O afeto que nos afeta

Arrancar páginas, rasgar cartas, esquecer uma canção-tema, não ir a lugares que lembrem momentos com alguém. Existo enquanto busco o outro, mas quando o outro não mais está presente, inexisto um pouco a cada momento. O que fazer com tantos sofrimentos? O que fazer com a tristeza que fica quando um amor se vai? Autoajuda? Remédios? Tentar trazer o amor em três dias com “amarrações”? Respostas rápidas para um sofrimento antigo. Existir é algo confuso. Existir com um Outro é uma confusão eterna (enquanto dura). O que nós afeta – o afeto – é algo que todos buscamos. O afeto pode ser um sofrimento, dias de chuva, necessário para dar mais brilho aos raios solares no fim da tempestade. Não devemos evitar o sofrimento com medidas paliativas. O afeto é algo tão fino como uma fina camada de gelo (como a imagem acima). Ou te congela ou te sustenta.

 

O afeto exige expressão. No filme “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, Michel Gondry, 2004), Clementine Kruczynski (Kate Winslet) quer esquecer os momentos amorosos com o inseguro e carente Joel Barish (Jim Carrey). Sofrer por amor acaba, no filme em questão, sendo um processo de auto-conhecimento. O sofrer que instaura feridas, fazendo aflorar os traumas. No filme “A Natureza Quase Humana” (Human Nature, 2001), o diretor Michel Gondry em comunhão com o roteirista Charlie Kaufman já revelavam o sofrimento de amar quando um personagem narra o que é o sentimento amoroso. “Mas o que é o amor? Do meu novo ponto de vista percebi que o amor nada mais é do que uma aglomeração maciça de necessidade, desespero, medo da morte e insegurança pelo tamanho do pênis. Mas eu não estou julgando. Sei o sofrimento que é estar vivo”.

 

O título Eternal Sunshine of the Spotless Mind nos remete a outra experiência amorosa regada a sofrimento e afirmação do mais sublime amor – a história de Abelardo e Heloisa. Na França do século XII, temos Abelardo (1079-1142) que, com 51 anos, foi designado para ser tutor de Heloísa (1101-1164), uma bela jovem de 18 anos. Houve um envolvimento afetivo, mas Abelardo era padre e o casal se uniu secretamente em matrimonio. Eloísa dá a luz a Astrolábio. Abelardo é destituído de seu cargo e castrado. Após o episódio, Abelardo vai para um mosteiro. Heloísa é enviada para um convento, onde faz voto de silêncio. O casal (de amor carnal) proibido troca cartas para manter o amor metafísico.

 

Em 1717, Alexander Pope escreve o poema “Eloisa to Aberlad” que remetia a uma das cartas de Heloísa para Abelardo. Temos uma Heloísa angustiada em seus desejos sexuais por Abelardo (“O desejo da virgem comunicado sem medo/Desculpe por corar, e derrame todo o coraçao/Apresse o macio coito de alma para alma”). Uma Heloísa que, principalmente nos sonhos, sente o desejo de satisfazer os prazeres carnais e sendo Abelardo um eunuco (ato que libertou o amante do “contágio pela impureza carnal”), não poderia corresponder aos desejos de jovem amante. Heloísa passa a clamar não por perdão, mas pelo esquecimento (“Quanto deve experimentar a esperança, o desespero, a indignação, o arrependimento/A contrição, o desdém - faça tudo mas esqueça”). Heloisa deve aprender a “essência do autocontrole” e renunciar seu amor, sua vida, ela mesma e Abelardo. E então temos o trecho do qual o título do filme foi extraído: “Quão feliz é o imaculado salário da sacerdotisa de Vesta! O mundo a esquecendo, esquecida pelo mundo. Eterno brilho de uma mente sem lembranças!”. Ou seja, uma inocente virgem (sacerdotisa vestal), esquecendo todos e sendo esquecida. O mesmo ocorre com Clementine. A moça de cabelo vermelho (como Heloísa) que decide esquecer e ser esquecida.

 

Será que tentar esquecer o Outro irá me ajudar a suportar minha infelicidade, minha angústia? Como lidamos com a afetividade e a sexualidade? Respondo baseando-me no poema de A. Pope...Trabalhamos e descansamos (atos mantidos em turnos iguais), somos “sonâmbulos obedientes que podem acordar e lamentar” os desejos não fomentados, afetos (nem) sempre correspondidos. Sofremos, choramos lágrimas que deleitam e desejamos esquecer os sofrimentos diários, de um corpo que deseja o que o corpo não pode ter. Desejamos uma mente sem lembrança, sem os sofrimentos passados. Porém, por mais que tentamos esquecer os sentimentos, o afeto, os desejos da alma e do corpo, uma centelha, um brilho eterno brilhará.

 

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