasça o novo. Necessidade de regeneração. “O monstro está presente para provocar ao esforço, à dominação do medo, ao heroísmo”. O monstro como a imagem de um certo eu que é preciso ser vencido para desenvolver um eu superior.

Teremos a figura do monstro, especialmente, quando algo for estranho, antinatural; pessoas, animais ou coisas horríveis. O monstro também pode ser uma pessoa de forma ou atitudes hediondas. Assim, em geral, qualquer coisa estranha, incomum, extraordinária, singular, maravilhosa, um prodígio maravilhoso, é nomeada “monstro/monstruosidade”. 

A monstruosidade (ou o monstro) é a metáfora que usamos para referir o mal transposto para o reino estético (do campo da percepção), das sensibilidades e emoções. Os homens precisam de monstros para se tornarem mais humanos, para pensar sua própria humanidade. Pedimos aos monstros que nos inquietem, que nos provoquem vertigens, que abalem nossas certezas.

A repugnância e o encantamento que os monstros exercem sobre nós atravessam décadas/séculos. Os monstros são as representações dos nossos medos e perigos presentes na experiência humana. Todos expurgamos nossos medos e, as vezes, nossos medos ganham forma. Há gerações e gerações aprendemos a temer os monstros.

Para H. P. Lovecraft, o escritor norte-americano de fantasia e horror, “a emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido”.  O escritor argentino Alberto Manguel, em “Contos de Horror do Século XIX”, afirma que “por medo do desconhecido construímos sociedades com muralhas e fronteiras, nostálgicos, contamos histórias para não esquecer sua pálida presença. As trevas, os seres monstruosos, os fantasmas, os cemitérios, a magia, os bosques impenetráveis e (a partir do século XVIII) as ruínas e os mistérios da ciência são os elementos principais das histórias de horror”.

O que nos era exterior, que acontecia ao nosso redor, era assimilado pelos povos em formas de representações monstruosas. Se havia guerras, depressões, falências, conflitos, perseguições, lá estava o monstro representando nossos medos. Criado a nossa barbárie e semelhança, o monstro era o que era a sociedade, quase como nós, por todos os lados. Os monstros rememoram nossa animalidade, por isso nos fascinam. 

           A sociedade contemporânea desfez as tradicionais distinções entre são e doente, o humano e o monstruoso, o normal e o perverso. O Mal e Feio torna-se Bom e recusa-se a morrer, fazendo com que o monstro viva, sempre, em nossa imaginação, em nosso subconsciente. “O desconhecido nos amedronta... mas nós adoramos dar uma olhadinha nele às escondidas”, escrevia Stephen King no livro “Dança Macabra”.

As imagens que nos rodeiam


Há uma coisa confusamente formada, nascida antes

do céu e da terra. Silente e vazia, está só e não muda.

Gira e não se cansa, pode até ser a mãe do mundo.

Não sei o seu nome e a chamo de “a via”. O homem

se molda na terra, a terra no céu, o céu na via e a via

no que é naturalmente assim.

(Lao  Tzu)[1]

 

 

As imagens que nos cercam, nos penetrando, dominando e absorvendo, estão presentes desde que o homem, antes mesmo de saber escrever, no ato mesmo de tentar “representar” − tornar a fazer presente – sua presa, as forças medonhas que o cercavam, foi despertado para outra força nele, a força de criar através de imagens. “Conhecer as imagens que nos circundam significa também alargar as possibilidades de contato com a realidade; significa ver mais e perceber mais” (MURANI, 1997, p.11).

Com função de magia, documento, fruição, fonte de inspiração, condicionadas por crenças, guerras, cristianismo, sociedades, convenções, culturas, observações, ciências, entre outros condicionantes, as imagens nos circundam desde tempos imemoráveis.

Sabendo que toda imagem é uma “memória de memórias, um grande jardim de arquivo declaradamente vivos” que pensa (SAMAIN, 2012, p. 23), tentaremos seguir inspiração na figura do pai da iconologia moderna, Aby Warburg (1866-1929), a respeito da sobre-vida das imagens e nos pensamentos que elas nos causam, tentamos um possível “método warburguiano”.

Para o historiador da arte José Emilio Burucúa (1946), o método warburguiano é baseado na acumulação de textos, ideias e imagens. Seguindo um possível “método warburgiano”, nos deixamos influenciar por imagens antigas, procurando Deus (e deuses) no particular e ligando imagens de círculos importantes em nossa cultura, indo do deus-sol que tudo iluminou até o feixe de luz emitido pelo projetor cinematográfico. Círculos que nos rodeiam e fascinam.

Os antigos egípcios criavam imagens imortais, mementos de reis-deuses eternos. O faraó não era mero agente do deus, era o próprio deus revelado pela coroação (momento de epifania). Segundo Daniel J. Boorstin (1914-2004), na obra “Os Criadores” (1995, p. 197) qualquer egípcio podia “ler” uma estátua sagrada. A arte da tumba ou do templo servia para o egípcio analfabeto ler o Hieroglyph (entalhe sagrado, nome dado pelos gregos). Os egípcios eram criadores de imagens (fiel a um estilo contínuo e homogêneo) regidos pela imagem circular do sol (o deus-sol). O deus-sol era promessa de continuação da vida. Todos os dias viajava pelo céu do leste a oeste em um barco solar sobre as águas do Nilo celeste.Era um ciclo completo. Em textos funerários, Atum aparece como o deus do início (gênese) e fim do tempo: “Meu é o espaço dos que se movem como aqueles dois círculos serpentinos”. Para os egípcios, o mundo era cercado por uma serpente com a cauda na boca (ouroboros), símbolo do “Oceano Cósmico” (CLARK, 1992, p.75).O mundo egípcio era um mundo intemporal, no qual o Faraó era receptáculo da divindade.

A vida egípcia acontecia ao redor do deus-sol. “[...] o círculo – a serpente enrolada− simboliza o ritmo do tempo” (WARBURG, 2008, p.29, tradução nossa). Tudo girava em torno de Atum-Rá. Já na Grécia, as pessoas giravam ao redor dos deuses, principalmente do deus nascido duas vezes – Dionísio. Primeiro nascido da mortal Sêmele [2] e depois nascido da coxa do pai Zeus. Hera, deusa e mulher de Zeus, tentou matar Dionísio pela segunda vez, mas o deus dos deuses “transformou o filho em bode e mandou que Hermes o levasse, dessa feita, para o monte Nisa, onde  foi  confiado  aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros, que lá habitavam numa gruta profunda” (BRANDÃO, 1987, p.120).

Dionísio passou a ser o deus grego do teatro, dança e música. Deus dos mistérios e contradições. Para Plutarco, Dionísio é o deus de “todo elemento molhado” – da umidade que fertiliza, da chuva e do orvalho, do vinho, do sangue vital, do sêmen masculino, da seiva das plantas (BOORSTIN, 1995, p. 257). Dionísio é o deus do retorno. Como Baco (outro nome de Dionísio), era adorado na escuridão do inverno. Deus da vida e da morte (e dos mortos como fonte de vida). Dionísio precisava morrer para renascer. O deus do vinho também era mensageiro do submundo.

 

Viu-se que o filho de Zeus foi levado para o monte Nisa e entregue aos cuidados das Ninfas e dos Sátiros.  Pois bem, lá, em sombria gruta, cercada de frondosa vegetação e em cujas paredes se entrelaçavam galhos de viçosas vides, donde pendiam maduros cachos de uva, vivia feliz o jovem deus. Certa vez, este colheu alguns desses cachos, espremeu-lhes as frutinhas em taças de ouro e bebeu o suco em companhia de sua corte.  Todos ficaram então conhecendo o novo néctar: o vinho acabava de nascer. Bebendo-o repetidas vezes, Sátiros, Ninfas e o próprio filho de Sêmele começaram a dançar vertiginosamente ao som dos címbalos, tendo a Dioniso por centro.  Embriagados do delírio báquico, todos caíram por terra semidesfalecidos. (...). Nesse estado acreditavam sair de si pelo processo do “êxtase”.  O sair de si implicava um mergulho de Dioniso em seu adorador através do “entusiasmo”.  O homem, simples mortal (ánthropos), em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se anér, isto é, herói, um varão que ultrapassou o métron, a medida de cada um. Tendo ultrapassado sua medida mortal, o anér, o herói, transforma-se em hypocrités, aquele que responde em êxtase e entusiasmo, a saber, o ator.  (BRANDÃO, 1987, p. 123- 132, grifo nosso).

 

 Dionísio é o deus da metamórphosis. Os gregos, através do êxtase e recheados de seu deus (en, “dentro, no âmago”; theós, “deus”, entusiasmo é ter um deus dentro de si), aceitaram de bom grado “alienar-se” na esperança de uma transfiguração. Assim como o deus nascido duas vezes os homens tornaram-se binatos, divididos entre anseios pelo retorno familiar e a esperança de novidade embriagadora. A busca por novas experiências fez com que o grego antigo encontrasse o teatro. A necessidade era fazer a experiência durar mais que o próprio ator. Experiências de criar eventos nunca vistos para deliciar, fazer refletir e assustar. Em busca de uma certa imortalidade, o homem grego antigo podia viver além de seu tempo, viver em tempos passados e vislumbrar tempos futuros vendo atores num palco.  O espectador surgia entre o ritual (dromenon, “uma coisa realizada”) e o drama.

“O nascimento do espectador na Grécia antiga é a história dos festivais de Dionísio, de como e quando eram realizados” (BOORSTIN, 1995, p. 264). Inicialmente, os festivais dionisíacos eram uma atividade da comunidade, sem localidade permanente, realizados numa “orquestra” (orkhêstra, “lugar de dançar”, lugar de ékístasis). A orquestra era um espaço circular e no centro ficava o altar dos deuses (thymele). As pessoas dançavam em movimentos convergentes e divergentes (FORTUNA, 2005, p. 236). As cantorias e as danças eram chamadas “circulares” para um coro “circular”, todos em pé no mesmo nível. As pessoas giravam em torno da imagem do deus (ou um mastro enfeitado), o único espectador. Todos dançavam a mesma dança e cantavam o mesmo coro. “Dançar era ser parte da comunidade, parar de dançar era uma espécie de morte” (BOORSTIN, 1995, p. 265). Todos os presentes giravam ao redor do altar do deus, não havia separação de cidadãos. A separação ocorreu quando o ritual de girar ao redor do deus virou teatro (de theatron, “lugar de ver”). Agora alguns “representariam” e outros assistiam (cidadãos testemunhas). Os espectadores (vendo o fazer) começavam a sair de seu tempo e espaço através da imaginação de atores (fazendo o fazer), poetas e dramaturgos. Dionísio ficou sendo o pai adotivo de dois espíritos opostos – Tragédia e Comédia. Dionísio nunca deixou de reinar. Giramos todos, ainda hojem ao redor de tragédias, comédias, em busca de sairmos de nós mesmos, desde o Êxtase buscado em salas de cinemas ou o Ecstasy das raves, dançando freneticamente ao som dos tambores eletrônicos.

Existimos em um mundo redondo que gira em torno do próprio eixo terrestre e em volta do sol. Para Siddhartha Gautama (em jornada para tornar-se Buda), o “mundo é desprotegido e indefeso e fica girando e girando qual uma roda” (BOORSTIN, 1995, p. 45-46). Roda, moedas, engrenagens, olhos... Vimos Chaplin deslizando pelas engrenagens em “Tempos Modernos” (Charlie Chaplin, 1936), imagem ícone de tempus fugit moderno. Circular é o tempo: os anos, os zodíacos, as estações. Para Agostinho, a visão cíclica do tempo era tola e ímpia. Modificando o modelo da história da roda (cíclico) para a linha (linear), Agostinho deu rumo à vida do homem. Santo Agostinho sentiu que ainda era necessário enfatizar que “Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados; e, levantando-se dos mortos, Ele não mais morreu” (MORRIS, 1998, p. 41).  

Com o cristianismo o tempo era linear, livre de concepções cíclicas, “a não repetição dos eventos era a própria essência do cristianismo” (WHITROW, 2005, p.25). O cristianismo tirou o homem da roda. No período medieval, os conceitos de tempo cíclico e linear existiram em conflito. O tempo cíclico (infinito, ciclos sucessivos) era enfatizado por cientistas e eruditos (influenciados pela astronomia e astrologia). Já o tempo linear (finito, eventos que ocorrem para uma finalidade última) era promovido pela classe mercantil, pela economia monetária (moedas, mobilidade). O tempo passa a ser valioso e a máxima “tempo é dinheiro” revela que o tempo deve ser usado de forma econômica. E se vale mais quem guarda o tempo, as pinturas passaram do a fresco para o a secco e Kairos (oportunidade fugaz) vive embate com Aion (eternidade criativa).

Mesmo que o cristianismo tenha tirado o homem da roda, a participação mística trouxe o homem para o círculo. Nossas imagens têm “uma relação sem limites entre o ser humano e seu mundo circundante” (WARBURG, 2008, p. 12, tradução nossa). Somos fusão do existencial e do normativo. Nossos círculos representam várias necessidades humanas: união (ritual religioso/místico), abrigo (construções de povos que ainda permanecem isolados da civilização e conservam suas próprias tradições), melhora física (roda de capoeira), ação/proteção (Pomba Gira), ludicidade (cirandas). O círculo é o desejo de unidade e totalidade, “o círculo representa o esclarecimento, a iluminação. Simboliza a perfeição humana” (JUNG, 2008, p. 324). Na música “Redescobrir”, de Elis Regina e Luiz Gonzaga Jr., a memória é como uma brincadeira de roda (Elis: Como se fora Brincadeira de Roda/ Coral: Memória).  Na ludicidade das rodas, cirandas, rituais, um dos objetivos é a comemoração (com-memória), causada pela recordação (uma volta ao coração, cordis-coração) de pessoas, acontecimentos, agradecimentos, etc.. Rodar, girar, circular, circularidade cultural das imagens que nos permitem fluir, influir a imaginação. O círculo é sagrado para os Sioux Oglala (índios norte-americanos) e seu abrigos (tipis) eram circulares. “O círculo é um símbolo luminoso não-examinado cujo significado é sentido intuitivamente, não interpretado conscientemente” (GEERTZ, 2008, p. 94)

 

Os Oglala acreditavam que o círculo é sagrado porque o grande espírito fez com que tudo na natureza fosse redondo, exceto as pedras. A pedra é a ferramenta da destruição. O sol e o céu, a terra e a lua são redondos como um escudo, embora o céu seja fundo como uma tigela. Tudo o que respira é redondo, como o caule de uma planta. Uma vez que o grande espírito fez tudo redondo, a humanidade devia olhar o círculo como sagrado, pois ele é o símbolo de todas as coisas da natureza, exceto a pedra. É também o círculo que forma o limite do mundo e, portanto, dos quatro ventos que viajam por lá. Consequentemente, ele é também o símbolo do ano. O dia, a noite e a lua percorrem o céu num círculo, portanto o círculo é o símbolo de todo o tempo. (RADIN apud GEERTZ, 2008, p. 94)

 

 A relação entre o ethos e a visão de mundo é circular. Joseph Campbell, em entrevista a Bill Moyers, nos fala o motivo da importância das imagens circulares, das mandalas (palavra sânscrita para “círculo”) do círculo, do que nos cerca do inicio ao fim da vida:

Porque ele [o círculo] é experimentado por você o tempo todo: o dia, o ano, as suas saídas para a aventura – a caça ou outra qualquer – e o seu retorno para casa. Há também uma experiência mais profunda, o mistério do útero e da sepultura. Quando as pessoas são enterradas, o que se visa é o renascimento. Eis a origem da ideia do sepultamento. É colocar alguém de volta no útero da mãe terra, para o renascimento. Imagens muito primitivas da Deusa mostram na como uma mãe recebendo a alma de volta. (1999, p. 235-236)

 

 Campbell, ainda, nos fala da ligação da magia com círculos:

Quando um mago quer realizar sua magia, traça um círculo ao redor de si mesmo, e é dentro desse círculo limitado, dessa área hermeticamente fechada para o exterior, que os poderes, até aí perdidos do lado de fora, podem ser postos em jogo. (1990, p. 234)

 

 Magia circular das imagens é o que temos com a fotografia, o cinema. Um círculo que capta (a câmera) outro que circula imagens até uma superfície plana ou não (a projeção cinematográfica). Esse círculo que olhamos e nos hipnotiza, pode ser nos instantes de um flash (olhar o passarinho) ou hipnotizados olhando as imagens reproduzidas para nosso entretenimento. O espectador imobilizado em seu assento vendo as imagens que se movem à sua volta (MORIN, 1997, p. 83). O aparelho cinematográfico reproduz mecanicamente a percepção ocular natural. Luzes são captadas, canalizadas, filtradas e sombras são espalhadas por qualquer superfície clara (ou que contenha certa claridade). Vemos nosso duplo (um outro ser humano), nossa fantasmagoria, nossos sonhos, rituais, metamorfoses, êxtases, o transe, uma vida e morte surreal. A alma da imagem, no cinema, dá as mãos as almas dos espectadores e começam a girar, a cirandar, dá-se a transcendência. O cinema é como um símbolo mandálico. A mandala que “não é apenas expressão, mas atuação” (JUNG, 2001, p. 40). O espectador ao contemplar uma obra fílmica, como um indivíduo que contempla a mandala, é tocado pela força do símbolo e guiado para a centralidade para a junção das forças lunimosas e obscuras de nossa natureza. Olhamos para as imagens projetadas como se fossem serpentes que circulam ouroboriacamente sobre o deus-sol, com admiração infindável. O cinema é a via de retorno da magia.

 

 

  

REFERÊNCIAS:

BOORSTIN, Daniel J. . Os criadores: uma história da criatividade humana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1987. 3 v.

BURUCÚA, José Emilio. Historia, arte, cultura: de Aby Warburg a. Carlo Ginzburg. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2003.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito/ Joseph Campbell, com Bill Moyers. São Paulo: Palas Athena, 1990.

CLARK, R.T. Rundle. Símbolos e Mitos do Antigo Egito. São Paulo: Hemus, 1992

FORTUNA,Marlene. Dioniso e a comunicacao na hélade: o mito, o rito e a ribalta. São Paulo: Annablume, 2005.

GEERTZ,Clifford.  A interpretação das culturas. RiodeJaneiro: LTC, 2008.

JUNG, Carl Gustav (org.). O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2008.

JUNG, Carl G. Comentário Europeu de C. G. Jung. In: JUNG, C. G.; WILHELM, R. O segredo da flor de ouro. Petrópolis: Vozes, 2001.

MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Tradução António-Pedro Vasconcelos. Lisboa: Relógio D’ Água, 1997.

MORRIS, Richard. Uma breve história do infinito: dos paradoxos de Zenão ao universo quântico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

MUNARI, Bruno. Design e Comunicação Visual: contribuição para uma metodologia didática. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

SAMAIN, E. (Org.). Como pensam as imagens. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

WARBURG, Aby. El ritual de la serpiente. Madrid: Sextopiso, 2008.

WHITROW, G.J. O que é o tempo?:uma visão clássica sobre a natureza do tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2005.

 

 

 



[1] apud BOORSTIN, 1995, p. 31.

[2] Hera, deusa ciumenta e mulher de Zeus, fez com que a mortal Sêmele exigisse ver Zeus em sua forma celestial. A imagem ofuscante do deus olimpiano matou Sêmele que pariu prematuramente Dionísio. Zeus pega o filho e costura o feto na coxa. Depois de um tempo nasce o único deus de mãe mortal, um estranho no Olimpo (BOORSTIN, 1995, p. 257).

