Somos memória

O que é “real” em um mundo, em uma realidade gerada por computador? Basta mudar uma variável (região de memória do computador, previamente identificada cuja finalidade é armazenar os dados ou informações de um programa por um determinado espaço de tempo) para que alguma alteração ocorra em nossa realidade. Basta uma mudança em alguma variável, causada por qualquer especialista em informática (hacker ou não) em qualquer sistema financeiro mundial, para todo o mundo entrar em pânico. Se antes, em períodos de guerra fria, um simples apertar de um botão vermelho poderia destruir o mundo. Atualmente, uma bug (defeito, erro de programação) pode alarmar toda a sociedade informatizada. Em “Matrix” (irmãos Wachowski, EUA, 1999), um gato é a revelação do defeito de sistema ao jovem Neo. É o Déjà vu! Um erro de memória? Um reviver o presente-presente-presente-presente... É o Déjà vu! Um erro de memória? É o Déjà vu! Um erro de memória? Não ajuste sua percepção, o problema é com a realidade.

O que somos? “Somos memória (...) – É isso que nós somos. Memória” (GAIMAN, 2010, p.110). Quando não usamos nosso banco de dados, de memórias, parece que deixamos de ser humanos e tornamo-nos vegetais (uma colheita em Matrix). Um homem em estado vegetativo é alguém que emerge do coma, mas não parece ter recuperado a consciência. Parece que alguém foi projetado com defeito.

Esse mundo de coisas reais é um mundo que é. E, que significa aqui ser?: significa aquilo que “há” na minha vida. Está aí, na minha vida (...).Existe. Existimos enquanto buscamos em nós o nosso mundo. Temos noção de que somos alguém. Mas quem somos? (experiência metafísica). Para Santo Tomás de Aquino, “ser é antes de tudo existir” (2001, p.41). O ser também é escolha, uma possibilidade (aspecto ontológico). O que eu escolho é (passa a existir). O que deixo de escolher, não ganha existência. “Escolha é uma ilusão criada entre os que têm poder e os que não têm” (Matrix Reloaded, 2003).

Que significa real? (...) apalavra “real” (do latim, res), significa coisa. Este mundo de objetos, que é o mundo que é, que tem que ser, é, ademais, real. Seu ser é desse tipo especial que chamamos ser real. O que é, é! As coisas do mundo em que vivemos que são reais, que têm ser, e precisamente ser real, necessariamente são reais no tempo. Isto é, têm um ser que começa a ser, que está sendo e que deixa de ser; é, pois, o estar no tempo um dos caracteres desse mundo que chamei de coisas reais. Nós usamos o limite como fim e como meio.

“Naturalmente, tudo funciona assim. Só existe uma constante... Uma regra universal. É a única verdade real: causalidade. Ação e reação. Causa e efeito” (Matrix Reloaded, 2003). Tomar a pílula azul (inércia, certeza, impossibilidades, aparência), ou tomar a pílula vermelha (movimento, dúvida, possibilidades, verdadeiro). É a pergunta que nós impulsiona. Qual caminho seguir? Esse é o problema de Alice, de Neo e o de todos nós. Não sabendo o caminho, qualquer caminho serve. Seguir ou não o coelho branco (a dúvida constante)?

Neo/New/Novo representa a mudança (do Real para o Ideal). Morfeu (deus grego dos sonhos) é “aquele que molda, que forma”. É Morfeu que molda Neo para atuar no “deserto do real” (Matrix, 1999). Segundo o filósofo esloveno Slavoj Žižek, a “realidade é um produto do discurso, uma ficção simbólica que erroneamente percebemos como entidade autônoma real” (2003, página 36), se acreditamos no l’effet de l’irréel, prevalecerá o “deserto do real”.

Bem e mal, belo e feio, verdadeiro e falso, ordem e desordem, realidade e ficção. Começamos na dualidade, como descortina a mitologia, a filosofia, a psicologia, a antropologia. Nossas realidades e ilusões são reflexos do humano; são partes do Homo sapiens sapiens (racional, realista), são seus demens (produtor de mitos, magias, fantasmas). O saber cultural se apoia na engenhosidade da unidualidade de um homem complexo, de um homem que tece seus pensamentos em devaneios, de um ser metafísico e físico que deseja construir mundos como remissão constante em um futuro inquietante e desconhecido. “Ficção e realidade entremeiam-se ao seu serviço [do homem], e a ficção obscurece a realidade; qualquer acontecimento da vida é aceito como uma manifestação do seu poder”. (SCHOPENHAUER, 1951, p. 50).

Realidade é aquilo que queremos que exista. Até um avatar no Second Life é realidade e é ilusão. Philip Kindred Dick (1928-1982) escreveu “How to Build a Universe That Doesn't Fall Apart Two Days Later” (1978), no qual diz que a “realidade é tudo que continua, mesmo quando você deixa de acreditar nela”. Existir no campo físico, metafísico, onírico.

A realidade só é e será realidade se for tecida no imaginário, pois traça linhas identificatórias com nossas sombras, nosso eu que apreciamos na escultura, pintura ou cinema.

A fantasia não propõe apenas outra realidade na qual os objetos estão sujeitos às suas novas regras e normas, mas também ultrapassa as representações sistematizadas pela sociedade, criando outro real. Não deixa de ser real, porque não é ilusão ou loucura, mas outra forma de conhecer, perceber, interpretar e representar a realidade. Possui uma lógica própria compartilhada pela coletividade, que desafia a descrença na existência de seres extraordinários e nas experiências insólitas. (LAPLANTINE; TRINDADE, 2003, p. 29, grifo nosso).

 

 

AQUINO, St. Tomás. Suma Teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

GAIMAN, Neil. Coisas Frágeis. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010.

LAPLANTINE, François; TRINDADE, Liana. O que é imaginário. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2003.

SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1951.

ŽIŽEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. Tradução Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2003.

 

 

 
 

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