O demônio da ciência

Temos o Divino e o Transcendente no filme Contact (Zemeckis, 1997). Divino como algo ligado a Deus. Transcendência como algo que vai além da natureza humana, algo que está por trás das aparências, do mundo como percebemos. Deus (latim dies, “dia”, “luz”) não se vê, mas Ele permite ver, assim como a luz. Para Jean–Yves Leloup, “Deus não se prova, sente-se” (2002, p.23).  Transcender não é um ato necessariamente religioso. A experiência do conhecimento é uma tentativa de transcender, de ir além, de ultrapassar limites. Queremos transcender o transitório, romper barreiras, falar com alguém na Flórida ou com um Ser qualquer na estrela Vega.

Para alguns religiosos, a ciência é o demônio do existir. Porém, “demônio” significa “conhecimento” em grego, “ciência” significa “conhecimento” em latim (SAGAN, 2006, p. 140). Duvidamos em certos momentos, mas é nesse duvidar que somos livres da realidade de nossas vidas cheias de compromissos cronometrados. “Onde há dúvida, há liberdade” (Ubi dubium ibi libertas).

A busca da Doutora Eleanor Arroway (Ellie, Jodie Foster) pelos fatos era o que a movia na ciência. Lidar somente com os fatos. “A ciência nos convida a acolher somente os fatos, mesmo quando eles não se ajustam às nossas preconcepções. (...). Quando somos indulgentes conosco mesmos e pouco críticos, quando confundimos esperanças e fatos, escorregamos para a pseudociência e a superstição”. (SAGAN, 2006, p. 45).

 Quando inquirida se acredita em Deus, a Doutora Ellie responde que como cientista se baseia em evidências empíricas, e não acha que haja dados para provar ou negar a existência de Deus. Deus não se prova, sente-se? Será que a ciência matou Deus? Não, a ciência não mata Deus todos os dias, apenas desconfia do discurso de autoridade. Se Deus é onisciente, onipotente, onipresente e nunca falha, não tem o que ser refutado/analisado. Até a Bíblia (o Livro de Deus) parece ter o monopólio da verdade. O divino é o campo do maravilhoso. Porém, “nada é maravilhoso demais para ser verdade” (Michael Faraday). A ciência busca respostas. Deus é o caminho, a verdade absoluta, a resposta. A ciência, na figura da doutora Ellie, testa, comprova, analisa fatos. Porém, para muitos, a ilusão parece ser uma boa pedida. “Nós também sabemos o quanto a verdade é muitas vezes cruel, e nos perguntamos se a ilusão não é mais consoladora” (Henri Poincaré).

Quando a Doutora Ellie explica ao Padre Joss sobre “A Navalha de Occam”, como um princípio científico básico que diz: “Se der no mesmo, a explicação mais simples é a certa”. Então, “é mais fácil acreditarmos em um Deus misterioso que criou e nunca mais deu as caras ou Ele simplesmente não existe, e nós o criamos para não nos sentirmos tão pequenos e sós?”. Para Ellie, Deus pode ser um delírio, uma ilusão e para comprovar tal existência, ela (Ellie) precisaria de provas. Porém, após a experiência espacial, Ellie é inquirida se conhece a Navalha de Occan. As “autoridades”, os senhores de “toda a verdade, nada mais que a verdade” queriam saber se a Doutora havia lido uma “mensagem alienígena que resultou numa máquina mágica que a levou para o espaço (...) e a devolveu à Terra um instante depois sem um farrapo de prova". Os cientistas ainda queriam saber se a doutora foi, contra a própria vontade, transformada na diva do espetáculo? Agora era Ellie quem não tinha provas. Parece que a existência de Deus, ou da viagem espacial relâmpago de Ellie não teria como ser provado dentro da ciência.

Ellie (a ciência) perde lugar para o Divino. O eu de Ellie não se afirmou pelos outros. Ela foi desacreditada. Será? Claro que o final redentor resolve tudo. Padre Joss diz que acredita em Ellie e ciência e religião fazem as pazes.

 

 

LELOUP, Jean-Yves. Jean-Yves Leloup: se minha casa pegasse fogo, eu salvaria o fogo. Tradução Maria Leonor F. R. Loureiro. São Paulo: UNESP, 2002.

 SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. Tradução Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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