 
 

Vontade de fantasia: crítica da razão fantástica e da objetividade

 

Resumo: A imprensa tem dificuldade em lidar com temas da metafísica e do invisível; quando muito esses temas interessam à imprensa sob o foco do escândalo, enquanto charlatanismo. Submetida à investigação jornalística a transcendência é alvo de ironia, piada ou deboche, e a metafísica, pauta remota.

 

Palavras-chave: jornalismo; objetividade; fantasia.

 

 

 

  1. Fantasia da objetividade jornalística

 

            O jornalismo acalenta a fantasia da objetividade enquanto sofre os problemas da impotência dos métodos que adotou para dar conta da realidade. Historicamente, a imprensa sempre teve problemas na abordagem da metafísica e do invisível: alma, espírito, antepassados, mediunidade e “efeitos paranormais” são assuntos sem valor-notícia. Quando muito o tema interessa à imprensa enquanto escândalo ou charlatanismo. A transcendência como motivo de investigação jornalística é alvo de ironia, piada ou deboche e a metafísica, pauta remota. Por mais que assuma o ceticismo, vemos que o jornalismo ainda padece de civilidade (no sentido da deferência pela alteridade) quando o assunto apresenta-se como o oposto dos limites defendidos pela imprensa. 

A fantasia da objetividade constrói a ilusão (via técnicas narrativas) de clareza e concisão, de exatidão e neutralidade. A objetividade permitiria ao repórter o distanciamento do pensamento pessoal e político, garantindo-lhe um texto isento de qualquer tipo de percepções do seu autor, incluindo suas emoções. Esta ideia/crença está associada ao jornalismo moderno, que se pretende distanciado dos fatos para compor uma realidade vista a partir de um sujeito pretensamente neutro.

O jornalismo é uma versão da realidade elaborada pelas práticas profissional e textual. Narra o que vê de acordo com um ponto de vista ideológico, a consciência, formação e limites da cultura do repórter, além de seguir as regras da empresa. A questão da objetividade se choca diretamente com aquela que se entende por fantasia. Como lidar com o que não pode ser relatado ou narrado como “fato normal”? A metafísica, o anormal, o “paranormal”, o “esquisito”, o que está fora das regras da física, pode se adequar aos padrões da objetividade e clareza solicitados pelo jornalismo moderno? “Pode o fantástico, uma linguagem essencialmente poética destinada a provocar comoções, contrariar os cânones do jornalismo profissional e manifestar-se onde reina a precisão?” (MOTTA, 2006, página. 93). O jornalismo lida com o verossímil, o explicável, ocorre que o fantástico, ao contrário, é a irrupção do inverossímil, “manifestação irracional enquanto expressão de algo irreal, estranho ou sobrenatural percebido por nós”. (idem, página. 57).

Luiz Motta verificou que pessoas que avistam discos voadores, que fazem cirurgias mediúnicas, que se comunicam com outros mundos, outros espaços físicos e temporais são quase sempre tratadas pela imprensa de forma debochada, o que é uma maneira de desqualificar o fenômeno. Quando não ridiculariza, tenta demonstrar que se trata de fraude. O fenômeno seria uma tentativa de ludibriar os incautos e, quase sempre, com objetivos financeiros. (MOTTA, 2006). O tratamento para o fantástico parte do pressuposto de que o fato é sempre uma farsa criada por alucinados ou espertalhões dispostos a obter renda com aquilo. Aqui o fato jornalístico não é o fenômeno que foge as regras do normal, mas a alucinação dos personagens envolvidos. Ou há alguém tentando enganar os outros; ou foram todos enganados. Para este tipo de cobertura, a priori, o fenômeno é uma mentira, uma invenção dos personagens envolvidos na história. Não há magia, mas charlatanismo.

Neste ponto convém distinguir dois conceitos de mágico. O primeiro diz respeito ao ilusionismo. Mágico é aquele que consegue iludir as pessoas e realiza truques. Seu talento está na criação de um “ritual farsante” que sugere o rompimento das regras da normalidade física ou temporal. O mágico cumpre um contrato estabelecido com o público: o mágico se propõe fazer coisas aparentemente anormais, estranhas, esquisitas, mas o público sabe que isto é somente um show, como um filme, uma peça de teatro. De fato nenhuma regra da “normalidade” foi quebrada. O bom mágico é aquele que melhor “engana seu público”. O melhor mágico é aquele que faz surgir a indagação: “como ele conseguiu fazer isso?” Admira-se o farsante. O que ele faz tem uma dupla característica: é inverossímil quando “parece” fora da normalidade e é verossímil porque se sabe (e todos sabem) que se trata de uma ilusão – conforme o “contrato assinado”, nenhuma lei da física foi quebrada.

Outra noção de mágico faz parte do campo da antropologia. Aqui, mágico é aquele que consegue manipular as energias. São os xamãs, feiticeiros, bruxos, paranormais, médiuns... Também este mágico faz contrato com o público. Mas é o oposto do outro conceito. Se o outro mágico estabeleceu a farsa intersubjetiva; o xamã não pode iludir, jamais pode dar a entender que se trata de uma farsa. São condições apriorísticas: o mágico, a priori, é um farsante assumido; o xamã, a priori, não pode ser um farsante – ou deixa de ser xamã. Se o xamã não é um farsante, como inseri-lo nas páginas do jornal? Como tratar o fenômeno que ele provoca ou diz provocar? Como tratar seus relatos se eles fogem às regras da normalidade? Aqui entra um outro elemento a se considerar, a noção do sagrado. O sagrado, observa Mircea Eliade, não existe no mundo, não é algo dado pela natureza ou pela cultura, ele é um construto do homem “religioso”. Uma pedra ou um livro são sagrados porque alguém ou um grupo assim o decidiu. A comunidade sacralizada está a parte do mundo “profano”, então define seus limites, suas fronteiras, separando os “puros” (os de dentro) dos “não-puros” (de fora). O sagrado não é necessariamente uma teofania ou uma hierofonia. Não há necessidade de religião para um lugar se tornar sagrado. O sagrado é uma relação entre as pessoas e a “coisa” ou as “coisas”.

O sagrado legitima e traz para “este mundo” aquilo que antes era do reino da fantasia. Aqui o fantástico é aceito pelo jornalismo. O jornalismo não ridiculariza as narrativas (obtidas de segunda mão de um livro antigo) de um personagem que se diz filho de deus e ter curado pessoas, andado sobre as águas e subido aos céus. Tampouco debocha da história de um personagem que moraria no polo Norte e que, para voar, faz uso de um trenó puxado por renas. O jornalismo não debocha de quem diz “incorporar” alguém que já morreu, ou a capacidade desta pessoa de conversar com os mortos.

O que faz a diferença de histórias como essas e dos relatos tradicionais do fantástico é o sagrado. E, mais que isso, o sagrado dominante. Transformado em religião ou integrado à cultura dominante, ele é institucionalizado. E ao jornalismo, enquanto reprodutor desta cultura, cabe reafirmar este sagrado. Entenda-se como “sagrado dominante’, objetos, rituais, mitos e tudo o que determinado grupo hegemônico cultural aceite como tal. Quando se trata do fantástico, o jornalismo irá excluir (debochar, destruir) aquilo que não for sagrado, mais exatamente, vai tentar eliminar o que não fizer parte do sagrado dominante. Finalmente, deve-se considerar aquilo que parece irracional, “maluco”, “pirado”, para determinadas culturas, mas não são para outras. O casamento na igreja, por exemplo, tão sagrado para os cristãos, é considerado “maluquice” para determinados grupos aborígenes; “incorporar” um extraterrestre e se preparar para o final dos tempos é considerado normal pela comunidade que estuda e pratica a “ufologia esotérica”. Isto leva a concluir que a objetividade no jornalismo sofre de impotência ao lidar com o sagrado e a alteridade. Ao lidar com o “sagrado dominante” (e seus fatos insólitos) o jornalismo não questiona, não duvida – ao contrário, reafirma este sagrado. Em contrapartida, o que estiver fora desse campo deve ser eliminado.

 

  1. Disseminação e modificação de temas fantásticos

 

A fantasia, enquanto notícia, é relatada muitas vezes sob o tom do patético. Fantasia (Phantasie), para os gregos, imaginação (Imagination) para os romanos, força imaginativa (Einbildungskraft) para os alemães e imaginário, atualmente, sob influência dos autores franceses, é a capacidade de fazer algo surgir de fora para dentro (inspiração) e de dentro para fora (criação/expiração). “A fantasia possibilita discernir imagens mesmo quando o imaginado não está presente” (WULF, 2006, página 44). Quando ouvimos uma conversa ou lemos sobre algo sobrenatural, mágico, somos capazes de imaginar temas fantásticos em ação. Obviamente, elementos fantásticos são importantes ingredientes de persuasão. Para o sociólogo Arnold Gehlen, o homem “estaria classificado corretamente tanto como ser da fantasia tanto como ser da razão” (1993, página 374 apud WULF, 2006, página 44).

Na visão de Christoph Wulf, professor de antropologia e filosofia da educação, são quatro aspectos distintos em relação à fantasia: 1) participação dos homens na cultura; 2) a fantasia colaborando com a “recriação” de outras culturas e mundos humanos para o entendimento do ser-diferente; 3) ligação entre o consciente e a fantasia (força que coopera na formação do mundo de imagens humano fora da consciência, que se articula em sonhos, nos fluxos dos desejos e das forças vitais) e, finalmente, 4) desejo e capacidade de realizar o desejado de modo hipotético. Parece-nos que o desejo da fantasia é mudar o mundo, “ainda que antes espontaneamente, à maneira de um evento vagabundeando, e não tanto estrategicamente” (ISER, 1991, página 293-294 apud WULF, 2006, página 44.).

A Fantasia é tomada como superstição pela mídia. O universo fantástico ganha “re-significações simbólicas que migram do campo religioso para o campo da magia”, tornando-se supertições. (PEREIRA, 2005, página 31). Superstição tem estreita ligação com a religião ou o sagrado. O campo mágico e o campo sagrado possuem um liame tênue. “Magia e religião de fato vão misturados no mundo vivido (...), na vida real, na ordem dos fatos e não dos conceitos, magia e religião convivem, formam um ecossistema. Mundo afora a magia se forma, se enrama e floresce em ambientes religiosos” (PIERUCCI, 2001, página 98-99).

O relato de assuntos fantásticos, sobrenaturais, mágicos, circunstâncias extraordinárias e o medo pelo desconhecido, era algo recorrente nos fait divers. Segundo o jornalista Mário de Lucca Erbolato, fait divers “é qualquer notícia que, pelas características do que relata, rompe de forma extraordinária e insólita a vida cotidiana, causando impacto ao leitor” (1991, página 244). Os fait divers foram criados pelo e para o jornal. O termo somente apareceu, segundo a escritora Marlyse Meyer, a partir de 1863, com Moïse Polydore Millaud em seu Le Petit Journal. (1996, página 97).

As notícias diversas (variedades) eram consumidas por leitores atraídos por temas cotidianos da cultura popular. Os fait divers possuíam um tom mundano e indefinido, que tinham como características: a contradição, o patético, a presença da ficção, o extraordinário, a coincidência e o inesperado. A historiadora Valéria Guimarães, em seu texto “Apontamentos para a história do fait divers no Brasil” (2006), relata a origem francesa do termo e suas traduções para o português: Notícias Diversas, Fatos Diversos, Variedades ou Folhetim. O feuilleton-roman (folhetim), como um antepassado do fait divers, era apenas uma seção no rodapé do jornal que se dedicava e assuntos leves, variedades e “dramatizações da vida real, em par com a ficção”. Além dos fait divers, existiam as nouvelles que eram “notícias contadas por um nouvelliste em praça pública”. As nouvelles passavam de boca-a-boca, como uma criação coletiva, sendo modificadas ao desejo e imaginação do ouvinte. Impressas, as nouvelles eram conhecidas como canards[1] (ou ocasionelles), desde 1488, um dos mais autênticos antepassados dos fait divers. Os canards eram vendidos aos berros pelos “canardeiros”.

 

As notícias breves são as mesmas em todos os jornais. (...). De lá vem esta necessidade cotidiana de tirar consequências contrárias e de chegar necessariamente de um lado e de outro do absurdo, para que os jornais possam existir. É nas Notícias Breves que se produzem os Canards. (...). A relação do fato anormal, monstruoso, impossível e verdadeiro, possível e falso, que servia de elemento aos Canards, foi chamada então nos jornais de Canard, com tanta razão pelo fato de que não é feito sem penas, e que pode ser colocado em qualquer molho. (BALZAC, 2004, página 52-53).

 

Os canards possuíam em seu conteúdo aquilo que o filosofo esloveno Slavoj Žižek chama de l’effet de l’irréel, ou seja, notícias ficcionais eram aceitas como “reais”. E, atualmente, é assim que algumas notícias fantásticas são aceitas pelos leitores, como “realidade” cotidiana, apesar de serem transmitidas com certo deboche. Porém, segundo Žižek, a “realidade é um produto do discurso, uma ficção simbólica que erroneamente percebemos como entidade autônoma real” (2003, página 36). Prevalecendo o “deserto do real”, o que nos resta é apreciar notícias fantásticas/exóticas/bizarras, verdadeiros oásis do imaginário.

Ainda sobre os fait divers, ao discorrer sobre as estruturas destes, Roland Barthes afirma:

 

(...) fait divers é uma arte de massa: seu papel é, ao que parece, preservar no seio da sociedade contemporânea a ambiguidade do racional e do irracional, do inteligível e do insondável; e essa ambiguidade é historicamente necessária, na medida em que o homem precisa ainda de signos (o que o tranquiliza), mas também na medida em que esses signos são de conteúdo incerto (o que o irresponsabiliza). (2007, página 67).

 

A imaginação amplia os sentidos e propulsiona a vida. O sobrenatural é alimentado pelas chamas do natural. O racional se alimenta da irracionalidade, assim como o homem tenta desmagificar a existência usando o mundo mágico/mítico/sobrenatural para se explicar “Ser” no mundo. Se na atualidade as notícias narram vivências do cotidiano e do efêmero, o jornalista parece buscar o que há de perene e básico em um fato, mesmo que o acontecimento seja insólito. A realidade só existe em sintonia com a fantasia. Criamos deuses, heróis, seres fantásticos que perduram por gerações, até décadas, transcendem e tornam-se mitos. Porém, quando o mito perde contato direto com a concretude, com a realidade que nos circunda, transforma-se em abstração, fantasia, sobrenaturalidade, passando a habitar nosso imaginário. Por qual motivo não duvidamos de seres engendrados pela religião (anjos, santos milagreiros, espíritos de fogo, virgens grávidas, águas bentas, entes ressuscitados) que assolam os jornais em épocas consideradas “santas”, mas duvidamos e fazemos troça de seres engendrados pela magia (pomba-gira, feiticeiros, bruxas, alienígenas, espíritos)? O sacerdote não é um tipo de mago, com suas invocações, rituais, encantos? Para o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, ao discorrer sobre o “desencantamento do mundo” weberiano, o desenvolvimento cultural racionalizou a religião. A magia é o momento anterior a religião, é seu estágio primordial, recortado idealmente, efetivamente e até violentamente (“caça às bruxas”) da religiosidade. “Magia é coerção do sagrado, compulsão do divino, conjuração dos espíritos; religião é respeito, prece, culto e, sobretudo doutrina. A normatividade que corresponde à magia é o tabu; a normatividade que vai resultar da religião é a ética religiosa” (2003, página 70).

O jornalismo flerta com a anormalidade, e mesmo a normalidade é tida com alguma estranheza. O absurdo passa a integrar o cotidiano como um fato corriqueiro. Eventos insólitos, exóticos, fantásticos, interessam ao jornalismo enquanto assunto folclórico, variedades para risos e chacotas sociais. Segundo relato do jornal Correio Paulistano, a feitiçaria era um embuste empregado por charlatães. Os “barbarismos” das práticas mágicas eram punidos pelas forças policiais:

 

O delegado (...) tendo conhecimento de que o pardo José de Oliveira e sua mulher Carolina de Oliveira, moradores num casebre existente na rua Coelho, nas proximidades do Matadouro, se entregava a toda sorte de bruxaria, effectuou alli uma busca, apprehendendo grande parte de ingredientes e quinquilharias empregados neste mister. José de Oliveira, que há 4 annos exerce esse meio de vida, esteve antes residindo em Jundiahy, onde explorava abertamente os incautos, dizendo que curava qualquer doença e arranjava tudo, que se desfaz-se até casamentos ricos. Às pessoas doentes José applicava tais charopadas, que, em vez de produzir melhoras, aggravavam mais a enfermidade fazendo, às vezes, sucumbir o cliente. Sobre o facto foi aberto o competente inquerito, em que depoz o menor Francisco Amelio, espia dos feiticeiros. (CORREIO PAULISTANO, 4/9/1906 apud KOGURUMA, 2001, página 137).

 

Alguns jornais substituíam as matérias de crimes violentos, ou catástrofes, para explorar temas sobrenaturais. Foi o que ocorreu com as edições do jornal A Noite, em 1931, sobre a negra, pobre e benzedeira Manoelina Maria de Jesus, conhecida como “A Santa de Coqueiros”, que fazia curas com “água milagrosa”. Segue o relato da morte da “Santa de Coqueiros”, presente na obra “História Cultural da Imprensa: Brasil, 1900-2000”:

 

Ontem, as últimas horas da tarde, estive em casa de Manoelina e com ela palestrei, durante largo espaço de tempo. A ‘Santa’ estava de pé, gozando de perfeita saúde. Hoje, muito cedo, mandou ela um portador chamar-me (...) Entramos no quarto de Manoelina. Ela estava prostrada: Que tem? perguntamo-lhes. A Moça, com temperatura muito elevada, segurou-me pela mão e disse: Fui avisada... E não disse mais nada.(...) Manoelina agoniza, lentamente seus olhos cerraram-se, sua boca emudeceu. Apenas o coração lhe arfa, com compasso desmedido. Contempla-lhe a fisionomia e ela tem a serenidade dos justos. (A NOITE. 1 de maio de 1931, página 1 apud BARBOSA, 2007, página 93)

 

Tanto o pardo José de Oliveira e a negra Manoelina, pobres e “curadores” de doentes, tiveram seus casos relatados em jornais. Porém, José e sua esposa eram considerados bruxos, feiticeiros, e mereciam punição. Já Manoelina era considerada “santa” e digna de respeito e primeira página. O jornalismo assume o paradoxo daimon-santo ao citar temas fantásticos, exercendo uma divisão clara entre magia e religião. Magia, feitiçaria são assuntos relatados com escárnio e preconceito. Já a religião e seus “seres sagrados” são relatados cheios de licença poética.

 

  1. Magia em Brasília

A fantasia faz parte da história. Gilberto Freyre já observou que todo lugar tem uma história natural e uma sobrenatural. O mito se cria e se incorpora à história, refazendo a história, estabelecendo culturas. Em Brasília, por motivos que não cabem aqui analisar, instalou-se uma diversidade de grupos, seitas, movimentos espiritualistas, sincretismos religiosos, pessoas com capacidades “paranormais”. Estes produzem relatos e eventos fantásticos que fazem parte de um sagrado, mas um sagrado aceito por pessoas e grupos outsiders, não dominantes. O semanário brasiliense JOSÉ – Jornal da Semana Inteira adotou o fantástico como pauta durante o período de 1985 a 1994, inicialmente no formato de coluna, “José muito curioso”, posteriormente, devido ao sucesso junto aos leitores, com página inteira com o título “Jornal do mistério”. O JOSÉ tinha o formato tabloide e se extinguiu no final dos anos 1990, era comandado pelo jornalista Luiz Gutemberg e enfatizava quatro editorias: política, economia, artes/cultura e comportamento. 

