Estamos recebendo somente terríveis notícias

Vivemos em meio aos assuntos mais violentos todos os dias: meninos de rua usuários de crack que esfaqueiam os rivais, assassinos, pedófilos, pais que jogam filhos da janela do apartamento, ladrões e os noticiários que a todo o momento aterrorizam a sociedade. Em contraparte, as artes (especialmente a sétima arte) souberam aproveitar contextos vários, em diferentes épocas para, metaforicamente, criar monstros com singularidades humanas (e vice-versa).

Além de 8mm, Joel Schumacher dirigiu “Um dia de fúria” (Falling down,1993) que mostra um sujeito (William Foster- Michael Douglas) tentando viver segundo as regras sociais, mas tudo desanda e o desespero faz o protagonista cometer violências contra outros, contra o sistema. E não somos como William Foster em alguns momentos? Tem dias que o sistema nos prejudica tanto que desejamos libertar Sr. Hyde, Hulk e afins. “Tocar o terror”, dizem os jovens. E vemos que o terror, a violência, a monstruosidade está em todos os espaços, meios, mídias, instituições.

Se a realidade histórica é entediante, os vilões não são devidamente punidos, nos filmes o uso da violência é necessário para purgarmos nossos medos coletivos, nosso medo do estranho [i].

 

E o que é mais interessante: o direito de matar é justificado como uma afirmação da própria vida, uma vez que a eliminação do diferente, do menos dotado, do menos capaz implica a purificação da raça, o melhoramento da população como um todo. A cada um que morre, o conjunto resultante é melhor que o anterior [...]. O impuro não é mais o estrangeiro por excelência, mas pode estar aqui mesmo, entre nós. O ódio pelo inferior (ódio esse que, hobbesianamente, funda-se no medo do outro, em vê-lo como ameaça- à pureza, a saúde etc.- da raça superior); por fim, promove o extermínio da raça inferior que modo que se garanta a saúde da raça superior e a sua evolução (GALLO; SOUZA, 2002, p. 47).


             Lembro-me do dramaturgo Bertolt Brecht, em um documentário, narrando o poema “Aos que virão depois de nós”. O início do poema nunca saiu de minha cabeça: “Eu vivo em tempos sombrios. Uma linguagem sem malícia é sinal de estupidez, uma testa sem rugas é sinal de indiferença. Aquele que ainda ri é porque ainda não recebeu a terrível notícia”. Vivemos com medo, esperando as mais terríveis notícias (nos jornais, no rádio, na TV, nos filmes, na vida).

Somos todos vítimas e algozes. Alternamos! Dizem que o diabo mora nos detalhes. Max (J. Phoenix) até fala para o detetive Tom (N. Cage)  que “o demônio nunca muda. Oportunidades é que fazem o demônio agir.  É ele que muda você”. O demônio do detetive foi à própria consciência e achar que estava fazendo justiça. Não falo de um ser medonho de um submundo quente, de um lugar que cheira a enxofre.
 Falo de um demônio que mora em todos nós- o desejo de fugir das regras sociais. Uma “bituca” de cigarra lançada na rua, uma fila que furamos, uma vaga de deficiente que não respeitamos, um motorista que fechamos, xingamos e (alguns o fazem) atiramos. Regras sociais que não percebemos que desrespeitamos. O limite do outro começa onde o meu termina? Deveria ser assim. Porém, atualmente, vivemos em uma "era de vazio", de personalização (diminuímos a interação entre o Eu e o Outro) e narcisismo (meu umbigo é melhor que o de outros), em meio a apoteose do consumo (eu compro, sou comprado, meu corpo vira objeto). Endeusamos nossos objetos. Vivemos em uma  era de “sexdução”, como bem afirma Gilles Lipovetsky na obra “A Era do vazio” (2005), na qual tudo é permitido, não havendo limites para o corpo (o corpo deseja o que a mente imagina, para o bem ou mal). A indiferença que sentimos, principalmente em era de sites XXX e redes sociais, é por excesso de um outro que me rodeia e não por falta deste. Lembro-me da fala do personagem Eddie Poole (contratava as atrizes pornôs) na qual ele dizia que Mary Ann era uma qualquer da rua e se sumia, ninguém ligava.



[i] Freud, em O mal estar na cultura, usa a palavra alemã Unheimlich (estranho, sinistro) como sendo algo procedente da psique humana do indivíduo e que é, segundo definição do filósofo idealista Schelling (aprovada por Freud), “tudo aquilo que deveria ter permanecido em segredo e oculto veio à luz” (2010, p. 25).

 

FREUD, Sigmund. O estranho (1919). In: FREUD. Obras Completas. Edição Standard Brasileira. v. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

_______________. O mal estar na cultura. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.

 GALLO, Silvio; SOUZA, Regina Maria de. Por que matamos o barbeiro? Reflexões preliminares sobre a paradoxal exclusão do outro. Educação & Sociedade, São Paulo, ano XXIII, n. 79, p. 39-63, ago. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/es/v23n79/10848.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2011.

 LIPOVESTSKY, Gilles. A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. São Paulo: Manole, 2005.

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