Estaremos felizes, se não piorar

Vendo (pela...perdi a conta...vez), percebi que “V de Vingança” (V for Vendetta, James McTeigue, 2005) fala sobre as ideias tanto quanto “A Origem” (Inception, Christopher Nolan, 2010). Em “V de Vingança”, Dom Cobb (Leonardo DiCaprio) em uma conversa com um companheiro de inserção, pergunta qual é o parasita mais resistente “A bactéria? O vírus? Um verme intestinal? Uma ideia. Resistente e altamente contagiosa. Quando uma ideia domina o cérebro,é quase impossível erradicá-la. Uma ideia totalmente formada e compreendida penetra fundo”. Já no começo do filme “V de Vendetta”, temos a seguinte fala:

 

Lembramos da ideia totalmente, mas não do homem. Pois um homem pode fracassar. Podem capturá-lo, matá-lo e esquecê-lo. Mas 400 anos depois, uma ideia ainda pode mudar o mundo. Presenciei pessoalmente o poder das ideias. Vi pessoas serem mortas em seu nome e morrerem defendendo-as. Mas uma ideia não pode ser beijada, tocada ou abraçada. Ideias não sangram sentem dor ou amam. Não sinto falta da ideia e sim do homem.

 

 

Cultura é uma ideia inserida no meio social. Passamos do cultivar a terra para cultivar o espírito. Éramos cultivadores, agora somos alvo da ação do cultivo. Cultus (lat.) significa “elegante, esmerado, enfeitado”.

Passamos por um processo de conversão da cultura em mercadoria. Para o escritor norte-americano Dwight MacDonald (1906-1982) existiam, durante quase um século, duas culturas ocidentais: gênero tradicional (ou “Alta Cultura”) e “Cultura de Massa” (cultura fabricada em atacado para o mercado consumidor, Cultura Popular). “A Cultura de Massa desenvolveu também meios próprios em que o artista sério raramente se aventura: o rádio, o cinema, as histórias em quadrinhos, as histórias de detetives, a ficção cientifica, a televisão” (1973, p. 77).

Qual a natureza da Cultura de Massa? Segundo MacDonald, desde o inicio do século XIX houve crescimento da Cultura de Massa (fenômeno moderno) graças à democracia política e a educação popular que “derrubaram o velho monopólio da cultura, que pertencia à classe superior” Incisivamente, MacDonald afirma que a Cultura de Massa começou como uma excrescência parasitaria, cancerosa, da Alta Cultura e, até certo ponto, ainda continua a sê-lo.

 

As empresas comerciais encontraram um mercado lucrativo nas demandas culturais das massas recém-despertadas, e o avanço da tecnologia possibilitou a produção barata de livros, periódicos, quadros, música e móveis, em quantidades suficientes para satisfazer a esse mercado. A tecnologia moderna também criou novos meios de comunicação de massa, como o cinema e a televisão, especialmente adaptados à manufatura e a distribuição de massa. (1973, p.78).

 

 

MacDonald diferencia a Arte Folclórica da Cultura de Massa (Tabela abaixo):

 

 

Arte Folclórica

Cultura de Massa - Kitsch

Cultura do Povo comum (até a R. Industrial)

Cultura imposta

Veio de baixo

Vem de cima

Expressão espontânea, autóctone do povo.

Fabricada por técnicos contratados por homens de negócios

Modelada pelo povo sem auxilio da Alta Cultura.

Públicos: consumidores passivos (comprar ou não comprar)

Satisfazer as necessidades do povo, o gosto popular.

 

Explorar as necessidades culturais das massas. Obter lucro ou manter o domínio da “classe superior”. Explorar o gosto popular.

Instituição própria do povo

Mescla Alta Cultura com dominação política

 

 Quando escreveu “Arte Moderna e Cultura de Massa” (1941), Horkheimer usou a expressão “indústria cultural” pela primeira vez. Logo depois, redigindo em conjunto, Adorno e Horkheimer forjaram a expressão “indústria cultural” e a empregaram pela primeira vez no contexto da critica á razão moderna (Dialética do Iluminismo). “A II Guerra estava em curso; não havia mais o Estado Liberal. (...). Resumidamente, assistia-se ao que os autores chamaram de colapso da era moderna” (RÜDIGER, 2002, p.16).

Será que a cultura de massa manipula os consumidores? Se a cultura converteu-se em mercadoria, a publicidade passou a ser o elixir da vida da indústria cultural. Dão-nos a dissolução do eu para logo em seguida nos dizer qual produto devemos comprar para nos solucionar. “Isto lhe falta! Compre!! Você precisa disso, agora! Não fique sem, adquira!”. “Conquistar as massas” lema de nazistas, comunistas ou dos meios de propaganda (“arte de influenciar multidões”). Somos felizes com o que compramos/adquirimos/obtemos? A indústria cultural sacia nossa necessidade de afeto?

A felicidade encontrada através de indústria cultural é simplesmente substituto e falsidade na medida em que, referindo-as sempre ao estado de coisas que provoca sai falta, consiste na verdade em processo pelo qual se planifica e explora a necessidade de felicidade (ADORNO apud RÜDIGER, 2002, p. 143)

 

“V” tinha como lar uma “Galeria Sombria” repleta de objetos de arte, obras musicais de “boa qualidade” (tocando Bossa Nova, músicas clássicas), livros (romances de “Alta Cultura”), mas não tinha “paz de espírito” (se é que isso existe). “V” era o carrasco de uma nação de carrascos, que achava fazer o bem quando o mal fazia (não sou eu que devo decidir se puxo essa alavanca ou não). Vê sai de sua galeria sombria, de sua alienação, de sua utopia em plena distopia. “V” acaba percebendo que também é um vilão. Deixar seus pertences a jovem Evey é uma forma de se redimir e passar seu fardo existencial adiante (minha esperança, meus livros, a galeria, este trem... Deixo tudo para você fazer o que quiser). “V” deixa sua esperança e suas memórias/culturas para Evey, pois percebeu que breve é a vida e longa a arte e “do fanatismo á barbárie não há mais do que um passo” (Diderot). O último passo de “V” será destruir o mundo distópico (lugar mau) em que vive.

Assim como a galeria de “V”, vivemos em uma sombria cultura de massa. Ou estamos integrados a nossa indústria cultural, nossa cultura de massa, ou somos apocalípticos  e acreditamos que “(...) longe de poder esperar que a Cultura de Massa melhore, teremos de dar-nos por muito felizes se ela não piorar” (MACDONALD, 1973, p. 92).

 

  

MACDONALD, Dwight. Uma teoria da cultura de massa, In: ROSENBERG, Bernard; MANNING WHITE, David. Cultura de Massa. São Paulo: Cultrix, 1973.

RÜDIGER, Francisco. Comunicação e teoria crítica da sociedade: fundamentos da crítica e indústria cultural em Adorno. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.

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