O repórter e redator da página[2] buscava não somente o fantástico, mas o diferente e o original. A pauta incluía religiões, seitas, grupos místico-esotéricos, espiritualistas; xamanismo, bruxaria, milagres, magos, fenômenos, curas, exorcismos; experiências singulares, viagens intergalácticas, contatos extraterrestres, mediunidade especial, profecias; artes divinatórias; práticas de tarô, quiromancia, astrologia; publicações, rituais e objetos sagrados. De imediato decidiu-se que não seria usado o modelo padrão de tratamento jornalístico para o fantástico – a desqualificação daquilo que não faz parte do sagrado dominante. Os personagens dessa cultura outsider não seriam tratados como “malucos”, “pirados”, ou como “um bando de espertalhões tentando enganar as pessoas”. O repórter decidiu que seria mantida a narrativa jornalística, mas com uma leitura antropológica do fenômeno. Isto é, enquanto matéria jornalística, o fenômeno seria apurado, o personagem seria questionado, testemunhas seriam inquiridas. O jornalístico iria valorizar a narrativa como fato inserido na sua cultura. Ao invés de comparar com a cultura e o sagrado dominante, o fato seria visto dentro do seu campo.

Ao sair para o trabalho de campo, o repórter procurou entender as experiências do sagrado como porta de acesso a outra lógica, aos relatos do milagroso, do inexplicável e do fantasioso. Descobriu que cada fato era único e singular, não carecia de preconceitos. O repórter não descartou a experiência estética somente pelo fato de ser “inexplicável para ciência”. O jornalismo seria mediador, caber-lhe-ia a função de traduzir e relatar o que ocorria “do lado de lá”, a partir das testemunhas ouvidas. O jornalista também quis “explicar o que parecia inexplicável”. Se o entrevistado afirmava ser capaz de conversar com um extraterrestre, o repórter não buscava explicações físicas para o fato. Tratava o assunto como narrativa e “contação” de histórias. A narrativa era reconhecida e aceita pelo público não como “verdade”, não como uma narrativa mitológica, mas jornalística. Esta se permitia enveredar pela “verdade” do fantástico sem causar constrangimentos. A postura do repórter, ao tempo que garantia o respeito ao narrador e a sua história, também preservava o leitor de uma possível mistificação. O narrador, evidentemente, sacralizava sua narrativa; o jornalismo não reforçou nem desqualificou, ele deu visibilidade ao sagrado. Para traduzir este mundo do fantástico, o repórter pactuou-se com ele: teve que participar dos mais diversos e “estranhos” rituais, beber o daime (ayuasca), ler publicações da área, “colaborar” em operações mediúnicas, visitar templos, ouvir relatos, analisar propostas “mirabolantes”, acompanhar a realização de fenômenos “paranormais”, entrevistar “viajantes do espaço” e até “extraterrestres” (como se diziam alguns). Os sete anos de jornalismo tratando do fantástico em Brasília, resultaram em dois livros[3] e um vídeo[4].

É possível falar dos aspectos oníricos da narrativa e do jornalismo sem recorrer ao tema do fantástico e dos níveis de realidade? O jornalismo trata a realidade como mágica quando a notícia preenche um conjunto de níveis informacionais bem próximos àqueles da literatura e do cinema: níveis de narração dentro de níveis de ficção; níveis de descrição dentro de níveis de enquadramentos, níveis de passagens entre níveis de leituras e assim por diante numa cadeia complexa e fluída, espécie de palimpsesto de realidades possíveis.[5] A este amálgama denso, implicado e intrincado, Jurgen Habermas chamou de “contextualismo radical”, obviamente se referindo ao modelo literário de Ítalo Calvino. O que Ítalo Calvino, especialmente no romance Se um viajante numa noite de inverno (1979), demonstrou, segundo Habermas, foi a necessidade do narrador não se perder em meio à diversidade de focos, tantas são as entradas e saídas, os diversos subconjuntos no interior do mundo e dos submundos narrados.

 

A linguagem pode se tornar autônoma (...) assumindo forma de destino epocal do ser, de delírio dos significantes e, assim retrabalhada, superar as fronteiras entre o significado textual e metafórico, entre a lógica e a retórica, entre a fala séria e a fictícia. (HABERMAS,  2002, página 237).

 

Em seu “contextualismo” o jornalismo (sobretudo o literário) consegue de tal forma absorver conjuntos de realidades e efeitos potencialmente reflexivos, a ponto de suscitar uma realidade formada apenas de realidades inventadas. Trata-se de um terceiro olhar, formado pela revisão articulada entre o real e a fantasia, puro campo de probabilidades e recriações. Neste sentido, o jornalismo literário pode ser exercício do pensamento, empenho da racionalidade comunicativa na compreensão dos limites do mundo. A “fala fictícia” do jornalismo literário é capaz de gerar mais interesse do que a “fala séria” da realidade, simplesmente, devido à sua capacidade de lograr.

O logro, que é preciso aqui diferenciar da ilusão, é responsável por boa parte do contexto de fantasia não só na literatura, mas na espécie animal, como nos mostrou Boris Cyrulnik em seus estudos sobre as formas de encantos.[6] Sabemos, a partir de suas pesquisas etológicas, que a base daquilo que chamamos de encanto (e desencanto) é gerada no logro, que é algo situado justamente entre a fantasia e a realidade. Lograr vem do latim lucrare, “ganhar”, tirar proveito, enganar com astúcia, produzir efeito que gerará resultado esperado. Logro vem de lucru, gerar artifício, engano propositado, manobra que visa produzir ilusão. É aqui que logro e ilusão se diferenciam. O logro não é ainda a ilusão, embora seja um dos princípios para produzi-la. Iludir, por sua vez, do latim, iludere, aponta para um viver no erro, equívoco dos sentidos e da mente que faz com que se tome uma coisa por outra, vivendo conscientemente sem que o erro seja notado. È necessário um choque de consciência, mudança de convicção ou outra ação qualquer para que a ilusão seja “descortinada” e outra realidade se apresente no lugar como “real”. As ideologias geralmente tomam para si este papel do desvelamento.

O logro é menos que a ilusão, não passa de um artifício acintoso, como o cinema e a literatura, e proposital. No logro, reconhecemos quase sempre conscientemente que estamos sendo enganados, e nos deixamos seduzir por ele por que, muitas vezes, é sedutor, forte, capaz de gerar efeitos de presença mais do que a realidade em si. A ilusão é de outra ordem. Sua natureza é a do disfarce que não se quer deixar revelar. Não a reconhecemos imediatamente; somos quase que ‘dominados’ por sua “luz” acachapante e total. Tomamos a ilusão por realidade, vencidos pela efusão. É a ilusão [p. ex.: do filósofo, do cientista e do jornalista] que critica e condena o poeta, assumindo para si a superação da desilusão, o que cria o princípio para novas ilusões.

Como a literatura, o jornalismo contextualiza radicalmente logros e ilusões. "O logro é eficaz porque põe a profundidade na aparência, ao passo que a ilusão nos engana no real” [7].  Cyrulnik nos mostra em suas pesquisas que o ser vivo prefere o logro à estimulação natural. Mostra que a ontogênese do lograr é o jogar, trata-se muito mais de um teatro que visa produzir encanto passageiro do que a produção permanente e duradoura de imagens e idéias “reais”. O encanto exercido pela encenação é evocado semelhante a um teatro: “É por isso que os revolucionários dão tanta importância ao teatro ou ao cinema, que lhes fornecem um laboratório onde, ao porem em cena as suas próprias representações sociais, tentam moldar as dos outros” [8]. Em contrapartida os que estão envolvidos no fantástico – seita, religião, manifestação paranormal, contatos – incorporam não somente o cognitivo da atividade, mas também os personagens deste teatro sobrenatural. Estes - em alguns casos imponderados como guias, “mestres”, dentro da hierarquia - dentro do ritual, dentro desta grande encenação, “revelam” a existência de uma complexa relação entre as diversas camadas do real e as muitas da fantasia. Não há como tratar disso com a objetividade do jornalismo.

Neste sentido, ao cobrir o fantástico de Brasília, o JOSÉ tinha remoto, mas bem intencionado desejo de praticar um jornalismo próximo da invenção e da narrativa, quase apartado dos níveis clássicos de realidade adotados pela dita narrativa objetiva.

  1. Conclusões

O jornalismo tem como desafio a abordagem daquilo que se entende por fantástico. A narrativa objetiva, porém, não é capaz de tratar do tema porque ele foge às disciplinas da realidade. Regra geral, aponta Motta, a abordagem do fantástico é feita de forma debochada, ou relacionada à má fé. Exceção é feita quando esse jornalismo cobre aquilo que se entende por “sagrado dominante”; neste momento o fantástico é apresentado como parte da realidade. No entanto, há um jornalismo que consegue olhar para o fenômeno de uma forma singular, articulando o real e a fantasia pela narrativa. Considera-se, no caso, aquilo que Habermas observou, analisando o romance de Ítalo Calvino: o narrador não se perde em meio à diversidade de focos, apesar das muitas entradas e saídas para os mundos e submundos observados. Ele constrói um caminho. Inventa uma língua mediante um caminho de linguagem.

Por um período de nove anos (1985-1994) o Jornal da Semana Inteira-JOSÉ, cobriu o fantástico em Brasília. Os temas foram tratados como narrativa e contação de histórias. O papel do repórter era traduzir o fenômeno para o leitor, garantindo a visibilidade (cultural, antropológica) do que era sagrado parta o contador, mas sem mistificá-lo. Não havia deboche nem desprezo ao tratar de fenômenos que eram distintos do “sagrado dominante”. O jornalista foi o narrador desses encantamentos, também ele re-criando o logro, e ampliando o encantamento. Mas não espanta que seja assim, posto que, observa Cirulnyk, o ser humano prefere o logro à estimulação natural.

 

  

Referências

BALZAC, Honoré. Os Jornalistas. Tradução João Domenech. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.

BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2007.

CYRULNIK, Boris. Do Sexto Sentido – O Homem e o Encantamento do Mundo.  Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil, [19-].

ERBOLATO, Mário L. Técnicas de codificação em jornalismo. São Paulo: Ática, 1991.

FERREIRA, Wilson Roberto. Objetividade. In: MARCONDES FILHO, Ciro (org.). Dicionário da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2009.

GUIMARÃES, Valéria. IN. Revista Jornalismo Brasileiro, São Paulo, 07 ed. , 2006. Dossiê Policial. Disponível em: < http://www.eca.usp.br/pjbr/arquivos/dossie7_d.htm>. Acesso em: 26 jul. 2012.

HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2002.

JUNG, Carl. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2009.

KOGURUMA, Paulo. Conflitos do imaginário: a reelaboração das práticas e crenças  afro-brasileiras na “Metrópole do café”, 1890-1920. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001.

MARCONDES FILHO, Ciro (org.). Dicionário da Comunicação. São Paulo: Paulus, 2009.

MARCONDES FILHO, Ciro. Para entender a comunicação: contatos antecipados com a nova teoria. São Paulo: Paulus, 2008.

MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das letras, 1996.

MOTTA, Luiz G. Notícias do fantástico, São Leopoldo/RS: Unisinos, 2006.

PEREIRA, José Carlos. O encantamento da sexta-feira santa: manifestações do catolicismo no folclore brasileiro. São Paulo: Annablume, 2005.

PIERUCCI, Antônio Flávio. A Magia. São Paulo: Publifolha, 2001.

______________________. O desencantamento do mundo: todos os passos de um conceito. São Paulo: Editora 34, 2003.

WULF, Christoph. Linguagem, imaginação e performatividade: novas perspectivas para a Antropologia Histórica. In: BAITELLO JR, Norval et al (org.). Os símbolos vivem mais que os homens: ensaios de comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 2006.

ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. Tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.

 



[1] Na obra “Os Jornalistas” de Honoré de Balzac, canard significa “pato” em francês, mas também é “boato” ou “pasquim”. Eram notícias que extraiam “penas” (dó, pesar ou repugnância) dos leitores (2004, página 52).

[2] Jornalista Dioclécio Luz.

[3] LUZ, Dioclécio. Roteiro mágico de Brasília, vol. I, Brasília: Codeplan, 1986; LUZ, Dioclécio. Roteiro mágico de Brasília, vol. II, Brasília: autor, 1989.

[4] Brasília, mistério e magia. Direção: Célio Calmon. Roteiro e reportagens: Dioclécio Luz. Produção Hórus Vídeo. 1992.

[5] Habernas, J. Pensamento pós-metafísico. Op. cit., página 240.

[6] CYRULNIK, Boris. Do Sexto Sentido – O Homem e o Encantamento do Mundo.  Lisboa: Instituto Piaget, 1999.

[7] CIRULNYK. B. Idem. p.247.

[8] Ibidem.

 

Autores: 

Gustavo de CastroProfessor na Faculdade de Comunicação/UnB, doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP, mestre em

Educação pela UFRN

Verônica Guimarães Brandão: Doutoranda no PPGCOM/Faculdade de Comunicação na Universidade de Brasília (UnB), mestre em Comunicação Social pela UnB

Dioclécio Luz: Jornalista, mestre em Comunicação no PPGCOM da Universidade de Brasília

 

LOGOS 38 Realidade Ficção. Vol.20, Nº 01, 1º semestre 2013

http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/view/7709/5573

 

O monstro, o cinema e o medo ao estranho

 

 

O MONSTRO, O CINEMA E O MEDO AO ESTRANHO [1]

 

Verônica Guimarães Brandão [2]

 

Resumo:

Revelamos comportamentos, conhecimentos, criamos imagens em movimento para transmitirmos medos, obsessões, fobias, costumes estranhos que, às vezes, revelam um mal-estar cultural imenso em nós. Há gerações e gerações, aprendemos a temer os monstros que nós mesmos engendramos. Criado a nossa barbárie e semelhança, o monstro é o que é a sociedade, quase como nós, por todos os lados, e na tela o monstro age conforme a sociedade o molda.

Palavras-chave: Monstro. Medo. Cinema. Horror. Psicanálise.

 

As representações das monstruosidades no campo cultural, nos diversos setores do conhecimento (ciências da religião, mitologia, filosofia, história, antropologia, psicologia, arte, comunicação, entre outras), têm como pressuposto a ordenação de um conjunto de estratégias utilizadas para suscitar um determinado conjunto de efeitos nos seus receptores. Em obras religiosas, a representação da monstruosidade é utilizada para manter a ordem, a moral, a organização interna através do horror; através do dualismo, separando aquilo que no concreto vem junto (bondade, maldade). Já na mitologia, a dualidade coloca “e”, onde o dualismo colocou “ou”: bem e mal, belo e feio, verdadeiro e falso, ordem e desordem, realidade e ficção. O engendramento de monstros começou na dualidade, pois os monstros; como descortina a filosofia, a psicologia, a antropologia, são reflexos do humano; são parte do homo sapiens (racional, realista), são seus demens (produtor de mitos, magias, fantasmas). O saber cultural se apoia na engenhosidade da unidualidade de um homem complexo, de um homem que tece seus pensamentos em devaneios, de um ser metafísico e físico que deseja construir monstros como remissão constante em um futuro inquietante e desconhecido.

    Transmitimos comportamentos, emoções, conhecimentos, que tentamos explicar racionalmente. Esquecemos, porém, que transmitimos medos, obsessões, fobias, costumes estranhos que, às vezes, revelam um mal-estar cultural imenso em nós. “O mundo”, escreveu o poeta Rainer Maria Rilke (1875- 1956), “é grande, mas em nós ele é profundo como o mar” [3].

Há gerações e gerações, aprendemos a temer os monstros. “O monstro, em sua irrupção, era considerado como signo anunciador e precursor de acontecimentos destinados, por decisão transcendente, a revolucionar a ordem do mundo e da História” (NAZÁRIO, 1998, p. 43). Vivemos e sentimos a dimensão trágica do encontro com a alteridade. O outro me é estranho, pois não é meu reflexo. O encontro deve ser inesperado, como o encontro de um monstro com um humano. “Se não esperas o inesperado, não o encontrarás” (HERÁCLITO apud MORIN, 2001, p. 50). Para Freud (1856-1939), em O mal-estar na cultura (2010), a maior fonte de nossos sofrimentos se encontra em nossos relacionamentos. Mas sem este outro, um inferno corporificado, não haveria mundo humano. Todo desejo nasce de uma falta, de um sofrimento. Se esperamos ansiosos por mais uma representação da monstruosidade, é porque sentimos falta de olhar curiosamente a alteridade, fato ou estado de ser outro; definição do sujeito em relação a outro.

O estranho é um não-eu, uma exterioridade absoluta; assim, ele não hesitará em me prejudicar, caso tenha oportunidade (FREUD, 1976, p. 131). Quando um estranho não nos prejudica, começamos, assim, a amá-lo. A perseguição movida pelos monstros é uma perseguição interior. Devemos amar o nosso próximo como a nós mesmo, pois é o outro que nos socorrerá no desamparo estrutural de nosso ser. As prostitutas, os loucos, os pobres, os marginalizados, os homossexuais, os ladrões, eram considerados (alguns ainda o são) monstros que deveriam ser repudiados. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), em O crepúsculo dos ídolos, afirma que “os antropólogos entre os criminalistas dizem que o criminoso típico é feio: monstrum in fronte, monstrum in animo [monstro na face, monstro na alma]” (2006, p. 07). Fomos educados a repudiar o que é diferente, feio. Porém, quando nos entendemos por seres pensantes, tomamos noção que as belezas singulares nunca estão livres da noção de escória e de impureza. O feio torna-se parte do belo, o feio existe ao lado do belo. “O belo tem apenas um tipo, o feio tem mil (...). Aquilo que chamamos de feio é o detalhe de um grande todo que nos escapa e que se harmoniza, não com o homem apenas, mas com a criação inteira” (HUGO, 1827 apud ECO, 2007, p. 281).

A monstruosidade não nós é estranha. Alguns nem são feios por defeitos da natureza, mas por desarmonia das feições. Sartre escreveu sobre sua infância em As Palavras (1964), narrando que o espelho lhe prestava grande auxílio, pois o escritor existencialista se encarregava de informar ao espelho que o pequeno Sartre era um monstro: “O espelho me ensinara o que eu sabia desde sempre: eu era horrivelmente natural. Nunca mais me refiz” (SARTRE, 1964 apud ECO, 2007, p. 300). 

Por qual motivo o monstro é útil? Porque é na sua fealdade que encontramos o prazer. “Para certos espíritos mais curiosos e entediados, o gozo da feiúra, provém de um sentimento ainda mais misterioso, que é a sede do desconhecido e gosto do horrível” (BAUDELAIRE, 1846 apud ECO, 2007, p. 352). E é esta sede do desconhecido que faz a representação da monstruosidade persistir e existir por séculos. Temos sede, mas também medo do desconhecido, medo do estranho[4], do monstro, do inquietante. Para H. P. Lovecraft, escritor norte-americano de fantasia e horror, “a emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido”. O que nos era exterior, que acontecia ao nosso redor, era assimilado pelos povos em formas de representações monstruosas[5]. Se haviam guerras, depressões, falências, conflitos, perseguições, lá estava o monstro representando nossos medos. Criado a nossa barbárie e semelhança, o mostro era o que era a sociedade, quase como nós, por todos os lados. Os monstros rememoram nossa animalidade, por isso nos fascinam. Nascem como corporificação de certo momento cultural de uma época [6], de um sentimento e de um lugar.

Por que sentimos medo dos monstros? Os seres humanos já foram “superprimatas num planeta minúsculo” (MENCKEN apud HOEBEL, 2006, p. 79), foram presas, mas com a curiosidade e o desenvolvimento cerebral [7] tornaram-se homo sapiens, seres pensantes. No período anterior à escrita[8], a natureza dominava as ações dos hominídeos. Feras famintas transformavam homens primitivos em carne[9], alimento. Passamos de antropóides dominados pelo instinto a seres humanos adaptáveis culturalmente. O desenvolvimento humano foi “biológico e cultural” (HOEBEL, 2006, p. 77). Tinham fome, caçavam. Tinham frio, esfolavam. Produzir fogo, produzir armas, aprimorar artigos de caça, pintar em rochas; arte rupestre, pintar o corpo e o rosto; celebrar, invocar ancestrais, amedrontar espíritos ruins, monstros, nossos medos.

 

A cultura está apinhada de animais que não tem equivalentes exatos na natureza. Uma fauna de monstros, prodígios e maravilhas imensa e de mentirinha serpenteiam e enxameia e assalta todas as artes, como se o mundo natural fosse de certa forma deficiente. É preciso perguntar: qual é o fim dessas criaturas imaginárias? Elas são realmente substitutas para animais comuns ou tem seus próprios propósitos? O que são elas, de onde vêm e o que fazem aqui? (...) Nosso medo noturno de monstros, provavelmente tem suas origens nos princípios da evolução de nossos ancestrais primatas, cujas tribos foram desbastadas por horrores cujas sombras continuam a elicitar nossos gritos de

macacos em teatros escuros. (SHEPARD, 1997, p. 275 apud QUAMMEN, 2007, p. 238).

 

A repugnância e o encantamento que os monstros exercem atravessam séculos. Eles são a própria representação dos medos e perigos presentes na experiência humana, em nosso processo evolutivo. Todos nós expurgamos nossos medos e, ás vezes, eles ganham forma iconográfica.

Somos, a todo o momento, bombardeados com imagens de monstros. Vampiros, Lobisomens, Zumbis, Bruxas, Titãs, e toda uma sorte de demônios que saem das sombras para dominar pessoas, casas e objetos. Desde a tenra infância, somos moralizados pela figura do monstro: boi da cara-preta, bicho-papão, monstro do armário, fantasma que mora debaixo da cama, homem do saco, saci. Todos estes foram citados em algum momento de nossas vidas, apenas para nos fazer dormir na hora estipulada pelos pais; comer verduras; tomar banho ou, somente, para nos amedrontar. Com o tempo, a figura do monstro foi perdendo lugar para a violência urbana. Meninos de rua, assassinos, pedófilos, pais que jogam filhos da janela do apartamento, ladrões e os noticiários que, a todo o momento, aterrorizam a sociedade. Em contraparte, as artes souberam aproveitar contextos vários, em diferentes épocas para, metaforicamente, criar monstros com singularidades humanas (e vice-versa).

 

Por medo do desconhecido construímos sociedades com muralhas e fronteiras, nostálgicos, contamos histórias para não esquecer sua pálida presença. As trevas, os seres monstruosos, os fantasmas, os cemitérios, a magia, os bosques impenetráveis e (a partir do século XVIII) as ruínas e os mistérios da ciência são os elementos principais das histórias de horror. Eles surgem assim que a noite cai: na Mesopotâmia, no Egito, na Índia, no Japão, na China, na Grécia. Em Roma, curiosamente, o horror se confunde com o que é proibido ou vulgar. Quando o pai de Sêneca pede ao escritor Albúcio Silo que enumere alguns temas “horríveis” (sordissima), este responde: “Rinocerontes, latrinas e esponjas, e prossegue: “animais domésticos, pessoas adúlteras, fontes de alimento, a morte e os jardins”. (MANGUEL, 2009, p. 09).

 

Por qual razão a cultura contemporânea reproduz figuras monstruosas com novas contextualizações e novas roupagens é nosso maior interesse; assim como entender: vampiros vegetarianos, lobisomens sem a carga animalesca, zumbis ágeis que cozinham o cérebro antes de saborear, medusas que entendem de moda, bruxas adolescentes que trabalham para se sustentar, sereias deprimidas e uma noiva cadáver que desiste do casamento. Hoje vamos aos cinemas encarar o sofrimento dos monstros para saber que, em algum momento, também estamos sós, sofrendo e, talvez, os monstros possam nos mostrar como agir em meio à truculência desse mundo tão volúvel.

 

[O espectador] vai para ver, sentir e se identificar. Durante aquele breve intervalo de tempo, é transportado para além das limitações de seu ambiente; passeia pelas ruas de Paris; vê o dia nascer com o caubói do faroeste; mergulha nas profundezas da terra com mineiros cobertos de cinzas, ou se lança ao mar com marinheiros e pescadores. Sente, além disso, a emoção de solidarizar-se com os pobres e necessitados... O artista cinematográfico é capaz de tocar cada uma das teclas do grande órgão da humanidade. (FITCH, 1910 apud STAM, 2006, p. 40).

 

O cinema de horror funciona como “catarse programada”, purga nossos medos em segurança. Para Luiz Nazário, em entrevista concedida a revista Superinteressante, “o monstro foi banalizado pela indústria cultural e deixou de (...) ser índice de transgressão, de porta-voz da diferença. O monstro já foi uma metáfora do outsider; hoje é um objeto de consumo” (NAZÁRIO, p. 2009).

No horror pós-moderno desintegram-se os valores, monstros e homens se confundem. Mas por que vamos ao cinema olhar os monstros? Às vezes somos incautos e, por isso, entramos na casa do diabo, assim como sentamos para ver um filme de horror e aguardamos a sua revelação. A espera, porém, demora, eterniza-se. Porque o monstruoso apenas se mostra quando (nos) olhamos no espelho, ou vemos um monstro humanizado na tela.

 

(...) também vamos ao cinema por outras razões: para confirmarmos (ou questionarmos) nossos preconceitos, para nos identificarmos com as personagens, para sentirmos emoções e “efeitos subjetivos” intensos, para imaginarmos uma outra vida, para experimentarmos prazeres cinestésicos, para sentirmos glamour, erotismo, carinho e paixão. (STAM, 2006, p. 267).

 

Somos seres desviantes de qualquer norma convencionada. Segundo a teologia cristã, começamos com o pecado e não paramos de pecar. Fomos e somos monstros. A simples tentativa de eliminar um monstro não resolve qualquer problema.

A estranheza do que não é familiar é a chave para entender tudo aquilo que nos assusta e também nos fascina. Stephenie Meyer, autora da saga Crepúsculo (2005), no qual vampiros vegetarianos e lobisomens carentes passaram de monstros/vilões aos queridinhos das adolescentes, cita por qual motivo os monstros deixaram de ser perigosos sem perder o charme sobrenatural: “Eles são atraentes porque fazem aflorar aspectos ocultos do desejo e do instinto. São fascinantes porque geram medo e desejo a um só tempo” [10]. Para o repórter da revista Época, Danilo Venticinque, a história de amor entre vampiros, lobisomens e humanos parece não desagradar os pais. “Para quem via as filhas se descabelar por astros pop imprevisíveis e atores rebeldes, os monstros também viraram heróis” (2009).

Filmes de horror são aqueles que pretendem provocar a sensação de medo, sentimento que proporciona um estado de alerta. As histórias de horror/terror sempre fizeram parte do imaginário coletivo. Segundo o minidicionário da língua portuguesa, as definições de monstro e monstruoso são:

 

Monstro (sm). 1. Corpo organizado que apresenta, parcial ou totalmente, conformação anômala. 2. Ser, mitológico ou lendário, de conformação extravagante. 3. Individuo que causa pasmo. 4. Pessoa cruel ou horrenda.

Monstruoso (ô) adj. 1. Que tem conformação de monstro. 2. Enorme, extraordinário.  3. Que assombra pela grande perversidade. 4. Feio em demasia. (FERREIRA, 2009, p. 470).

 

 O medo, a fonte nos filmes de terror e horror, pode provocar reações físicas, como: descarga de adrenalina, aceleração cardíaca, tremor, atenção exagerada a tudo que ocorre ao redor, depressão, pânico, entre outros sintomas. Mas o medo proporcionado por um filme de terror é o mesmo proporcionado por um filme de horror?

 

Duas palavras que parecem sinônimas, mas não são, porque, linguisticamente, não se justifica a existência de dois termos para um conceito idêntico [...]. Falamos em “filme de terror”, mas seria mais apropriado “filme de horror”. A diferença entre essas duas palavras está no sujeito que, ao assistir ao filme, se horroriza [...]. O verbo horrorizar normalmente é reflexivo: horrorizar-se. Para funcionar, o verbo horrorizar necessita da colaboração do horrorizado. No caso de horrorizar-se, eu me horrorizo na medida em que estou suscetível a sentir o horror. O terror é outra história. Dificilmente alguém diz “aterrorizei-me vendo aquelas imagens”, pois o terror é produzido por outro sobre mim, e quem aterroriza (e isso é horrível e terrível!) não está aterrorizado nem horrorizado consigo mesmo. O terror vem de fora. O horror vem de dentro. Horror é um sentimento de receio, de medo, de pavor perante algo ameaçador, odioso e perverso. Em sua origem latina, horrere significava ficar com os cabelos em pé. O horripilante, no horror, é essa sensação de um frio no estômago, na espinha, o suor frio, o frio da morte. (PERISSÉ, 2001).

 

Conforme Carroll (1999, p. 13), “o horror tornou-se um artigo básico em meio às formas artísticas contemporâneas, populares ou não”. O cinema de horror sempre abusou do estado de alerta para fascinar suas vítimas, para avisá-las que alguém sabe o que foi feito no verão passado, para visitá-las nos pesadelos ou em uma sexta-feira (treze), para avisar por telefone que alguém quer vingança, ou simplesmente, para que você (vítima/público) aperte o braço da pessoa sentada ao lado.

O cinema de horror forma uma ligação entre nossa fantasia sobre o medo e nossos verdadeiros medos. Os filmes de terror nos deixam desconfortáveis e quanto mais desconfortáveis, mais fascinados. O cinema de horror tem necessário papel de purgar nossos medos e atirá-los fora, de elevar a produção de adrenalina, dando a entender que seriamos capazes de lutar pela vida. O cinema horror é sim, a favor da vida.

 

O gênero horror tem a capacidade de provocar certo afeto (affect) [...]. Os membros do gênero horror serão identificados como narrativas e/ou imagens (no caso das belas-artes, do cinema etc.) que têm como base provocar afeto de horror no público. (CARROLL, 1999, p. 28).

 

O horror analisado aqui é o “horror artístico”. Uma forma de “gênero que atravessa várias formas artísticas e vários tipos de mídia” (CARROLL, 1999, p. 27). O horror como elemento artístico remonta à Idade Média, quando proliferou a meditação sobre a morte perante uma caveira, despertando pensamentos moralizadores sobre a variedade da curta existência terrestre (SOUSA, 1979).

O horror, a fantasia, o medo, não se contentaram em ficar apenas na literatura. No campo audiovisual, tais expressões ganharam representação cinematográfica, ganharam olhos e corações em salas escuras. Figuras como vampiros, zumbis, marcianos, lobisomens, bruxas, demônios, seres criados em laboratórios, feras gigantescas, pessoas deformadas e os mais diversos monstros, passaram a habitar o imaginário social.

Utilizando um cinematógrafo (máquina de filmar e projetor de cinema), inventado em 1892 por Lèon Bouly, os irmãos Louis e Auguste Lumière deram o primeiro susto no público (em formação) da sétima arte. Em 28 de setembro de 1895, na comuna francesa de La Ciotat, sudeste da França, surge à provável primeira sala de cinema do mundo. Mas foi em Paris, no dia 28 de dezembro de 1895, que os irmãos Lumière, no subterrâneo do Grand Café, realizaram a primeira exibição pública e paga de cinema, com uma série de dez filmes, com duração de 40 a 50 segundos cada, dentre os quais estava o filme que daria o primeiro susto no público – “A chegada do trem à Estação Ciotat”. Nesta sessão estava presente aquele que é considerado “o pai dos efeitos especiais” − Georges Méliès. Criador de mundos fantásticos, Méliès foi um dos primeiros cineastas a dar vida aos primeiros monstros do cinema. Mas ao contrário dos irmãos Lumiére, Méliès não assustou o grande público, pelo contrário, seus monstros eram mais cômicos que horripilantes.

O cinema, maior expoente da arte que se estabeleceu e marcou o século XX, começou com sustos, correria e cadeiras derrubadas na plateia. O homem da sétima arte viu que aquilo era interessante e resolveu explorar o reino desconfortável do medo, este sentimento que causa fascínio por ser uma questão cultural que inspira apreensão, pois estamos constantemente diante da morte ou perdidos em nossos pesadelos.

 

[...] O homem sempre abominou a morte e, provavelmente, sempre a repelirá. Do ponto de vista psiquiátrico, isto é bastante compreensível e talvez se explique melhor pela noção básica de que, em nosso inconsciente a morte nunca é possível quando se trata de nós mesmos. É inconcebível para o inconsciente imaginar um fim real para nossa vida na terra e, se a vida tiver um fim, este será atribuído a uma intervenção maligna fora de nosso alcance... A morte em si está ligada a uma ação má, a um acontecimento medonho, a algo que em si clama por recompensa ou castigo. (KUBLER-ROSS, 1994, p. 13).

 

Parece estranho que quanto mais desconfortáveis pareçamos diante de um filme de horror/terror, melhor será nossa opinião sobre aquele filme. Mas o coração acelerado não é sinônimo de filme de terror/horror, pois com o passar do século XX e começo do século XXI, observaremos uma mudança de comportamento, de recepção, de afeto do público, diante de um filme de horror, com um monstro na tela. O que era criado para assustar, não assusta mais. Os monstros, conforme veremos, não serão mais seres disformes, anormais, estrangeiros, mal quistos e mal vistos, mas tornar-se-ão queridinhos do cinema.

O primeiro filme do gênero horror feito, segundo a Enciclopédia dos Monstros, foi L´ Inferno (1911). Foi a primeira adaptação para o cinema da obra A Divina Comédia de Dante Alighiere. Os cineastas Francesco Bertolini, Adolfo Padovan e Giuseppe De Liguoro realizaram uma jornada pela obra de Dante e gravuras de Gustave Doré[11], que fez ilustrações sobre A Divina Comédia de 1861 a 1868.

Depois do susto proporcionado pelos irmãos Lumière, dos monstros de Méliès e dos 71 minutos de pavor em movimento no filme L´Inferno, o expressionismo alemão surge em filmes de Robert Wienne com sua obra Das Cabinet des Dr. Caligari (1919) e F.W. Murnau com Nosferatu (1922). As obras de Wienne, Murnau, a gótica fotografia e atmosfera sobrenatural influenciaram/influenciam o cinema de horror até hoje. O medo proporcionado pelos monstros do expressionismo alemão era repleto de uma carga psicossocial. Com a Europa em período bélico, a Grande Guerra (1914-1918) apresenta a fome, a morte, desconfiança, violência, solidão nas trincheiras (“terra de ninguém”) e é neste contexto horrendo que os filmes alemães ganham maior expressão, pois mostravam “por meio de imagens do real, conceitos abstratos da alma e do espírito”, terreno fértil para o “conceito de expressionismo”, ligado à ideia que Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche desenvolveram sobre “o consciente e inconsciente humano” (GONÇALO, 2008, p.163-164). Os filmes de horror revelam que o horror é visionário, pois capturam de maneira consistente nossos medos e ansiedades coletivas. Muitos filmes de horror dão a entender que o inimigo vem de dentro, que está entre nós, não do desconhecido, mas de nossa mente.

 

Aqui está a verdade final sobre os filmes de horror. Eles não amam a morte, como alguns têm proposto, eles amam a vida. Eles não celebram a deformidade, mas, habitando a deformidade, cantam a saúde e a energia. Eles são os purificadores da mente, tirando não rancor, mas ansiedade. (KING, 2003, p. 259).

 

Os monstros somos nós do outro lado da tela. Seres que amam como nós, mas têm medo de não serem correspondidos, pois sabem de antemão que não serão aceitos e que a verdadeira felicidade é repentina e, portanto, rara. “Nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos” (GOETHE, 1810 apud FREUD, 2010, p. 95).

Enfrentar monstros é superar medos. É enfrentar a esfinge e deixá-la muda. Segundo Lutz Müller as “figuras amedrontadoras da fantasia humana” (demônios, diabos, bruxas, divindades más, figuras horrorosas e monstros) causam medos e sensações de perigo à personalidade humana. Os medos representados em todos os tempos e em todas as culturas são arquetípicos, “são experiências universais básicas que determinam a vivência e o comportamento do indivíduo, tanto no presente como no futuro” (1997, p. 93).

 

Se no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma realidade diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é também um mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de confundir certezas, pois não se trata mais de outros povos, outras línguas, outros costumes. O outro hoje é próximo e familiar, mas não necessariamente é nosso conhecido (GUSMÃO, 1999, p. 44-45).

 

A monstruosidade (ou o monstro) é a metáfora que usamos para referir o mal transposto para o reino estético, das sensibilidades e emoções. Os homens precisam de monstros para tornar-se mais humano, para pensar sua própria humanidade. Pedimos aos monstros que nos inquietem, que nos provoquem vertigens, que abalem nossas certezas (GIL, 2006).  Amamos os monstros não porque tenham se tornado bons, mas justamente por causa da feiura que nunca perderam. “Da Perfeição da Vida. Por que prender a vida em conceitos e normas? O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer... Tudo, afinal, são formas. E não degraus do Ser!” (QUINTANA, 2005, p. 34). Se o monstro se reconhece em toda sua horripilância existencial e mesmo assim é extremamente bom, nós humanos temos que os admirar e tentar sermos amigos de seres diferentes.

 

George Romero, diretor de A noite dos mortos vivos e outros filmes de terror, em uma declaração de poética, enquanto se detém sobre a tocante ternura de Frankenstein, King Kong ou Godzilla, recorda que seus zumbis têm a pele rugosa e putrefaciante, dentes e unhas negras, mas são indivíduos com paixões e exigências como as nossas. E acrescenta: “Nos meus filmes sobre zumbis, os mortos que voltam à vida representam uma espécie de revolução, uma reviravolta radical num mundo que muitos dos personagens humanos não conseguem entender, preferindo marcar os mortos vivos como o Inimigo, quando na realidade eles são nós. Utilizo o sangue em toda sua horrenda magnificência para que o público entenda que meus filmes são antes uma crônica sociopolítica dos tempos do que (...) aventuras com molho de terror” (ECO, 2007, p. 422).

 

O cinema é destinado a contar histórias, por ser uma arte narrativa, usada para “mostrar um objeto de forma que ele seja reconhecido, é um ato de ostentação que implica que se quer dizer algo a respeito desse objeto” (AUMONT, 1995, p. 90).

Como consequência da intimidade por aí constituída, os monstros são a sinestesia em nós, simultaneamente a tranquilidade e a inquietude, a amizade e a angústia, a solidão, a compaixão, o sofrimento. Afinal, nada mais assusta ao público, já anestesiado, após a avalanche visual que fez com que os monstros deixassem de provocar medo.

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

AUMONT, Jacques et al. A estética do filme. São Paulo: Papirus Editora, 1995.

CAMPBELL, Joseph. Para viver os mitos. Tradução Anita Moraes. São Paulo: Cultrix, 2006.

CARROLL, Noël.  A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Tradução: Roberto Leal Ferreira. Campinas, SP: Papirus, 1999.

ECO, Umberto. História da feiúra. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

FREUD, Sigmund. O estranho. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

_______________. O mal estar na cultura. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

GIL, José. Monstros. Tradução José Luís Luna. Lisboa: Relógio D’ Água, 2006.

GUSMÃO, N. M. M. (1999). Linguagem, cultura e alteridade: imagens do outro. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), v. 107, 1999.

KING, Stephen. Dança Macabra. Ed. Atual. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.

KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer.  São Paulo: Martins Fontes, 1994.

MANGUEAL, Alberto. Contos de horror do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand. Brasil, 2001.

MÜLLER, Lutz. O herói - Todos nascemos para ser heróis. São Paulo: Cultrix, 1997.

NAZÁRIO, Luiz. Da Natureza dos Monstros. SP: Arte e Ciência. 1998.p.281.

______________. Cinema de Terror. Revista Superinteressante. São Paulo, 2009. Entrevista concedida a Juan Weik em 28 fev. 2009.

 ______________. Sobre Monstros. Revista Superinteressante. São Paulo, 2009. Entrevista concedida a Juan Weik em 28 fev. 2009.

NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

PERISSÉ, Gabriel. O que há de horrível no terrorismo. 2001. Disponível em: < http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=48&rv=Colunistas >. Acesso em: 01 nov. 2009.

QUAMMEN, David. Monstro de Deus: feras predadoras: história, ciência e mito. Tradução Maria Guimarães. São Paulo: Companhia das letras, 2007.

QUINTANA, Mário. Espelho Mágico. São Paulo: Globo, 2005.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução: Fernando Mascarello. Campinas, São Paulo: Papirus, 2006.

SOUSA, Maria Leonor Machado de. O´h orro´r na Literatura Portuguesa. 1979. Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/L/literatura_horror.htm>. Acesso em: 01 nov. 2009.

VENTICINQUE, Danilo. Por que elas amam tanto os monstros? Revista Época, São Paulo, n. 600, 16 nov. 2009.

 

 



[1] O texto O monstro, o cinema e o medo ao estranho foi publicado na 12º edição do dossiê da Revista Universitária do Audiovisual (RUA), que aborda o tema Cinema e Psicanálise, v. 12, p. 116/ nº 48-126, 2012. http://www.rua.ufscar.br/dossie-12-cinema-e-psicanalise/

[2] Produtora Audiovisual pela Universidade Estadual de Goiás. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação pela Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Linha de Imagem e Som. Doutoranda pela UnB, Linha de Imagem, Som e Escrita. Contato: vguibrasil@gmail.com

 

 

[3]  Rilke apud Campbell, 2006, p.191.

[4] Freud, em O mal estar na cultura, usa a palavra alemã Unheimlich (estranho, sinistro) como sendo algo procedente da psique humana do indivíduo e que é, segundo definição do filósofo idealista Schelling e aprovada por Freud, “tudo aquilo que deveria ter permanecido em segredo e oculto veio à luz” (2010, p. 25).

[5] Tais representações, possivelmente, seriam criadas e transmitidas oralmente, ritualmente (incorporação em seres inumanos), em forma de desenhos em cavernas, pinturas, esculturas, literaturas, fotografias, representações imagéticas, entre outras.

[6] Compartilho a definição de Jeffrey Jerome Cohen nas notas de seu artigo A cultura dos monstros: sete teses (2000, p. 55) sobre a palavra Zeitgeist usada como ‘fantasma do tempo’, espírito incorpóreo que estranhamente incorpora um “lugar” (ou série de lugares, como a encruzilhada que é um ponto de movimento em direção a um incerto outro lugar). Diferentes culturas têm diferentes Zeitgeist, como têm diferentes eras e diferentes localizações geográficas.

[7] O cientista britânico Robert Winston (1940) realizou pesquisa, em sua obra Instinto Humano, sobre a curiosidade humana e o cérebro em desenvolvimento (2006, p. 78-115).

[8] Período Pré-Histórico, aproximadamente 4000 a. C.. Tomemos como ponto de partida a Era Terciária (50 milhões de anos) e o aparecimento dos hominídeos (Australopithecus).

[9]  Na contracapa de Monstro de Deus: feras predadoras: história, ciência e mito (2007), do cientista norte-americano David Quammen (1948), encontramos a seguinte afirmação: “Uma coisa é estar morto, outra coisa é ser transformado em carne. A idéia de sermos devorados evoca em nós terror profundo”.

[10] MEYER apud VENTICINQUE: 2009.

[11] Paul Gustave Doré (1832-1883) foi um pintor, desenhista e o mais produtivo e bem-sucedido ilustrador francês de livros de meados do século XIX, com forte inclinação para a fantasia.

Três imagens de morte: diálogos com Marat

Uma imagem, três artistas. Jacques-Louis David (Paris, 1748-1825), pintor neoclássico[1] que, utilizando uma pintura descritiva de forte realismo ao conceber seus retratos, oferece a função da arte como propaganda artística (arte com fins políticos, engajada) ao exaltar Jean-Paul Marat (Suíça, 1743-1793) morto como símbolo de um homem novo, saído da Revolução Francesa. Retrato que se ergue acima da esfera da representação e chega ao domínio da tragédia universal. Daniela Edburg (Texas, 1975), fotógrafa norte-americana criada no México, que cotidianamente lida com a temática da vaidade, da banalidade da vida, das frivolidades consumistas, do efêmero, do glamour, do humor, da moda, da pintura, do cinema e da morte em suas fotografias, fez um remake [2] baseado na obra “Morte de Marat” [3], de Jacques-Louis David. Vicente José de Oliveira Muniz (São Paulo, 1961) artista plástico e fotógrafo brasileiro radicado em Nova Iorque, foi premiado no Festival Sundace (2010) e indicado ao Óscar de melhor documentário em 2011. O documentário “Lixo Extraordinário” (2009), dos diretores brasileiros Karen Harley e João Jardim e da diretora britânica Lucy Walker, mostra o trabalho de Vik Muniz com alguns recolhedores [4] de materiais recicláveis em um dos maiores aterros sanitários do mundo, no Jardim Gramacho, bairro da periferia de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Vik Muniz faz uma releitura[5] da “Morte de Marat”, usando material reciclável, e Sebastião Carlos dos Santos (Tião) [6] posando como Marat. Mas quem foi Marat, esta figura tão recriada por outros artistas? Qual a importância da imago mortis de Marat para a humanidade? Qual o elo que podemos estabelecer entre as obras, que parecem variar sobre o mesmo tema ─ Marat morto ─ de David, Edburg e Muniz? Para construir um saber sobre as releituras de Edburg e Muniz, partiremos de um “não saber”, de dúvidas, de incertezas, de inquietações e de curiosidades que promoverão a busca e a construção do Marat vivo até o Marat morto (Castro e Silva 2005: 75).

 

 

1.  Marat por David

Uma face usada contra a extravagância, a vaidade, a futilidade. O homem considerado “o amigo do povo” (L´Ami du peuple), pelos Montagnards (Montanheses) e Jacobinos; favoráveis à República: mas para os Girondinos e sua fiel partidária Charlotte Corday, moradora da comuna francesa de Caen, Marat era the inhuman monster (Bax 1901: 330, tradução nossa). Jean-Paul Marat tornou-se, nas mãos do pintor Jacques-Louis David, uma das mais emblemáticas imagens de uma Revolução que mudaria a história de um país, considerada como o acontecimento que deu início à Idade Contemporânea ─ A Revolução Francesa (1789 d.C.) (Castro 2001: 21). Por isso, é necessário entender o acontecimento da morte de Marat (o homem) e a criação de Marat (a lenda).

O repúdio dos revolucionários às extravagâncias da monarquia francesa de Luiz XVI e Maria Antonieta, em meio à miséria na qual o povo vivia, fez nascer a figura intrigante do revolucionário panfletário e jornalista, Marat. Discorrer sobre a idéia do extraordinário (o poder do indivíduo, o poder da imagem na crua realidade do momento) diante do ordinário (a vaidade, o uso político da imagem, a futilidade dos fatos) se faz necessário. O meio muda. Da pintura para a fotografia e para o documentário houve mudança de tempo e espaço, mas a mensagem que a obra neoclássica de David nos deixa é a força da representação da imagem em diferentes contextos, sendo esta representação um ato deliberado de propaganda e uma crença apaixonada pelo nascimento da obra em contextos significantes: Revolução Francesa, um banheiro feminino em momento de consumição ou o insustentável aterro sanitário carioca. O que é possível observar nas três obras? A crítica aos excessos. Seja o excesso da monarquia francesa, os excessos acusatórios de Marat, o descomedimento feminino perante o mundo consumista, o sobejo de lixo que produzimos.

Vivemos em plena “era do vazio”, segundo Gilles Lipovetsky.Desejamos em demasia, provavelmente por não saber realmente o que desejamos, e sentimos um enorme vazio em nosso SER. “Quanto mais a cidade desenvolve as possibilidades de encontros, mais os indivíduos se sentem sós; quanto mais as relações se tornam livres das antigas restrições, mais rara se torna a possibilidade de conhecer uma relação intensa. “Por todo lado há solidão, vazio, dificuldade de sentir, de ser transportado para fora de si mesmo.” (Lipovetsky 2005: 57-58).

   Encontramos prazer em comprar imagens de mortos: quadros, fotos, medalhinhas, bustos, entre outros artigos que dão vida a imagens de morte, somente para aplacar nossa solidão, rememorar nosso passado, alimentar nossa imaginação. “Agora nós já discutimos a imaginação no tratado sobre a Alma e então nós concluímos que o pensamento é impossível sem uma imagem”, mesmo imagens de mortes/mortos. (Aristóteles apud Gardner 2003: 341). Era esperado, pelos artistas e revolucionários, que qualquer bom cidadão francês usasse algumas lembranças do “amigo do povo”. O busto de Marat foi destaque em cada local de reunião pública, seu retrato pendurado no quarto de cada cidadão pobre.  Estatuetas estavam expostas em reuniões políticas, nas ruas e em locais públicos, após a morte de Marat. A Rue des Cordeliers foi rebatizada de Rue de Marat. Logo após o funeral, Montmartre (o conhecido bairro boêmio de Paris) era também chamado de Mont Marat. Mulheres batizavam de Marat seus filhos. Até um evangelho foi cogitado em homenagem a Marat. O pintor David, segundo promessa feita aos jacobinos, fez uma obra de exaltação ao amigo morto, uma obra para mostrar respeito e a saudade do povo pobre que Marat tentou ajudar. “Assim, pintada, ou esculpida, a Imagem é filha da saudade” (Debray 1993: 38). A tragédia, agora na boca de todos, tornou-se um tema favorito da representação teatral. Durante semanas, a morte de Marat foi exibida no palco de todos os principais teatros de Paris. As festas e desfiles em sua memória continuaram por toda a França revolucionária durante semanas e, até, meses. Ao mesmo tempo, duas fotos de Marat pintadas por David foram expostas no hall da Convenção do Panteão de Paris (Bax 1901: 25-30, tradução nossa).

O homem é um ser capaz de se ultrapassar a si mesmo, de se transcender, de reinar em outro lugar. Durante todo o verão e o outono de 1793, Marat morto foi divinizado. Tudo o que foi associado com o ilustre Marat morto adquiriu o caráter de uma relíquia sagrada e inestimável (Bax 1901: 328, tradução nossa). Marat, com ajuda dos pincéis de David, passou a reinar na subjetividade, no imaginário estético, se alimentando nos mitos.  “O imaginário estético é, como todo imaginário, o reino das necessidades e das aspirações do homem, encarnadas e situadas no quadro de uma ficção” (Morin 1997: 120).

 

 

2.  David tomou os pincéis e vingou Marat

Jacques-Louis David foi o “artista oficial” do Governo Revolucionário. A França revolucionária sabia a importância da arte para elevar a luta. Para Hauser, com a Revolução a arte “passou a ser uma confissão de fé política”, não como “mero ornamento da estrutura social”, mas como “parte integrante de seus alicerces” (1998: 645). O governo passou, então, a dar um maior valor à arte como instrumento de propaganda. Com a Revolução, as pessoas acreditavam participarem de um tempo de atos heróicos, rememorando os atos heróicos gregos e romanos. “Declara-se agora que a arte não deve ser um passatempo supérfluo dirigido exclusivamente aos sentidos, privilégio dos ricos e ociosos, mas que deve ensinar e aperfeiçoar, estimular à ação e estabelecer um exemplo. Deve ser pura, verdadeira, inspirada e inspiradora, contribuir para a felicidade do público em geral e tornar-se patrimônio da nação inteira”. (Hauser loc. cit.).

David, recomendado pelo Clube dos Jacobinos [7], visita o amigo Jean-Paul Marat, na rue des Cordeliers, porta de número 30, no dia 12 de julho de 1793. David, que havia ido visitar o amigo jornalista um dia antes, guarda em sua memória a imagem de um homem com corpo franzino, exalando patriotismo e doença de pele pelos poros. Marat sofria de “psoríase” [8]. A impressão que o pintor David teve de Marat seria representada no quadro do morto Marat: “Encontrei-o numa pose impressionante. Junto a ele encontrava-se um bloco de madeira sobre o qual havia papel e tinta. Estendendo-se para fora da banheira, sua mão escrevia seus últimos pensamentos para o bem do povo... Pensei que seria interessante mostrá-lo naquela postura em que o encontrei”. (Friedlaender 2001: 44).

Marat era médico, filósofo, político ferrenho, Deputado da Convenção e cientista, no entanto, era mais conhecido como jornalista radical da Revolução Francesa. Marat insuflava a multidão, através de seu jornal L´Ami du peuple, contra os excessos cometidos pelos mais influentes e poderosos grupos na França, incluindo a Assembléia Constituinte, os ministros, girondinos e a corte de Louis XVI. Cabeças foram cortadas pela afiada lâmina da guilhotina. Segundo Belfort Bax (1901:145, tradução nossa), Marat citava em seu jornal que os “inimigos da Revolução”, “inimigos da liberdade”, eram “inimigos do povo”. Por causa do seu jornal, da sua pena acusatória e poder de sugestão do povo contra os girondinos, pessoas (influentes ou não) foram guilhotinadas e Marat acabou sendo assassinado em 13 de julho de 1793, pela simpatizante girondina Marie-Anne Charlotte Corday d'Armont (Normandia, 1768-1793). Charlotte Corday preferiu “matar um homem para salvar cem mil” (Bax; 1901:32, tradução nossa). E este único homem foi Marat.

Se o jornalista era ou não um monstro, isso não interfere na busca por um meio imagético[9] comum entre os três artistas. É interessante analisar o uso da imagem da morte do jornalista para a história.  Marat, como sabemos pelos relatos históricos, estava confinado em seu quarto sofrendo com problemas pulmonares, excitação nervosa, beirando, às vezes, a febre cerebral, além de sua doença inflamatória crônica da pele. Ele procurou um alívio temporário de sua condição constrangedora, vestindo um grande lenço embebido em vinagre envolto em suas latejantes têmporas, e o uso contínuo de água quente em banhos de assento. Marat foi assassinado em seu banho terapêutico por uma jovem que lhe pedia ajuda contra opressores na cidade de Caen.  Charlotte Corday se aproveitou da fragilidade, do momento particular (banho terapêutico) do jornalista, de sua vontade de ajudar ao próximo, de sua falta de proteção contra os inimigos e o apunhalou no peito, perfurando o pulmão direito, com um cutelo com punho de ébano[10] que tirou do espartilho. A arma branca estava em um estojo de couro e havia sido comprada por quarenta soldos. Charlotte foi guilhotinada no dia 17 de julho de 1793.

 Pelas mãos de David, Marat foi vingado e pintado como um mártir. Para Gombrich (1999: 382), David pintou Marat não como ele morreu, mas como um mártir que morrera por uma nobre causa. Quando vivo, por motivo de agravamento da doença, Marat escrevia o manifesto “Para os amigos franceses da lei e da paz” em sua residência na Rue des Cordelies. Marat costumava escrever durante o banho e a banheira tinha uma pequena escrivaninha adaptada.  A figura de Marat assassinado é uma figura de contemplação, uma imagem que acompanha uma narração. É uma obra de “nobre simplicidade e calma grandeza”, citando Winckelmann (Stendal, 1717-1768), historiador de arte e arqueólogo alemão (apud Hauser 1998: 639).  A obra “Marat assassiné” (Jacques-Louis DAVID: Marat assassine. 1793. Museu de Bruxelas) ganhou o mundo e ganha releituras até hoje.

A cena simples da morte de Marat não se prestava a tema de um quadro do pintor neoclássico[11]. Porém, David reverteu a situação e fez uma obra heróica, mas com “detalhes concretos de um registro policial”.  Marat foi comparado a Cristo. Este morreu pelo que falou (discurso religioso), Marat morreu pelo que escreveu (discurso político). David fez de sua obra em honra a Marat ─ uma verdadeira “Pietà da Revolução” [12]. David e os revolucionários instauraram o “culto” ao jornalista, exemplificado na inscrição “A Marat” presente na obra (no caixote/mesa).  Esta inscrição revela que a figura de Marat rompeu com o efêmero e foi incluída, graças a David, na eternidade. O corpo de Marat foi embalsamado. Seu funeral durou 5 horas. David foi o “marechal das exéquias” (Bax 1901: 312, tradução nossa). Ficou decidido, entre os integrantes e amigos de Marat, que no dia 10 de agosto, todos os cidadãos usariam uma faixa creme no braço, homenageando Marat.

Não é o herói morto que choca, mas a carne morta (informação verbal) [13], uma carne que David resolveu embelezar e dar um ar clássico, desprezando detalhes que não eram essenciais ao efeito principal, almejando a simplicidade. Segundo Régis Debray, filósofo, jornalista e professor francês, “a beleza é sempre um terror domesticado” (1993: 36-37). David idealizou Marat como um belo santo, mas sabemos que na realidade, este era um político de aspecto particularmente desagradável, devido à sua doença. “Marat assassiné”, em certos momentos, deixava de ser uma pintura, para parecer uma menção propagandística.

 

3.  Edburg, Marat e a morte por consumição[14] na fotografia

 

 Daniela Edburg (1975), uma fotógrafa nascida em Houston, mas que cresceu em San Miguel de Allende. Estudou artes plásticas na Academia de San Carlos, na Cidade do México e, atualmente vive e trabalha no México.  Edburg já expôs no Brasil, na China, no Chile, na Espanha, na Argentina, nos Estados Unidos, na Rússia, entre outros países. Em sua série fotográfica intitulada “Drop Dead Gorgeous” (2001) [15], Edburg nos revela, por meio de uma entrevista concedida ao jornal The Morning News, sua ligação com Jacques-Louis David e a obra “Morte de Marat”.

Eu comecei esta série em 2001, para minha tese da escola de arte. Eu pintava na época e queria fazer uma série de remakes dos meus quadros favoritos. Eu planejei adicionar um elemento [que seria] muito fora do contexto. A primeira tentativa foi “Morte por Shampoo”, lembrando a “Morte de Marat”, por Louis-David. Mas eu não tinha a habilidade para fazer uma reprodução neoclássica. Então, eu decidi fazer [as reproduções] com fotografia e isto modificou o meu tema de tese sobre o relacionamento entre o glamour e a morte. O meio em si tem um efeito glamourizador e através da cor, composição e humor você pode criar a ilusão de que algo é esteticamente agradável quando, na realidade, poderia ser horrível ou brutal.  (PASULKA; 2006, tradução nossa)

Edburg tem como inspirações para suas fotografias a arte, o folclore mexicano e os filmes; a vaidade feminina e os produtos de beleza; as guloseimas engorduradas, açucaradas, que liberam endorfina. Tais inspirações revelam a buscar por prazer, a banalidade da vida, as frivolidades consumistas, o efêmero, o irônico, o fetiche, o humor, a moda, a morte. Toda a série Drop Dead Gorgeous revela um tipo de morte causada por algo que deveria dar a sensação de prazer, mas o consumo sem moderação levou à morte as personagens das fotos (mulheres amigas de Edbug).  O humor nas fotos de Edburg é resultado de um procedimento de transposição, no qual se obtém efeito cômico transportando para outro tom a expressão natural de uma ideia. (Bergson 2001).

Daniela representa, em suas fotos, com humor e ironia, mulheres escravas de seus vícios. Os conceitos mudam e tudo é relativo. Só nos resta correr contra o tempo e fazer parte da massa agitada, mas como não ter medo em um mundo onde as nossas convicções, a cada dia, se tornam mais líquidas diante da solidez da insegurança, da ausência de ética, do consumismo desenfreado, do radicalismo religioso, da falta de tempo. Inventamos a alimentação rápida (fast-food), buscamos a beleza das modelos e esquecemos que cada humano tem seu biótipo. Estamos cada vez mais frustrados e saciamos nossos desejos de várias formas e, às vezes, perdemos o controle e sentimos culpa. Este é o cenário no qual as fotos de Daniela Edburg melhor se encaixam. Cenários de íntima luxúria, com objetos sedutores e prazerosos para a vida cotidiana. Para a pós-modernidade, em arte, tudo se mescla, tudo (de algum modo) se copia. Não chega a ser plágio, mas intervenção, releitura. Não existe a criação a partir do nada, não há a angústia da influência, pois somos todos influenciados. Em suas fotos, Edburg recria um mundo, o mundo dos excessos consumistas. Assim, também o fez Marat em seu tempo ao criticar a extravagância da aristocracia francesa, com comidas, bebidas e roupas, perante a população esfomeada. “A fotografia é concebida como criação dramática e cenográfica, ou como mise-en-scène, na qual a fotógrafa interpreta, ao mesmo tempo, os papéis de diretora, dramaturga, desenhista de cenários (...)”. (Machado 2001: 134).  Edburg faz uma irônica e humorística releitura da “Morte de Marat” (figura 2).

Na figura 2 (Daniela EDBURG: Death by Shampoo, 2001), temos uma mulher que, provavelmente, morreu pelo uso demasiado de produtos de beleza. A sombra foi manipulada virtualmente, segundo a própria Edburg, para remeter à pintura de David. Quando a morte perde sua eficácia simbólica, seu efeito de choque, sua radicalidade sobre a sobrevivência cotidiana, toda a cultura perde, ao mesmo tempo, o componente trágico (a seriedade). A banalização da morte evoca o comportamento irônico humorista, cínico, que se vê em todos os espaços outrora tidos como sérios (jornalismo, política, ciência). (Marcondes Filho 1991: 51).

David usou a imagem do homem que combateu os excessos da monarquia francesa, a qual cometeu outros tantos excessos (mortes por guilhotina, acusações exarcebadas). Já Edburg usou a mesma cena de morte com humor e ironia, como ponto de fuga da banalidade do dia-a-dia. “A vontade de escapar do cotidiano é cada vez mais buscada em esferas mundanas e condutas banais, nos divertimentos de massa”. (Rüdiger 2002: 77).

 Edburg dialoga com David quando mostra a fragilidade humana, seu inevitável fim ─ a morte ─ e os excessos da vida. O que transcende a pintura e a fotografia?  Entenda-se o transcender como exterioridade, segundo Debray (1993: 62).  Transcende o que está fora do campo de visão. David usa sua arte como denúncia, assim como Edburg. Um parece dizer: “Aqui está um homem devotado à sua causa, à política, ao povo, mas que não foi respeitado como tal e morreu por acreditar na bondade humana. Do que valeu tanta consumição (apreensão)?”. Já Edburg parece nos perguntar do que lhe vale tanta busca pela beleza, tanta consumição (inquietude), se no final, você morrerá na privacidade de sua solidão? “[...] já nenhuma ideologia política é capaz de inflamar as multidões, a sociedade pós-moderna já não tem ídolos nem tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de si própria ou projeto histórico mobilizador; doravante é o vazio que nos governa, um vazio sem trágico, nem apocalipse”. (Lipovetsky 1983: 11).

Para Debray (1993: 39), “o ídolo faz ver o infinito; a arte, nossa finitude; o visual, um mundo circundante sobre controle.” Mas resta o incontrolável. Este incontrolável é percebido em “Morte de Marat” ou “Morte por Shampoo” como a “maldita”  ̶ a morte. Todos os fabricantes de imagens (David ou Edburg) pretendem vencer a corrida contra a “maldita”. “Enquanto houver morte, haverá esperança estética”, acrescenta Debray.

 

4.    Vik Muniz e Marat no documentário

 

 O artista Plástico brasileiro, Vik Muniz, faz uso da estética do refugo. O artista cria arte com objetos do lixo, “refaz conscientemente e com técnica refinada algo que, no entanto, deve parecer casual” (Eco 2007: 407), matéria de detrito industrial.  Para Eco, o artista faz-se porta-voz de uma sarcástica polêmica contra o mundo industrializado que o circunda. Muniz faz uma crítica à sociedade de consumo, ao uso insustentável de tudo que consumimos.  Enquanto Marat criticava as extravagâncias da corte de Louis XVI e pedia a cabeça da aristocracia francesa e David espalhava (em excesso) a imagem do homem simples-herói-mártir; Edburg crítica o consumismo desenfreado das mulheres, da sociedade e de sua própria alienação e, finalmente, Muniz vem para redimir o lixo social.

No documentário Lixo Extraordinário (Waste Land, Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley, 2009, Brasil/ Reino Unido, 99 min.), Vik Muniz trabalha no meio do (e com o) povo, como uma espécie de “amigo do povo”. O documentário foi indicado ao Oscar[16], na categoria de melhor documentário, em 2011. Muniz lida com a transposição do lixo para a obra de arte. De materiais como latinhas, garrafas de plástico, papéis, papelão, nascem nas mãos do artista releituras de grandes obras de arte, que são fotografadas, colocadas em molduras e vendidas em galerias. É a arte capaz de mudar a vida das pessoas com o mesmo material com que elas lidam todos os dias. É a transformação da matéria, do ser humano (o catador de lixo) em parte de uma obra. Muniz faz a releitura refugo da obra de David, “Morte de Marat”, utilizando lixo encontrado no Jardim Gramacho. Lixo Extraordinário foi filmado ao longo de dois anos (agosto de 2007 a maio de 2009) e acompanhou o trabalho Vik Muniz no Jardim Gramacho (um dos maiores aterros sanitários do mundo), na periferia do Rio de Janeiro.

O Marat de Muniz é encarnado pelo catador Sebastião Carlos dos Santos (Figura 3). Marat e Tião (como é conhecido em Gramacho) dividem a mesma vontade de ajudar os menos afortunados. Tião e Marat, dois homens em tempo e espaço diferentes, mas com uma mesma vocação, lutar pelo bem dos seus companheiros.

Como olhar a obra de Vik Muniz? Basta afastar-se do quadro para ver a idéia e aproximar-se para ver a matéria. Com David, a gente afasta-se do quadro para ver a luz que incide sobre o homem quase santo e quando nos aproximamos vemos os detalhes, a caixa/epitáfio, o cutelo e a pena, a ferida mortal. É o momento da transformação do olhar, de organizar o mundo imagético, de transmissão de memórias. Segundo Tião, “para ser arte tem que passar alguma coisa para as pessoas”. Para Vik Muniz, “é a falta de conhecimento que faz a gente não gostar das coisas” (informação verbal) [17].  O documentário teve a força de levar um pouco do conhecimento das pessoas do Jardim Gramacho para o mundo e mostrar uma imagem nova para a classe que joga seus excessos de qualquer forma, em qualquer lugar, sem uma coleta seletiva. A imagem do excesso que se transforma em arte.

 “Diante de qualquer imagem ─ foto, quadro, estampa, plano ─ perguntemo-nos: em direção de quê o autor levantou a cabeça?” (Debray 1993: 63). David levantou a cabeça para a política, para a Revolução Francesa, para o neoclassicismo, para seu amigo Marat e para a sociedade oprimida que carecia de um herói. Edburg levantou a cabeça para as mulheres ansiosas, deprimidas, mas que desejam a beleza eterna, os prazeres do corpo e da alma, mesmo que isto lhes custe à vida. Já Vik Muniz levantou a cabeça para o lixo, para a sustentabilidade e para a necessidade de captar o refugo como protesto e transformá-lo em arte. Os três (pintor, fotógrafa e artista plástico) sabiam que tanto a experiência como a arte podem mudar as pessoas: o povo francês, as mulheres pós-modernas, os recolhedores de lixo do Jardim Gramacho e todos nós. Tanto na pintura, na fotografia ou no documentário, as três imagens remetem a um homem polêmico, mas que desejou fazer a diferença, mesmo que por linhas tortas. O poder da imagem parece ser a capacidade de criar e disseminar mitos, ritos, memórias, sensações, percepções.

                 

REFERÊNCIAS

 

ARGAN, Carlo Giulio (1993). Arte Moderna / Do Iluminismo aos Movimentos Contemporâneos, (pref. R. Naves, trad. D.Bottmann e F. Carotti), São Paulo: Cia das Letras.

BAX, Belfort Ernest (1901).  Jean-Paul Marat, the people´s friend. 2nd ed. London: Grant Richards. cap.  V. Disponível em: <http://www.archive.org/stream/jeanpaulmaratpeo00baxeuoft#page/n1/mode/2up>. Acesso em: 10 abr. 2011.

BERGSON, Henri (2001) O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes.

BORBA, Francisco S. (org.) (2004). Dicionário UNESP do Português Contemporâneo. São Paulo: UNESP.

CASTRO E SILVA, Gustavo de (2005).  Filosofia da Comunicação Comunicosofia. Brasília: Ed. Casa das Musas. Col. Textos em Comunicação.

CASTRO, Renato (2001).  A humanidade conflito e suas causas. Brasília: Thesaurus.

Consumição. In: Dicionário online de português. Disponível em: < http://www.dicio.com.br/consumicao/>. Acesso em 07 nov. 2010.

DEBRAY, Régis (1993). Vida e Morte da Imagem: uma história do olhar no ocidente. Tradução de Guilherme Teixeira. Petropólis: Vozes.

DI CAGNO, Gabriella (2008). Michelangelo EUA: The Oliver Press, Inc.

ECO, Umberto (2007). História da Beleza. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record.

FERRON, Myriam; RANCANO, Jordi (2007). Grande atlas do corpo humano: anatomia, histologia, patologia. Tradução Nader Wafae. São Paulo: Manole.

FRIEDLAENDER, Walter (2001). De David a Delacroix. Tradução de Luciano Vieira Machado. São Paulo: Cosac & Naify Edições.

 GARDNER, Howard (2003). A nova ciência da mente: Uma História da Revolução Cognitiva. Tradução de Cláudia Malbergier Caon. São Paulo: Edusp.

GOMBRICH, E. H. (1999). A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora LTC.

HAUSER, Arnold (2000). História Social da Arte e da Literatura. Trad. de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes.

OLIVEIRA, Josemar Machado (2007). Os Jacobinos. Revista Dimensões ─ Revista de História da Ufes.  Espirito Santo, nº 19. Disponível em: <http://www.ufes.br/ppghis/dimensoes/artigos/Dimensoes19_JosemarMachadodeOliveira.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2011.

LIPOVETSKY, Gilles (2005). A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole.

MACHADO, Arlindo (2001). O quarto iconoclasmo e outros ensaios hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos.

MARCONDES FILHO, Ciro (1991). Sociedade Frankenstein. São Paulo.

MORIN, Edgar (1997). O cinema ou o homem imaginário. Tradução António-Pedro Vasconcelos. Lisboa: Relógio D’ Água.

PASULKA, Nicole (2006). Drop Dead Gorgeous. The Morning News, Estados Unidos, 18 dec.. Disponível em: < http://www.themorningnews.org/archives/galleries/drop_dead_gorgeous/ >. Acesso em: 07 nov. 2010.

RÜDIGER, Francisco (2002). Comunicação e Teoria Crítica da Sociedade. São Paulo: Edipucrs.

 



[1] Segundo Arnold Hauser (2000: 637-642), o classicismo que se estendeu de meados do século XVII até a Revolução de Julho (1830) não foi um movimento homogêneo, mas um desenvolvimento que, embora tenha avançado de forma ininterrupta, ocorreu em fases claramente distinguíveis: “classicismo rococó” (de 1750 a 1780) e “novo classicismo” (de 1780 a 1830).

[2] O termo aqui utilizado foi extraído de uma entrevista da própria Edburg para o Jornal online The Morning News. Segundo o Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2004: 1200), a palavra inglesa remake pode ser entendida como “nova versão”, em português.

[3] Para Giulio Carlo Argan (1993:46), o título “A Morte de Marat” não é o único para o quadro. Jacques-Louis David o intitulou “Marat em seu último suspiro” (Marat a son Dernier Soupir). O Musées Royaux des Beaux-Arts de Belgique, em Bruxelas, onde o quadro está, intitula-o “Marat Assassinado” (Marat Assassiné).

[4]  Também conhecidos no Brasil como “catadores” de materiais recicláveis. Termo que integra nossos estudos, metodologias, dicionários e a cena urbana.

[5] Pretendo, aqui, usar os termos releitura e remake como sinônimos. Pois, remake (do inglês), é re-fazer, nova versão, assim como releitura é re-ler, re-criar, re-contar.

[6] Tião é o jovem presidente da ACAMJG (Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho).

[7]  O Doutor Josemar Machado de Oliveira, em seu artigo “Os jacobinismos (1789 - 1794)” relata que os “jacobinos” (designação pejorativa para os membros da Sociedade dos Amigos da Constituição, nome oficial do Clube Jacobino) foi no começo um epíteto dado pelos adversários para ironizar a disciplina e a ortodoxia reinante nessa associação. Porém, em fevereiro de 1792, a palavra ‘jacobino’ deixa de ser alcunha pejorativa e torna-se uma palavra invocada com orgulho e a “Sociedade dos Amigos da Constituição” torna-se “Sociedade dos Jacobinos, amigos da Liberdade e da Igualdade”.

[8] Segundo o “Grande Atlas do Corpo Humano: anatomia/histologia/patologias”,  a psoríase (do grego: erupção sarnenta) é uma enfermidade crônica inflamatória de causa desconhecida que causa lesões cutâneas.  Uma forma de tratamento é o uso de pomadas e banhos sobre a pele (FERRON & RANCANO 2007: 79).  Belfort Bax cita a doença de Marat como “prurido” (coceira) (Bax 1901: 136, tradução nossa).  A Origem da doença de Marat permanece duvidosa. Para a medicina do século XVIII, o tratamento moderno e remédios eram desconhecidos. A doença era considerada incurável, e até mesmo mortal.

[9]Tomo por meio imagético o que Howard Gardner (Pensilvânia, 1943), psicólogo cognitivo norte-americano, afirma ser aquilo que o indivíduo tem à sua disposição, como uma grande quantidade de conhecimento codificado em proposições e recorre a estas proposições para construir o que parece ser uma imagem.

  [10]  Na pintura de David, o cutelo tem cabo marfim de para melhor ser visto na obra e integrar o contexto. É a arma do jornalista (a pena) contra a arma da assassina (o cutelo).

[11]  Jacques-Louis David retratava a realeza (figura de Napoleão) e figuras de heroísmo espartano e romano, mescladas às mais sublimes virtudes cívicas. Homens (Horácio, Sócrates) que se sacrificava por causas sociais.

[12] A Pietà (piedade), escultura de Michelangelo Buonarotti (Caprese, 1475- 1564), é um trabalho de arte que retrata a Virgem Maria sustentando o corpo de Cristo após ser retirado da cruz. Michelangelo esculpiu quatro pietàs: Rondanini Pietà, Florence Pietà, Vatican Pietà e Palestrina Pietà (Di Cagno 2008: 58-59). A obra de David é comparada à Pietá, por Marat ser comparado a Cristo e pela disposição do corpo do quadro de David remeter a disposição do corpo do Cristo morto de Michelangelo.

[13]  Frase proferida pela Professora Doutora Selma R.N. Oliveira, em 2010, na aula de Filosofia da Comunicação, no Programa de Pós-Graduação de Comunicação, na UnB.

[14] Segundo o Dicionário Online de Português, consumição é um substantivo feminino (consumir + ção) 1- Ato de consumir.  2- Desgosto, mortificação. 3 - Apreensão, inquietude.

[15]  Ao todo, a série possui 20 fotos, sendo Death by Shampoo uma delas.

[16]  O Óscar é o prêmio entregue anualmente pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, desde 1927.

[17]   Fala de Tião e de Vik Muniz no Documentário “Lixo Extraordinário”, 2010.

IMAGINÁRIO, HORROR E MONSTRUOSIDADE: O CASO FRANKENSTEIN

IMAGINÁRIO E IMAGINAÇÃO AFETANDO OS SUJEITOS

 

A imaginação é a linha que usamos para tecer o conhecimento. Nossos sonhos, fantasias, ilusões são uma pequena parte do todo social. Um todo que está dentro de nós, pois somos nós que construímos as regras sociais, a linguagem, a cultura, as normas. Produzimos uma sociedade que nos produz, afirma o sociólogo francês Edgar Morin (1921). O imaginário varia de pessoa para pessoa, em função do seu contexto cultural, do modo como se vê na sociedade, como se vê no mundo e como se projeta.  Tudo é nó e conexão no tecido imaginário.

 

O imaginário é comparado com o fantástico, irreal e não prático. A sociedade valoriza o prático, o utilitário, o real. No entanto, sem imaginação, a humanidade já teria sido extinta há muito tempo. Uma imagem é uma representação mental interna da nossa experiência ou das nossas fantasias, um modo que a mente tem para codificar, armazenar e expressar informação (ROSSMAN, 2000, p. 13 apud APÓSTOLO, 2007, p. 90).

 

Para o poeta, escritor e jornalista Gustavo de Castro, o imaginário ganha significado a partir da interpretação, buscando “referências no conhecimento do senso comum; das representações coletivas ou dos enigmas” (2012, p. 14). Para cada pessoa, a palavra “imaginário” tem significado diferenciado. O termo “imaginário” pode ser tudo o que não existe. Um mundo oposto à realidade dura e concreta. E, também, pode ser uma produção de devaneios, repleto de imagens fantásticas de outros mundos. Porém, o imaginário não é contra a realidade, pois “trata de níveis da realidade: revela suas máscaras”. O imaginário “complementa, critica, consuma e realimenta” o real (CASTRO, 2012, p. 13).  Para Gilles Deleuze (1992, p. 84), o imaginário não é irreal, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal. “O imaginário é um fenômeno coletivo eminentemente real criado pelos múltiplos canais culturais que irrigam uma sociedade” (MUCHEMBLED, 2003, p. 09). O imaginário é um objeto tão digno de investigação como as visíveis ações dos homens.

 O imaginário é tido como meio condutor do conhecimento humano (Bachelard), resultado de uma força criadora radical própria à imaginação humana. Para Gilbert Durand[1], o imaginário é concebido como “conjunto das imagens e das relações de imagens que constituem o capital do homo sapiens” (2002, p. 18). Para Cornelius Castoriadis, o imaginário total é o imaginário radical que reina como social-histórico (rio aberto do coletivo anônimo) e como psiquê-soma (fluxo representativo, afetivo, intencional). “Aquilo que no social-histórico é posição, criação, fazer ser, nós o denominamos imaginário social, no sentido primeiro do termo, ou sociedade instituinte. Aquilo que na psiquê-soma é posição, criação, fazer ser para a psiquê-soma, nós o chamamos imaginação radical” (1991, p. 493, grifo nosso). Existe um imaginário central em torno do qual se estrutura um imaginário secundário. Por exemplo: a ideia do Diabo, do Ser Maligno no mundo ocidental (imaginário central) se agrega à ideia do pecado, do medo, da maldade em cada cultura (imaginário secundário/periférico).

                                           

A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar imagens da realidade; ela é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade. [...]. A imaginação inventa mais que coisas e dramas; inventa vida nova, inventa mente nova; abre olhos que têm novos tipos de visão. Verá se tiver “visões”. Terá visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências, se as experiências vierem depois como provas de seus devaneios (BACHELARD, 1997, p. 17-18).

 

 O imaginário é pluralidade (conjunto), representação (símbolo) e coletividade (povo, grupo). Já a imaginação, é singularidade (espírito), representação (representar) e individualidade (criação e invenção) (NASCIMENTO, 2004, p. 192). O que une imaginário e imaginação é a palavra “representação”, faculdade receptiva que afeta o sujeito.

 “O imaginário estético é, como todo imaginário, o reino das necessidades e aspirações do homem, encarnadas e situadas no quadro de uma ficção” (MORIN, 1997, p. 120). A realidade só é e será realidade, se for tecida no imaginário, pois traça linhas identificatórias com nossas sombras, nosso “eu” que apreciamos na literatura, na escultura, pintura ou cinema. Imaginar é a capacidade de fazer algo surgir de fora para dentro (inspiração) e de dentro para fora (criação/expiração). Quando ouvimos uma conversa ou lemos sobre algo sobrenatural, mágico, somos capazes de imaginar temas fantásticos em ação.

Ao adentrarmos em um processo criativo impregnado de imaginário (da ordem do coletivo), de imaginação (da ordem do individual), repleto de temas fantásticos, entenderemos o processo criativo de uma monstruosidade engendrada pela jovem escritora britânica Mary Wollstonecraft Shelley, para percebermos como a imaginação inventa mundos possíveis e descobre caminhos, deixando vestígios no mundo da arte, nas descobertas científicas e/ou teorias políticas.

“Imaginar é ir além, prolongar, fazer a ponte, vergar o pensamento sobre o próprio pensamento para alcançar o impensado” (ROVAI, 2001, p. 54). Os monstros são seres nascidos da imaginação humana. Deuses e monstros fazem parte da nossa herança comum como seres humanos, são frutos de um universo crivado de seres, do inexplicado, da capacidade humana do espanto e da ambivalência, da riqueza extraordinária da imaginação humana.

 

IMAGINÁRIO OCIDENTAL E LITERATURA GÓTICA

 

Iluminismo é o período que abrange o século XVIII e que foi influenciado por alguns pensadores do século XVII, como: Francis Bacon (1561-1626), Thomas Hobbes (1588-1679), René Descartes (1596-1650), John Locke (1632-1704), Isaac Newton (1642-1727), entre outros. Tais pensadores iluministas desacreditavam a religião, pois a fé não deveria ficar acima da razão e o homem não deveria ser escravo da superstição. Para Descartes, pensar era existir (Cogito, ergo sum), ou ainda, duvidar levava ao pensar que levava ao existir (Dubito, ergo cogito, ergo sum). O sobrenatural, a superstição era fruto da imaginação, das emoções e temperamentos exacerbados e deveria ser “contido”.

 

O mundo é imaginado como um relógio, que funciona por si próprio. Até Deus, nesse caso, seria um empecilho para seu funcionamento. [...]. O novo espaço homogêneo recebe luz; a chama da razão expulsa as trevas da noite e desperta os sonâmbulos da sonolência que havia tomado conta de suas mentes; o galo canta e o dia desponta (SCHWANITZ, 2007, p. 106-107).

 

O Iluminismo valoriza a razão, ao passo que o romance de horror explora emoções, e mesmo emoções particularmente violentas do ponto de vista dos personagens de ficção. Esse contraste, ademais, pode ser amplificado, associando-se o Iluminismo com a objetividade e o romance de horror com a subjetividade (CARROLL, 1999, p. 79).

 

Acostumados aos contos de fadas, mitos e odisseias, o imaginário ocidental vê surgir um movimento literário no gênero horror, na forma do romance gótico, que coincidiu com o período do “Iluminismo”. Algumas histórias góticas conservaram características de tempos medievais, como: cenários medievais formados por castelos, igrejas, florestas e ruínas. Os personagens eram, invariavelmente, melodramáticos e maniqueístas: donzelas, cavaleiros (bons), vilões (maus), criados (subalternos e subservientes), etc.

“O consenso geral, embora discutível, é que o primeiro romance gótico de relevância para o gênero do horror foi ‘O Castelo de Otranto’ (1764), de Horace Walpole” [2] (CARROLL, 1999, p. 16). Walpole narra em seu romance gótico a usurpação do Principado de Otranto, a peregrinação de um casal apaixonado perseguidos pelo usurpador sanguinário e elementos sobrenaturais em cenário e objetos medievais.

O horror é, antes de tudo e, sobretudo, um gênero moderno, que começa a surgir no século XVIII. Os romances de horror são ainda os que mais vendem: Mary Shelley (1797-1851), Frankenstein (1818); Robert Louis Stevenson (1850-1894), O estranho caso do Doutor Jekyll e do Senhor Hyde (1886); Oscar Wilde (1854-1900), O retrato de Dorian Gray (1890); Bram Stoker (1847-1912), Drácula (1897), são alguns dos escritores de literaturas góticas mais conhecidas mundialmente, tanto em forma literária quanto pelas adaptações cinematográficas.

A literatura gótica inspirou alguns autores atuais, como: H.G.Wells (1866-1946), “O homem invisível” (1897) mesclado terror a ficção científica; Franz Kafka (1883-1924), “A Metamorfose” (1912) e seu terror existencialista, solitário e asfixiante; Anne Rice (1941), “Entrevista com o vampiro” (1976); Stephen King (1947) escreveu “Carrie, a estranha” (1974), criador de grandes monstros de vários tipos; Stephenie Meyer (1973) escreveu “Crepúsculo” (2005); entre outros vários escritores.

Para analisar o modo como o imaginário do horror e o romance gótico (o sonho, o devaneio, a magia, a monstruosidade, o monstro, a imaginação) floresceram em meio à luz natural do homem (razão), iremos usar a obra “Frankenstein”, da jovem Mary Shelley como literatura focal. Obra que, dentro de si, revela o universo Iluminista, pois possui elementos sobre o entendimento humano: o monstro como tábula rasa (John Lock), uma mente que adquire conhecimento pelas experiências sociais; a criatura que passa a pensar e, assim, existir (Descartes); o bom selvagem que sente a desigualdade entre os homens (Rousseau).

 

A IMAGINAÇÃO DE UMA JOVEM GERA UM MONSTRO

 

Entraremos, agora, no processo criativo [3] de um monstro que representa a imaginação exaltada de um cientista, um monstro como fonte de desordens e de infelicidade ─ Frankenstein, de Mary Shelley. Mas, para entender o monstro, devemos entender como foi sua concepção, o contexto histórico, cultural, científico em que a autora Mary Shelley vivia.

Quem foi Mary Shelley? Qual sua história? Quem afetou e influenciou Mary Shelley?

A mãe de Mary Shelley foi a escritora britânica Mary Wollstonecraft (1759-1797), autora da obra A Vindication of the Rights of Woman (1792), sendo considerada a pioneira do moderno feminismo.

 Mary W. (a mãe) havia crescido em um lar rígido, no qual o pai ─ Edward Wollstonecraft ─ um alcoólatra fabricante de lenços, batia constantemente na esposa, filhos e até no cão da família. Devido às agressões e à rigidez em seu lar, Mary W. saiu de casa aos dezenove anos, voltando dois anos depois para cuidar da mãe enferma.  As últimas palavras de Elizabeth Wollstonecraft ─ “A little patience and all will be over” ─  passaram a guiar a filha por toda a vida. Para Mary W., a educação era o caminho para as mulheres conquistarem uma maior participação sócio-politica-econômica. Já o casamento, era uma prostituição legal, fazendo da mulher uma “escrava do amor” (WOLLSTONECRAFT, 2008, p. 100).

 Mesmo tecendo críticas ferrenhas a instituição do casamento, Mary W. (38 anos) casa-se, em 29 de março de 1797, com o jornalista/novelista/ filósofo/político inglês William Godwin (41 anos) na igreja londrina de St. Pancras. William Godwin (1756-1836) era de uma religiosa família inglesa e teve uma educação clássica. Godwim, com suas obras (“Inquérito acerca da justiça política”, 1793; “Caleb Williams”, 1831, entre outras), influenciou a literatura britânica e a cultura literária europeia.

Em 30 de agosto de 1797, nasce Mary Godwin (futura Mary Shelley), filha de Mary Woolstonecraft Godwin e William Godwin. Porém, uma tragédia abala a família. Segundo a pesquisa de Diane Jacobs, autora de Her Own Woman: The Life of Mary Wollstonecraft (2001), no dia do nascimento de Mary Shelley, Mary Woolstonecraft resolveu ter a filha em casa, auxiliada pela Senhora Blenkisop (parteira da região). Porém, durante o parto, Mary W. não conseguiu expelir a placenta, fazendo a parteira exigir a presença do Doutor Poignard.  O médico observou a situação e, sem lavar as mãos[4], puxou a placenta, pedaço por pedaço. Neste processo, o médico introduziu uma infecção no útero da mãe de Mary Shelley, fazendo-a falecer de febre puerperal[5] em 10 de setembro de 1797.

A pequena Mary Godwin ficou aos cuidados do pai, até que, em 21 de dezembro de 1801, William Godwin casa-se com Mary Jane Clairmont. Mary Jane já tinha dois filhos de um casamento anterior: Charles e Jane (depois chamada de Claire) e William tinha Mary e tornou-se pai adotivo de Fanny[6]. Este é o núcleo familiar da futura escritora Mary Shelley, fruto, provavelmente, do mais famoso casamento inglês da literatura radical do século XVIII. Porém, ainda faltava mais uma peça essencial para que Mary se tornasse a criadora de Victor Frankenstein e seu monstro ─ seu marido, apoiador e revisor de suas obras, Percy Shelley (1792-1822).

Em 11 de novembro de 1812, ocorre o primeiro encontro entre Mary Godwin (futura criadora de Frankenstein) e Percy Shelley, em um jantar entre os Godwins e os Shelleys. Na época, Percy ainda era casado com Harriet Shelley.

É em 1816, um “ano sem verão” [7], que a vida de Mary Shelley se mesclará à sua obra e influenciará a literatura mundial. De 03 a 14 de maio de 1816, Mary Shelley, Percy, o pequeno William (filho recém-nascido do casal) e Claire (meio-irmã de Mary) viajam para a Suíça ao encontro de George Gordon Byron, ou Lorde Byron (1788-1824) e o médico e amigo do Lord, John William Polidori (1795-1821), no Lago Léman, próximo a Genebra (Suíça). De 15 a 17 de junho do mesmo ano, o grupo retorna à residência de Byron, próxima ao Lago Léman e, devido ao frio do “ano sem verão”, começam uma discussão sobre filosofia e o princípio da vida, em frente à lareira. Tal discussão leva o grupo a propor histórias sobre fantasmas e, no dia 16 de junho, Mary Shelley “sonha acordada com o que se tornaria o germe de Frankenstein,  começando a escrever a sua obra” (MELLOR, 1988, p. xvi, tradução nossa).

“A monstruosidade formal pode ser uma grande verdade dinâmica. Se o sonho produz monstros, é porque traduz forças” (BACHELARD apud ALVAREZ FERREIRA, 2008, p. 07). Sigmund Freud trabalhou baseado na hipótese de que os sonhos não são produto do acaso. Os sonhos estão associados com pensamentos e problemas conscientes. A vida e os acontecimentos que circundaram a jovem Mary Shelley deram vida e forma a uma grande criatura em sua obra.

Mary Shelley termina a obra sonhada em 14 de maio de 1817. A obra foi publicada em março de 1818.

 

A RÃ, OS ENFORCADOS E A ELETRICIDADE

 

Entre os séculos XVIII e XIX, tivemos uma época de avanços científicos e a mecanização estava sendo desenvolvida para fins industriais.

 Foi na Grécia Antiga que o interesse humano pela eletricidade[8] começou. Em 600 a. C, Tales de Mileto observa a resina natural ─ âmbar (eléktron, em grego) ─ atrair fios de palha e penugens, após atrito com a pele de animais.

 Ano de 1600, o inglês William Gilbert foi o primeiro a utilizar o termo “eletricidade” (derivada de elektrón) e observou experimentos com a eletricidade, logo chamada de estática. O alemão Otto Von Guericke construiu a “máquina eletrostática”, com a qual verificou que a eletricidade passava de um corpo para outro.  Em 1729, o inglês Stephen Gray constatou que a eletricidade podia ser conduzida por um fio, dependendo do material e denominou condutores (metais como o cobre, prata, ferro) e isolantes (vidro, borracha, seda e lã). Benjamin Franklin, em 1752, “provou que os relâmpagos são uma descarga estática, ao conduzir à espetacular e perigosa experiência da pipa que ele soltou durante uma tempestade” (TINER, 2004, p. 66). Franklin inventou o para-raios, depois de observar que a eletricidade estática se dissipava quando um condutor de ponta afiada era colocado por perto. 

Em 1780, o médico, cirurgião e investigador italiano Luigi Galvani (1737-1798) produz a “eletricidade galvânica”, originária de reações químicas e descobre a “bioeletricidade”. Descoberta real, usada para uma criação no campo ficcional. Aqui, “o mundo real é absorvido pelo imaginário” (BACHELARD, 1996, p. 13).

A obra de Mary Shelley foi baseada mais na realidade que no mito. Victor Frankenstein desejava aprender sobre “os segredos do céu e da terra”, embora assumisse que se ocupava da “substância das coisas ou do espírito da natureza e da misteriosa alma do homem”. Quando tinha treze anos de idade, Victor encontrou volumes das obras de Heinrich Cornelius Agrippa von Nettesheim[9] (1486- 1535) e ficou entusiasmado, porém, seu pai o desestimulara, dizendo ser o volume uma “bobagem”. Logo, Victor descobre que as obras de Agrippa estavam “completamente ultrapassadas, pois esse [Agrippa] se baseava em fantasias” (SHELLEY, 2009, p. 39).

Assim como Victor inspirou-se em Agrippa, Paracelso [10] (1493-1541) e Albertus Magnus (1193-1280) [11], Mary Shelley, provavelmente, inspirou-se em quatro cientistas para criar Victor Frankenstein: Konrad Dippel (1673-1734), Luigi Galvani (1737-1798), Giovanni Aldini[12] (1762-1834) e Andrew Ure (1778-1857).

Galvani já era conhecido por Mary na época de realização da obra e Percy Shelley, desde criança, possuía uma máquina eletrostática criada por Galvani.

Aos 15 anos, Victor Frankenstein vê um raio atingir um velho carvalho e fica impressionado com a destruição causada pelo raio (WITKOWSKI, 2004, p. 72).

 

Nesta ocasião, achava-se conosco um homem, grande pesquisador das ciências naturais, que, excitado por este acidente, se pôs a explicar uma teoria que elaborara sobre eletricidade e o galvanismo, ao mesmo tempo nova e espantosa para mim. (SHELLEY, 2009, p. 43).

 

   Galvani usou rãs em suas demonstrações com a “máquina de choques elétricos”, mas outros animais (vacas, gatos, cavalos, cães) foram usados para provar a teoria galvânica. Partes humanas, em aulas de anatomia, também foram utilizadas. A eletricidade e a máquina de choques elétricos estavam em moda. Existiam clínicas por toda a cidade de Londres e as pessoas iam a essas clínicas para serem curadas de alguma enfermidade.

 Choques eram usados até para curar impotência [13]. Giovanni Aldini era sobrinho de Galvani e tornou o galvanismo moda, assunto de conversa, discussão para intelectuais e pessoas comuns. O assunto das conversas era quase o mesmo em qualquer ambiente: vida, morte e eletricidade. Com Aldini, as apresentações galvânicas tornaram-se espetáculos teatrais que viajavam pela Europa, eletrificando corpos humanos. A mais famosa dessas exibições ocorreu no Colégio Real dos Cirurgiões, Londres, em 1803. Foi usado o corpo do enforcado George Foster[14]. Aldini ligou vários condutores a uma poderosa bateria e tocou no corpo morto de Foster. O corpo começou a tremer, fazendo com que a plateia acreditasse que o corpo estava quase vivo.

A cena era uma história de horror bem real. Mary Shelley sabia das experiências com cadáveres através de Percy, que tinha um grande fascínio pela ciência e pelo oculto. A atividade científica no século XIX ainda era sombria e tenebrosa. Os corpos usados em experimentos eram obtidos de formas obscuras e clandestinas. 

Andrew Ure[15] (1778-1857) também realizou experiências galvânicas e tinha profundo interesse nos estudos sobre eletricidade. Em 04 de novembro de 1818, Ure realizou uma apresentação com o corpo enforcado de Matthew Clydesdale[16]. Ure fez pequenas incisões em pontos estratégicos no corpo de Matthew, introduziu sondas elétricas nos cortes através da pele, entrando em contato direto com os músculos do homem. As ondas eletrificadas causaram uma reação dramática facial no morto. Os olhos de Clydesdale viraram, a face se contorceu e os braços se levantaram como se tocasse violino. Várias pessoas que assistiam à experiência ficaram horrorizadas. Um médico, amigo de Ure, desmaiou. Ure não se importava eticamente com a situação, pois via a humanidade como um tipo de máquina que podia ser usada nas fábricas.

Para o químico Ure, o homem era uma combinação de músculos e ossos que deveria ser obrigado a trabalhar através de uma força vital (a eletricidade). Andrew queria usar a eletricidade para transformar o corpo em uma espécie de marionete. Ure era um entusiasta do sistema fabril. Para o químico, alguns humanos deveriam ser meros autômatos[17].

 O monstro de Victor Frankenstein é (re)animado como um autômato, alimentado com a eletricidade. Ure queria demonstrar, com suas experiências (úteis aos radicais políticos) que o corpo podia funcionar à eletricidade e que, portanto, não precisava de “alma” e, sem alma, Deus não era necessário. A alma e Deus eram vistos, por alguns industrialistas e cientistas, como elementos destruidores da estrutura social. Conrad Dippel também pode ter influenciado Mary Shelley[18]. O alquimista e médico alemão nasceu no Castelo Von Frankenstein[19], local de experiências com cadáveres usurpados em cemitérios próximos. Antes de Shelley escrever sobre Frankenstein, o nome já era associado a lendas misteriosas. Dippel[20] queria solucionar mistérios da vida, misturando alquimia com química para descobrir o “elixir da vida” (remédio para curar todas as doenças), desejando a imortalidade.

Era a busca pela “pedra filosofal”, pela substância que podia transfigurar metais nobres em ouro e prolongar a vida. Para o Clero, Dippel era um herege. Já para o mundo acadêmico, Dippel era apenas mais um alquimista perdido com os acontecimentos científicos. O alquímico acreditava saber combinar o oculto e a ciência, para explorar as áreas enigmáticas da vida. Mary Shelley era como uma alquímica quando criou a obra “Frankenstein”, misturando o lado oculto da criação, a imagem da criatura, a ciência ao redor. Para Cornelius Castoriadis, essa nossa capacidade de criar formas, ritos e mitos é, também, certo mistério da criação, da transfiguração. Muito além de capacidades racionais, surgem elementos fantásticos, inventados, que atualizam o imaginário.

O imaginário que falo não é imagem de. É criação incessante e essencialmente inderteminada (social-histórica e psíquica) de figura/formas/imagens, a partir das quais somente é possível falar-se de “alguma coisa”. Aquilo que determinamos “realidade” e “racionalidade” são seus produtos (CASTORIADIS, 1991, p.13).

 

Mary Shelley colocou no papel algo que estava ao seu redor e dentro de si mesma, durante seus dezenove anos de vida. “O devaneio que o escritor experimenta na vida atual, tem todas as oscilações dos devaneios de infância entre o real e o irreal, entre a vida real e a vida imaginária” (BACHELARD, 1996, p. 117-118).

 

FRANKENSTEIN: UM ESCÂNDALO EPISTEMOLÓGICO

 

Victor Frankenstein seria o protótipo do cientista moderno. Mary Shelley intitulou sua obra de Frankenstein, or the modern Prometheus. Victor é aquele que, como Prometeu[21] (“aquele que pensa antes”), no desejo de fazer o bem, deu-nos os males (os atos do monstro).

Em uma batalha entre os deuses olímpicos e os Titãs, Prometeu e Epimeteu (aquele que pensa depois) lutaram ao lado de Zeus. Coube ao Titã Prometeu criar a humanidade, moldando os homens do barro. Porém, por causa de uma disputa pelas melhores partes de touro sacrificado, Zeus (enganado por Prometeu) resolve fazer com que a humanidade coma carne crua, não merecendo o fogo. Prometeu sabia que a humanidade precisava do fogo para se desenvolver e resolveu roubar algum fogo do carro do sol, dando fogo à humanidade e desobedecendo a Zeus. Antes do roubo do fogo, só havia homens entre os humanos.

Zeusordenou que Hefesto (deus da forja) fizesse uma fêmea humana de argila e que as deusas lhe dessem dons. Surge Pandora (“a que recebeu dons de todos”). Zeus envia Pandora e um jarro de barro selado de presente para Prometeu, que já prevendo a façanha de Zeus, não aceita e avisa Epimeteu para não aceitar Pandora e o jarro.  Zeus pune Prometeu, acorrentando-o a uma rocha nas montanhas do Cáucaso, onde um abutre comeria seu fígado[22] para sempre. Com medo de Zeus, Epimeteu desposa Pandora que, curiosa, abre a jarra e liberta todas as pragas que oprimem a humanidade, sobrando apenas a esperança na jarra.

 O mito de Prometeu marca o advento da consciência, o aparecimento do homem. Prometeu acorrentado é “símbolo dos tormentos de uma culpa reprimida e não expiada”. Prometeu, descendente dos Titãs, carregaria dentro de si uma tendência à revolta (do espírito que deseja se igualar a inteligência divina). Utilizar o espírito com fins de satisfação pessoal. Para Gaston Bachelard, o mito de Prometeu ilustra a vontade humana de intelectualidade, saber mais que nossos pais, mestres. O complexo de Prometeu é o complexo de Édipo na vida intelectual (GUIMARAES, 2001, p. 112).

 Victor é a vontade do homem de ser como Deus, um criador. Controlando e criando a vida. O conhecimento de Victor surge na sombra da morte de sua mãe, da necessidade de entender, de sua angústia, da dor de existir, sua ligação à prosperidade e à ruína. O monstro criado não foi nomeado e volta pare exigir a aceitação e nomeação de seu criador. Nomeada a criatura, terá existência, pois “(...) o nome traz consigo, uma vez pronunciado, a presença da própria coisa” (HESÍODO, 1995, p. 17). 

  A criatura descobre sua “origem maldita” quando lê o diário de Victor F. que havia encontrado. O monstro está cheio de interrogações. Quer saber por que foi criado, se nem seu criador o aceita? O monstro afirma que Deus fez o homem “belo e atraente” à sua imagem e semelhança, e que até Satanás tinha seus demônios para admirá-lo, mas a criatura feita de pedaços costurados de vários homens era solitária. A criatura não sabia que era o umbigo de seu próprio criador. Victor se afastou de todas as pessoas que amava para criar seu homem novo e sua única companhia desejada era a da solidão. Quando aprendeu a ler, a criatura adquiriu conhecimento, leu o diário de seu criador e se descobriu monstro e, também, descobriu que existir é algo confuso. Victor tentou descobrir os segredos da natureza, criar uma raça que devesse sua existência a ele, mas criou um monstro que só o odiava (SHELLEY, 2009, p. 138).

Alguns monstros não têm correspondência com nenhuma criatura existente na natureza, pois são fruto da imaginação humana e dela receberam a forma, a identidade, a vida. Para José Gil, os monstros estão entre nós desde sempre. Alimentam-se de nossos medos ou de nós, humanos. Porém, também nos fornecem conhecimentos importantes sobre nosso mundo.

 

Poetas, escritores (...) denunciaram os horrores da ciência, sobretudo no caso da medicina. Suposta fábrica de blasfêmias prometeicas, cuja meta seria usurpar os poderes divinos, a medicina tem como supremo pecado o objetivo de recriar o universo humano, Frankenstein é apenas um dos figurantes do museu imaginário que ressurge nas mentes cultivadas ou ignaras sempre que a experimentação ultrapassa a barreira do “normal”, do sancionado pelas doutrinas ideológicas ou religiosas (ROMANO, 2003, p. 11).

 

 

Depois de analisar o contexto em que a jovem Mary Shelley criou sua obra literária, percebemos que o real e o irreal, a ciência e a imaginação, a fantasia quando “Frankenstein” foi publicado, em 1818. Hoje, a obra é considerada não apenas uma fantasia de horror gótico, mas uma história de terror como desabafo perante o desconhecido da ciência, a falta de decisões morais e éticas. O que é fundamental à ética só pode ser mostrado, não pode ser dito. A existência de monstros demonstra que a natureza, também como a arte, pode cometer erros, ter falhas. O impulso motor de Frankenstein é “um medo feminino inominável, o medo de gerir um monstro” (GREER, 2007 apud HITCHCOCK, 2010, p. 281). “Enquanto a ciência ignorar as verdadeiras necessidades humanas, haverá imaginários que preencherão com monstros o conteúdo das almas esvaziadas” (NAZÁRIO, 2008). 

 Mesmo com todo o avanço da psicologia no campo das experiências traumáticas (Freud), da análise e lógica do sujeito (Lacan), do resgate do sagrado e análise dos sonhos (Jung) na contemporaneidade, os monstros ainda estão presentes em nossas vidas, em nosso mundo imaginário e/ou nosso mundo do entretenimento. São seres que deveriam ficar em segredo, apenas em nossa imaginação, mas sempre veem a luz, tentando provocar certo mal-estar (unbehaglich).

Por que “Frankenstein” ainda inspira? Simples, somos todos como a criatura. Cada indivíduo é um ser único em sua forma de pensar e agir, com suas experiências e concepção do mundo que o rodeia. Cada um tem sua própria história de vida condicionando suas motivações, interesses, afetos. Não há uma teoria que garanta entender dos afetos, medos e fascínios, pois supor que os mesmos estímulos causem as mesmas reações em todo ser humano é menosprezar a individualidade, a alteridade.

 

Os monstros são nossos filhos. Eles podem ser expulsos para as mais distantes margens da geografia e do discurso, escondidos nas margens do mundo e dos proibidos recantos de nossa mente, mas eles sempre retornam. E quando eles regressam, eles trazem não apenas um conhecimento mais pleno de nosso lugar na história, mas carregam um autoconhecimento, um conhecimento humano (...). Esses monstros nos perguntam como percebemos o mundo e nos interpelam sobre como temos representado mal aquilo que tentamos situar. Eles nos pedem para reavaliarmos nossos pressupostos culturais sobre raça, gênero, sexualidade e nossa percepção da diferença, nossa tolerância relativamente à sua expressão. Eles nos perguntam por que os criamos (COHEN, 2000, p. 54-55).

 

Cada um reage de maneira diferente a estímulos semelhantes. O imaginário varia de pessoa para pessoa em função do seu contexto cultural, do modo como se vê na sociedade e como se vê no mundo. Como entender nossas atitudes perante seres que não tocamos, não abraçamos, não beijamos, mas amamos com tanta intensidade como um amigo íntimo, um irmão? Nossa afeição para com o monstro de Frankenstein é devido a uma amizade cúmplice, uma fraternidade constituída nos sentimentos íntimos, no qual o monstro feio é redimido pelo contexto. Se o monstro é perseguido, magoado, humilhado, estaremos sempre do lado dele, pois ao humano resta a boa-fé.

Muitas histórias de horror dão a entender que o inimigo vem de dentro, que está entre nós, não do desconhecido, mas de nossa mente.

[...]. São os olhos. Não se trata de algo que está lá; pelo contrário, é algo que não está mais lá. A imaginação é um olho, um terceiro olho maravilhoso que flutua livre. Quando crianças, esse olho vê com uma claridade perfeita. Conforme vamos crescendo, a visão dele começa a se embaçar... e um dia o porteiro deixa você entrar no bar  sem lhe pedir a identidade, e é isso aí: não há como voltar atrás. Está em seus olhos. Algo em seus olhos. Confira no espelho e me diga se estou errado (KING, 2004, p. 251).

 

Os monstros são seres nascidos da imaginação humana, mas mesmo tendo um aspecto assombroso, sobrenatural, e que se acredita não terem uma forma física muito agradável, passaram de seres odiosos a seres amados e até colecionados.

Vasta é a monstruosidade que nos rodeia, pois vasta é nossa imaginação (individual) e nosso imaginário (coletivo). Eík­σn, palavra grega que deriva de eoika, significa “ser semelhante”, “ser como”, consequentemente, imagem (TERRA, 1999, p. 480, grifo do autor).  As imagens possuem a realidade de sua representação, de uma realidade desconhecida; são objetivas, nos permitindo recuar e distanciar dos objetos, mas também são subjetivas (encantam, envolvem, possuem, erotizam, assustam e absorvem nosso olhar e pensamento). Os monstros são eíkons, ás vezes semelhantes a nós, um pouco como nós. Monstro-Imagem-Imaginação-Imaginário é um tecido suntuoso, devemos olhá-lo em todo seu recorte e minuciosidades.

 

 

REFERÊNCIAS

ALVAREZ FERREIRA, Agripina Encarnacion. Dicionário de imagens, símbolos, mitos, termos e conceitos Bachelardianos . Londrina: Eduel, 2008.

APÓSTOLO, João Luís Alves. O imaginário conduzido no conforto de doentes em contexto psiquiátrico. 2007. 293 f. Tese (Doutoramento em Ciências da Enfermagem), Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto, Portugal, 2007. Disponível em <http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/7157>. Acesso em: 01 nov. 2012.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

____________________. A Água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BIERLEIN, J.F.. Mitos Paralelos. Tradução de Pedro Ribeiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

CARROLL, Noël.  A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Tradução Roberto Leal Ferreira. Campinas, SP: Papirus, 1999.

CASTRO, Gustavo de (Org.). Mídia e imaginário. Introdução de Sérgio Dayrell Porto. São Paulo: Annablume, 2012.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. Tradução Guy Reynaud. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 21. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

COHEN, Jefrrey Jerome. Pedagogia dos Monstros ─ os prazeres e os perigos da confusão sem fronteiras. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 1992.           

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia, Tomo III. São Paulo: Edições Loyola. 1994.

GUIMARAES, Euclides. Os deuses e os monstros. Belo Horizonte: Autêntica/PUC Minas, 2001.

HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Tradução Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 1995.

HITCHCOCK, Susan Tyler. Frankenstein: as muitas faces de um monstro. Tradução Henrique A. R. Monteiro. São Paulo: Larousse do Brasil, 2010.

KING, Stephen. Dança Macabra: o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução Louisa Ibañez. São Paulo: Planeta de Agostini, 2004.

MACDONALD, Helen. Humans remains:  dissection and it’s histories.  London:  Yale University Press, 2006.

MELLOR, Anne Kostelanetz. Mary Shelley:  her life, her fiction, her monsters.  New York: Chapman and Hall, Inc., 1988.

MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Tradução António-Pedro Vasconcelos. Lisboa: Relógio D’ Água, 1997.

MUCHEMBLED, Robert. Uma história do Diabo (séculos XII a XX). Tradução Augusto Joaquim. Lisboa: Terramar, 2003.

NASCIMENTO, Edna Maria F.S.. Imaginário Cultural e persuasão em texto publicitário. In: CORTINA, Arnaldo; MARCHEZAN, RenataC..  Razões e sensibilidades: a semiótica em foco. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2004.

NAZÁRIO, Luiz. Da Natureza dos Monstros. SP: Arte e Ciência. 1998.

ROMANO, Roberto. Moral e Ciência: a monstruosidade no século XVIII.  São Paulo: Editora SENAC, 2003.

ROVAI, Mauro Luiz. Os saberes de si: memória, violência e identidade nos poemas de Álvaro de Campos. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001.

SCHWANITZ, Dietrich. Cultura Geral: tudo o que se deve saber. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

SHELLEY, Mary. Frankenstein.  Tradução de Mécio  Araujo  Jorge  Honkins. Porot

Alegre: L&PM, 2009.

TERRA, João E. M. O Deus dos indo-europeus: Zeus e a proto-religião dos indo-europeus. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

TINER, John Hudson. 100 cientistas que mudaram a história do mundo. Tradução de Marise Chinetti. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

WOLLSTONECRAFT, Mary. A Vindication of the Rights of Women New York: Cosimo, Inc. 1970.

 



[1] G. Durand é o fundador do Centro de Pesquisa sobre o Imaginário (C.R.I.), Grenoble, 1966.

[2] Horace Walpole (1717 -1797), aristocrata e romancista inglês. Walpole publicou o romance, primeiramente em 1764, com o pseudônimo de Onuphrio Muralto. Em 1765, Walpole assume a autoria da obra reeditada.

[3] Optamos por não revelar, em demasia, a obra em si, pois é uma obra bastante conhecida e analisada pelos estudiosos da literatura e cinema. Decidimos mostrar os motivos que levaram à criação da obra, tomando seus contextos marginais: o horror, a fantasia, a ciência, o oculto e as experiências que inspiraram a criação da obra, mesclando a vida da criadora (Mary Shelley) com a do criador (Victor Frankenstein) e da criatura (o monstro de pele amarela).

[4] Lavar as mãos antes de praticas médicas não era comum até meados do século XIX.

[5]Febre Puerperal, do latim puer, criança, era também chamada de “febre do parto”, pode evoluir para sépsia puerperal, que é uma forma grave de septicemia contraída por uma mulher durante ou logo após o parto ou aborto. Não tratada, é fatal. Ver obra “A peste dos médicos” (2005) de Sherwin B. Nuland.

[6] Fruto de um caso amoroso entre Mary Wollstonecraft e o empresário americano Gilbert Imlay. Os casos amorosos de Mary Wollstonecraft são relatados na obra “Mary Shelley: her life, her fiction, her monsters” (1988), de Anne Kostelanetz Mellor.

[7] Em 1815, o vulcão Tambora explodiu em uma ilha da Indonésia. A nuvem de detritos vulcânicos lançada na atmosfera foi tão intensa que diminuiu a entrada de luz e calor solar na Terra. Por isso, o ano de 1816 foi atípico. Um ano sombrio para o hemisfério norte, com geadas e nevascas em pleno verão (REIS, 2008, p. 35).

[8] As experiências e descobertas relacionadas à eletricidade continuam após as descobertas de Benjamin Franklin, mas não iremos adiante, pois a obra de Mary Shelley foi escrita em 1816 e já podemos entender o contexto científico, no qual a autora insere o uso da eletricidade em “Frankenstein”. Para maior leitura sobre a eletricidade, indicamos a obra “Energia uma abordagem multidisciplinar”, de Maria Paula T. de Castro Burattini, ou “100 cientistas que mudaram a história do mundo”, de John Hudson Tiner.

[9]  Escritor do esoterismo na Renascença. Interessado por magia, alquimia, ocultismo e astrologia.

[10]  Médico e cirurgião suíço, “considerado um dos representantes típicos da mescla de naturalismo panteísta e mística especulativa vigente durante certo período do Renascimento”. Para Paracelso, a medicina é o fundamento de todos os saberes (FERRATER MORA, 2004, p. 2198)

[11]  Bispo dominicano alemão que defendia a pacífica coexistência entre ciência e religião.

[12]  Físico e professor italiano.

[13] Relatos presentes no documentário “Decoding the past - In search of the real Frankenstein” (2008), realizado pelo History Channel.

[14] George Foster foi condenado à forca por ser culpado pelo assassinato de sua esposa e filho. Foster os afogou no Canal Paddington (MACDONALD, 2006, p. 15).

[15]  Químico, industrialista, filósofo e médico escocês.

[16] Clydesdale foi enforcado por ter matado brutalmente um homem de cinquenta anos em uma discussão entre bêbados. Para saber mais sobre as exibições galvânicas em corpos, há a obra de Iwan Morus, “Frankenstein´s children: eletricity, exhibition, and experiment in early-nineteenth-century London” (1964).

[17] Segundo relato presente no documentário “Decoding the past - In search of the real Frankenstein” (2008).

[18] Não consta nos manuscritos de Mary Shelley que ela teve pessoas inspiradoras, mas o contexto histórico e o espaço geográfico dos acontecimentos relevam que não foi apenas uma coincidência de fatos.

[19] Localizado no distrito de Bergstrasse, na Alemanha.  Os Frankensteins eram uma importante família fidalga da Alemanha.

[20]Dippel criou o “óleo Dippel”, substância com fluidos corporais, sangue e ossos de animais, destilados em tubos de ferro e outros equipamentos alquímicos. O óleo foi bastante usado até o século XIX, não funcionando como “elixir da vida”, mas como um poderoso tônico muscular.

[21] Várias são as interpretações sobre a mitologia de Prometeu, Epimeteu e Pandora. Mas optamos pela história relatada na obra “Mitos Paralelos” (2004, p. 127), de J.F. Bierlein, pela sua concisão. Para aprofundamento sobre Prometeu, indicamos o “Dicionário de Símbolos”, de Chevalier.

[22]Chevalier cita o fígado como lugar que contem o fel que está associado às intenções venenosas, à animosidade.  No Islã, o fígado está ligado às paixões. Já na medicina chinesa, o fígado é o gerador de forças, é o general que elabora planos. Comer o fígado de Prometeu todos os dias, é tirar sua paixão pelo conhecimento, ou suas intenções venenosas de vingança contra os deuses, vingança obtida através do conhecimento e desejo de imortalidade (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007)

A desinformação na sociedade viral: 
O papel das fake news na construção do senso comum

A desinformação na sociedade viral: 
O papel das fake news na construção do senso comum
JUNGES, José Otávio. A desinformação na sociedade viral: 
O papel das fake news na construção do senso comum. 2018. 79 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Jornalismo). Faculdade Araguaia. Ciências da Comunicação. Curso de Graduação em Jornalismo. Goiânia, GO, 2018.Orientadora do TCC: Profa. Dra. Verônica G. Brandão
TCC Junges.pdf
Documento Adobe Acrobat 2.3 MB